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Outros Jeitos de Virar Areia

um argumento de
Marina Schneider
ilustrado por
Sara Boiça

Uma brasileira e uma portuguesa, ligadas por um amor perdido, percorrem a costa de Lisboa numa viagem de carro silenciosa. Ao longo do caminho, enfrentam as diferentes facetas do luto, enquanto começam a se conhecer.

1. EXT. ESTRADA – TARDE

Dia nublado. Estrada urbana, pouco movimento. Placas azuladas indicam a saída de Lisboa. Um carro desloca-se em direção ao trajeto indicado, dentro da velocidade permitida.

 

2. INT. CARRO – TARDE
O interior do veículo está inundado em SILÊNCIO.
A condutora ANA (40), paulista, segura o volante com as duas mãos, atenta às curvas. Tem as unhas bem cuidadas e uma aliança dourada no dedo anelar esquerdo. Veste uma camisa branca e óculos escuros. Tem o cabelo preso, que falha em conter todos os fios no coque.
A passageira IOLANDA (35), lisboeta, segura-se ao alça-teto do carro, apesar da pouca turbulência na condução. Ocupa-se em observar a paisagem.
SOM DO PISCA. O carro adentra num túnel.

CORTE A NEGRO.
INSERT: TÍTULO DO FILME. “OUTROS JEITOS DE VIRAR AREIA”.

 

3. INT. CARRO – EM SEGUIDA
Ao saírem do túnel, a luz do sol alastra-se através do vidro. Iolanda semicerra os olhos. Ana abaixa o para-sol da outra. A gentileza é constrangedora.
Ninguém diz nada.
Voltando a captar sinal, a rádio FARFALHA. Ana procura por uma estação que funcione. Uma tentativa. Duas. Três.

 

IOLANDA
Queres que eu…?

 

ANA
(interrompendo)
Aí. Agora foi.

 

A rádio emana a MÚSICA PUBLICITÁRIA de um supermercado local. Ana TROCA de canal.

 

RÁDIO (O.S.)
(voz feminina, sotaque lisboeta)
É um chazinho verde muito
especial, com rodelinhas
de gengibre e hibisco.
Estes ingredientes estão ótimos
para drenar e fazer um detox
interno daqueles. É um chá
realmente recomendado para mulheres
com retenção de líquido. Ele
acelera o metabolismo e drena
as gordurinhas. A sugestão da
nutricionista é tomar na parte
da manhã, até o fim do dia!
(risos) No verão custa a tomar,
é verdade…

 

Iolanda olha-se no espelho retangular do para-sol. Os seus olhos pairam sobre o reflexo de um jarro de cerâmica no banco de trás.

 

RÁDIO (O.S.)
Mas sabe bem olhar no espelho
e ver a operação biquíni a
funcionar, não é?

 

Ao aperceber-se que Ana a olha de relance, Iolanda fecha o para-sol.
Ana TROCA de canal.

 

RÁDIO (O.S.)
(interlocutor masculino)
…e que sem dúvidas deixou um
legado extraordinário para trás.
Ainda assim, hoje é um dia muito
triste em Portugal, e é nosso
dever relembramos com pesar o
falecimento do antigo Ministro
da Ec…

 

Ana TROCA de canal. Top Summer Eletrohits 2024.

 

ANA
Vou desligar.

 

IOLANDA
O quê?

 

ANA
Posso desligar? A rádio.

 

IOLANDA
O carro é teu.

 

ANA DESLIGA a rádio. SILÊNCIO extenso.

 

IOLANDA
Se quiseres, posso pôr música.

 

Ana não responde.
A viagem segue. Aos poucos, os tons cinzentos da estrada vão dando lugar a tons verdejantes e azulados.

 

IOLANDA
Não te importas que
eu abra a janela?

 

ANA
O carro tem ar.

 

Ana faz menção de ligar o ar condicionado.

 

IOLANDA
Não, deixa estar.
Só quero ver a vista.

 

Iolanda gira a manivela, abaixando o vidro do carro. Uma LUFADA DE AR descabela a ambas. Iolanda estica a cabeça para fora, como quem precisa respirar.
A viagem continua. Vagarosa.
Iolanda PERGUNTA ALGUMA COISA, mas é ABAFADA PELO VENTO.
Ana não entende.
Iolanda busca alguma coisa no fundo da bolsa. Um cigarro eletrônico. Quando está prestes a tragá-lo, Ana estaciona o carro.

 

4. INT. CAFÉ DE ESTRADA – TARDE
RISOS MASCULINOS. TILINTAR DE COPOS. Cadeiras e mesas de alumínio. À porta, publicidade de iced tea. Ao fundo, um grupo de homens joga bilhar. Ana, com os óculos escuros à cabeça, revela olhos inchados.

 

ANA
Um descafeinado, por favor.

 

ATENDENTE
Mais alguma coisa?

 

Ao fundo, no exterior, Iolanda fuma o seu vape.

 

ANA
Não.

 

ATENDENTE
Nem um sorriso?

 

Ana solta MOEDAS no balcão e retira-se.

 

5. EXT. ESPLANADA DO CAFÉ – EM SEGUIDA
Sobre a mesa, o café pela metade e um cinzeiro vazio. Ana é a única a ocupar a esplanada. Observa Iolanda, de longe.
A outra fuma, afastada. Faz um penteado improvisado atando um nó com o próprio cabelo. Traga o cigarro, sem pressa. Chuta uma pedra solta com o pé. Parece tranquila.

 

6. EXT. DE FRENTE À ESPLANADA – NO MESMO MOMENTO
Iolanda, observando o mar, fuma o vape, tensa. Traga e solta como quem tenta respirar fundo. Afasta o cabelo dos olhos como quem sente calor, apesar do dia nublado. Ao olhar para trás, observa Ana, com as pernas cruzadas, a bebericar um café. Parece calma.

 

7. INT. CARRO – MEIA HORA DEPOIS
De volta à estrada. A paisagem cada vez mais azulada dá lugar ao mar, acompanhado por um calçadão desocupado, quase límbico. O vento entra no interior do carro apenas por uma pequena fresta. Ao pararem num semáforo com a luz vermelha, o SILÊNCIO impera.
Ana tira do porta-luvas um saco de bolachas recheadas. Tenta RASGAR a embalagem com uma mão.

 

IOLANDA
Eu posso…

 

ANA
Consegue…?

 

Iolanda abre a embalagem.

 

ANA
A primeira é minha.

 

IOLANDA
(confusa)
Certo.

 

SILÊNCIO.

 

IOLANDA (CONT’D)
Isso é alguma superstição, ou…?

 

ANA
Não tens filhos?

 

IOLANDA
Não?

 

ANA
Ah. É besteira. Uma brincadeira
que a minha filha faz com as amigas.

 

IOLANDA
(divertindo-se)
Mas queres a primeira?

 

Ana retira a primeira bolacha do pacote. Iolanda, a segunda.

 

ANA
(mastigando)
Se a outra pessoa come primeiro,
ela rouba o seu namorado.

 

SILÊNCIO. O motor do carro DESLIGA.
Ambas comem suas respetivas bolachas.

 

IOLANDA
O sinal abriu.

 

Ana volta a LIGAR o carro e ARRANCA na marcha errada. O carro sofre um pequeno SOLAVANCO. Ambas, imediatamente, olham para o jarro no banco de trás.

 

ANA
Caiu?

 

IOLANDA
(inclinando-se, ajeitando a tampa)
A tampa mexeu-se de lugar.
Acho melhor eu levar isto ao colo.

 

ANA
Tá seguro ali. Eu testei
antes de sair de casa.

 

IOLANDA
Agora não caiu por pouco.

 

ANA
Não vai cair.

 

IOLANDA
Com outra travagem
destas, ainda cai.

 

ANA
(ríspida)
Você quer dirigir?

 

IOLANDA
Não, não quero dirigir.

 

Ambas se entreolham.

 

IOLANDA (CONT’D)
É que aqui, diz-se conduzir.

 

ANA
Eu sei.
(com sotaque português)
Eu vivo cá há nove anos.

Desconforto. A viagem segue.

 

IOLANDA
Preciso ir a casa de banho.

 

ANA
É sério?

 

IOLANDA
Para no acostamento,
se faz o favor.

 

ANA
Porque você não foi no café?

 

IOLANDA
(levemente ríspida)
Porque não tinha vontade,
agora tenho. Para no acostamento,
se faz o favor.

 

ANA
Ali?

 

IOLANDA
Sim.

 

ANA
Na estrada?

 

IOLANDA
Se faz o favor.

 

Ana estaciona no acostamento.

 

8. EXT. BEIRA DA ESTRADA – EM SEGUIDA
O caminho formado por rochas contrasta com a paisagem de água límpida. A porta do condutor está aberta: Ana, ainda com o cinto de segurança, observa Iolanda com estranheza.
Entre as pedras, Iolanda abaixa as calças e concentra-se para urinar. Ana faz menção de mostrar-lhe toalhinhas humedecidas.
O SOM DE ÁGUA CORRENTE a faz mudar de ideia. Rapidamente desvia o olhar.
Iolanda deleita-se ao satisfazer as suas necessidades. Um carro passa pela estrada a toda velocidade, BUZINANDO consecutivamente.
Ana, no impulso, BUZINA de volta. Surpreendida, Iolanda deixa escapar uma RISADA enquanto abotoa os jeans. Se nota a breve sombra de um sorriso nos lábios de Ana. Não dura muito.

 

9. INT. CARRO – ENTARDECER
Alguns pedestres caminham pelo calçadão. A velocidade do carro impede que seus rostos se definam; são sombras vivas em um dia de lazer. Um dia de praia. Um dia nublado.
Outra sinaleira.
Uma família de banhistas atravessa a rua: PAI (41), MÃE (42) e FILHA (9). A luz do sol poente reflete sobre os trajes de banho coloridos. Bagunça: boia em formato de flamingo.
Guarda-sol estampado. Carrinho com bugigangas.
Ana e Iolanda perdem o olhar sobre a família onírica, observando-os a cruzar a rua. Elas se entreolham, como se fossem dizer alguma coisa.
Mas o jarro cai para o lado.

 

IOLANDA
Foda-se.

 

Ana retira o cinto de segurança e sai do carro no meio da rua, abrindo a porta do banco traseiro. Iolanda faz o mesmo.

 

IOLANDA
Vazou?

 

ANA
(a tremer)
Não. Por pouco.
Vou colocar no portamalas.

 

Sinal verde. Outro carro, logo atrás, BUZINA.

 

IOLANDA
Eu carrego. Deixa estar.

 

ANA
Não.

 

IOLANDA
Dá pra cá, anda.
Não podemos parar aqui.

 

ANA
Não vou te fazer levar
a porcaria do jarro.

 

IOLANDA
Vai, vai sim! Chega.

 

Outra BUZINA.

 

IOLANDA
(para o outro motorista)
Espera, caralho!

 

Iolanda pega o jarro das mãos de Ana. Sua expressão está impassível, sóbria.

 

IOLANDA
Anda. Vamos embora.

 

A mão de Ana treme.

 

IOLANDA (CONT’D)
Queres que conduza eu?

 

O mar está próximo.

 

10. INT. CARRO – ENTARDECER
Iolanda evita qualquer tipo de contacto visual. Ela conduz, e é Ana quem segura o objeto como se ali dentro existisse algo quebradiço e vivo. Pressiona a tampa para baixo, como se o conteúdo pudesse se esvair pelo ar a qualquer momento.
Um telemóvel TOCA. Ambas buscam seus aparelhos, mas é o de Ana que está a tocar. Ela atende.

 

ANA
Oi, meu amor.

 

FILHA DE ANA (O.S.)
(voz feminina de uma
adolescente, abafada, mas audível)
Oi, mãe. Liguei só pra dizer
que tô com saudade.

 

ANA
(voz fraquejando)
Também tô, filha.
Como tá tudo por aí?

 

FILHA DE ANA (O.S.)
Ah. Bem. Tudo a mesma coisa.
A vó e eu vamos na santinha amanhã.
Levar umas velinhas. Quando cê vier
no verão a gente pode ir junto.

 

ANA
Isso. Eu também…
Eu tô na estrada.
(pausa)
Tô indo agora lá.

 

FILHA DE ANA
Onde?

 

ANA
Naquele lugar que te falei.

 

FILHA DE ANA
Tá levando…?

 

ANA
Tô.

 

FILHA DE ANA
Mas você tá…
com ela junto?

 

ANA
Tô, filha.

 

FILHA DE ANA
E como é que ela é?

 

Iolanda pisca, comovida.

 

ANA
(desconfortável)
Outra hora a gente conversa,
meu amor. Mas tá tudo bem.
Quando eu terminar
aqui, eu te ligo.

 

FILHA DE ANA
Tá.
(pausa)
Ela é bonita?

 

SILÊNCIO.

 

ANA
De noite eu te ligo e a gente
fala melhor. Tá bom? Te amo.

 

FILHA DE ANA
Tá. Tá bom, mãe. Te amo.

 

ANA
Te amo.

 

FILHA DE ANA
Tô muito orgulhosa de ti.

 

ANA
Brigada, meu amor.
Beijo. Te amo.

 

CHAMADA ENCERRADA.
Ana SUSPIRA fundo. Iolanda come uma bolacha recheada.

 

IOLANDA
Estamos quase.

 

ANA
É.
(pausa)
Você não queria colocar música?

 

IOLANDA
Ah. Sim. Toma.
Tenho o premium.

 

Iolanda entrega o seu telemóvel a Ana.

 

ANA
Bloqueou.

 

IOLANDA
A senha é 3008.

 

ANA
Trinta de Agosto?

 

IOLANDA
É.
(pausa)
O que queres ouvir?

 

ANA
Tanto faz.

 

Ana dá o play numa playlist aleatória. Iolanda ENGOLE EM SECO.

 

TELEMÓVEL
(canção Sua Estupidez,
na voz de Gal Costa)
“Meu bem, meu bem…
Você tem que acreditar em mim.
Ninguém pode destruir assim
um grande amor.
Não dê ouvidos à maldade
alheia e creia. Sua estupidez
não lhe deixa ver que eu te amo.”

 

Iolanda apanha outra bolacha. Ana faz o mesmo.

 

TELEMÓVEL
“Meu bem, meu bem. Use a
inteligência uma vez só, quantos
idiotas vivem só, sem ter amor…
E você vai ficar também sozinha e eu
sei porquê: sua estupidez não lhe
deixa ver que eu te amo.”

 

Elas compartilham um olhar de cumplicidade.

 

TELEMÓVEL
“Quantas vezes eu tentei falar
que no mundo não há mais lugar
para quem toma decisões na vida
sem pensar.”

 

ANA
(murmurando, baixinho)
Conte ao menos até três,
se precisar conte outra vez…

 

As lágrimas que estavam a ser contidas durante a viagem aparecem.

 

AMBAS
Mas pense outra vez, meu bem,
meu bem meu bem, eu te amo.
Meu bem, sua incompreensão já e
demais. Nunca vi alguém tão incapaz
de compreender que o meu amor é
bem maior que tudo que existe.
Sua estupidez não lhe deixa ver
que eu te amo, eu te amo tanto.

 

11. EXT. MONTANHA – ENTARDECER
O vértice de uma rocha, isolado, rodeado por água salgada e agitada, metros abaixo. As ondas DEBATEM-SE contra a pedra, salpicando gotas de mar em Ana e Iolanda.
Se aproximam da fronteira entre terra e céu. Ana retira a tampa do jarro. No seu interior, cinzas. Cinzas de uma imaterialidade que custa olhar.
Iolanda lhe afaga o ombro.

 

ANA
Sabes de uma coisa?

 

IOLANDA
O quê?

 

ANA
Ele odiava altura.

 

IOLANDA
Pois era.

 

Ambas dão de ombros. Sorriem uma para a outra, marcadas pela água salgada que vem de dentro, antes de jogarem as cinzas em direção ao mar. Liberando aquilo que restava de um amor em comum. Incomum.
As cinzas caem.

 

CORTA PARA:

12. EXT. PRAIA – ANOITECER
Iolanda SUBMERGE do mar. Afasta os cabelos dos olhos, lava o rosto. Está despida. Contempla o céu antes de mergulhar mais uma vez.
Ana a observa, com os olhos ainda marejados. Quando Iolanda volta a mergulhar, se nota a sombra de um sorriso nos lábios de Ana, que perdura. Ela também entra no mar, e mergulha.

 

FIM

MARINA SCHNEIDER

Marina Schneider é uma cineasta e argumentista luso-brasileira. Por meio da palavra, imagem e movimento, Marina busca mergulhar em narrativas de personagens entre-fronteiras e em transformação, tanto na ficção, quanto no documentário.

É mestra em Ciências da Comunicação pela Universidade NOVA de Lisboa – FCSH, onde criou e escreveu a minissérie “SEIS INCENSOS”, em desenvolvimento. É graduada em Cinema pela Universidade da Beira-Interior, com bolsa de especialização em Guionismo. Em 2023, foi professora de escrita cinematográfica na Casa do Brasil de Lisboa, dentro do programa Casa Cria: Dinâmicas para Artistas Migrantes.
O seu primeiro guião de longa-metragem, “EGUNCIO”, em desenvolvimento, foi premiado no Festival de Roteiro de Língua Portuguesa GUIÕES (2021) e finalista no FRAPA – Festival de Roteiro Audiovisual de Porto Alegre (2022). Como argumentista, foi selecionada para fóruns de co-produção internacional e laboratórios de escrita, entre eles: Brasil CineMundi (2024), DISC: Disrupt Industry Screenwriting Conference (2023) e Residência Dramatúrgica da Varazim Teatro (2022).

Em 2024, foi indicada ao prêmio Mostra Nacional de Jovens Criadores do Gerador, com o seu curta-metragem documental “DENTRO, FORA DO BRASIL”.

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