O Jardim das Oliveiras
um argumento de
António Borges Correia
ilustrado por
Sara Boiça
Ana é uma atriz intermitente que se encontra num momento de transição e decide voltar à terra dos seus antepassados para se compreender a si própria e ao seu Presente./span>
1. EXT. TERRENO OLIVEIRAS. FIM DE TARDE
Outono. Plano geral de pequenos terrenos em socalcos que terminam no castelo medieval. Abundam as oliveiras e grandes pedras de granito. A gradação de cinzentos do céu rima com o granito das pedras. Passamos para o detalhe – a luz tímida do sol já baixo ilumina as oliveiras.
2. EXT. RUAS MARIALVA. FIM DE TARDE
Som de um trolley muito ao longe. Câmara baixa. Numa rua estreita, a mão enrugada de uma MULHER (70) pousa um prato com restos de comida. Instantes depois, aparecem vários gatos vadios que disputam a comida. Planos gerais das ruas desertas da aldeia de Marialva. Não se vê ninguém. O som do trolley aproxima-se. Subitamente, entram as rodas no plano. Revela-se ANA (45) que transporta o trolley. Na outra mão traz um saco com uma caixa dentro. Ana está vestida com roupa prática de meia estação em tons castanho e bege.
3. EXT. CASA MANUEL / GRAÇA. FIM DE TARDE
Ana atravessa o pátio, por entre as galinhas, os gatos e o cão. Ana pousa o trolley e o saco frente à porta de entrada. Bate à porta.
ANA
Manuel!
Bate à porta de novo.
ANA
Graça!
Afasta-se e bate à porta da Loja. Volta a chamar.
4. EXT. CEMITÉRIO CASTELO. CREPÚSCULO
O sol desaparece no horizonte. Plano geral do Castelo de Marialva que identifica o cemitério no seu interior. Há, também, uma Igreja no interior das muralhas. Ouve-se o som da missa. Do portão do cemitério vê-se a entrada da Igreja. Ana vem com dois ramos de flores. Abre o portão do cemitério. É um portão muito antigo de ferro maciço, pesado e muito enferrujado. Ana volta a fechar o portão. Estamos nas costas de Ana, que se aproxima da campa com duas lápides contíguas. Deste ponto de vista, o horizonte revela a geografia plana de pedras graníticas, parece não ter fim. Ana coloca os ramos de flores na campa do pai e da mãe. Fica ali por instantes. O plano frontal do rosto de Ana tem, em fundo, as poucas pessoas que saem da missa na Igreja do Castelo. Nas lápides, vemos os nomes e fotografias dos pais de Ana. Impassível, Ana olha para as lápides. Instantes depois, pousa uma foto do casamento dos pais entre as lápides.
Ana afasta-se na direção do portão para sair. Puxa o portão para si. Faz mais força, pois o portão não cede. Faz mais força, agora com as duas mãos, mas o portão não mexe. Continua a forçar numa duração inusitada. Faz uma pausa, estranhando. Volta a fazer mais força num vago desespero. Não consegue abrir. Olha para fora, não vê ninguém. Volta a tentar abrir. O PÁROCO (40) da aldeia sai da Igreja, reparando no desespero de Ana, sem que ela o veja. O Pároco sorri e aproxima-se. Cumprimentam-se.
PÁROCO
Tem truque.
Faz força para cima e abre o portão.
ANA
Obrigada.
Ana reage a alguém que vê ao longe e afasta-se do Pároco, deixando-o, sem querer, a falar sozinho.
PÁROCO (O.S.)
As tarefas mais simples
podem não ser as mais fáceis.
Ana dirige-se a MANUEL (55) que veste roupa de trabalho. Ana, num gesto súbito, abraça-o com força.
5. INT. COZINHA CASA MANUEL / GRAÇA. NOITE
Ana, Manuel, GRAÇA (60) jantam, final de refeição. A troca de olhares é de quem não se vê há muito tempo, não são olhares de desconfiança. Após um silêncio desconfortável e perante os olhares de Manuel e Graça, Ana quebra o gelo.
ANA
Já não me lembrava deste sabor.
GRAÇA
São couves aqui da horta.
MANUEL
Praticamente não precisamos
de ir ao supermercado, temos
quase tudo aqui…
GRAÇA
E o teu marido?
ANA
Já não é.
Manuel repreende Graça com um olhar furtivo.
GRAÇA
Ah não?… Se tivésseis um
filho ou dois já não estavas
sozinha.
Graça apercebe-se do olhar censor do irmão.
MANUEL
Há quanto tempo cá não vinhas?
ANA
Não sei, dez anos…
perdi a conta, talvez quinze.
MANUEL
Vais matar saudades agora.
GRAÇA
Da família já abalaram quase todos,
uns emigraram, outros foram para
Coimbra, ou para Lisboa… quem
ainda vive na aldeia é o Fernando,
o rapaz que foi teu namoradito…
ANA
Lembro-me.
GRAÇA
Pois não te havias de lembrar?
MANUEL
Agora é apicultor.
GRAÇA
E faz muito sucesso o mel dele.
MANUEL
Levo-o todos os meses à consulta
e aos tratamentos no Porto. Ele
não conduz, então faço sempre
gosto em levá-lo.
ANA
Está doente?
MANUEL
Não. Tem é de ser visto pelo
médico especialista todos os meses.
É alérgico às abelhas.
ANA
Mas é grave?
MANUEL
Se for picado sim.
Mas receitam-lhe umas
canetas que se injetam…
ANA
Logo o procuro também.
GRAÇA
Vou dar de comer às galinhas.
Vós ficais, já vos trago umas maçãs.
Graça sai. Pausa grande.
MANUEL
Não leves a mal a minha irmã.
Sempre foi metediça.
Tomas um café?
Ana ganha coragem.
ANA
Manuel, preciso de te falar algo
que tem de ficar entre nós.
Eu também vim por uma outra razão,
mas quero ser discreta e preciso
da tua ajuda.
MANUEL
O que é que se passa?
ANA
Venho à procura do tesouro
com libras de ouro que o avô
deixou enterrado no terreno à
beira do castelo.
MANUEL
Ah isso foi uma história que ele
contou pouco antes e morrer…
MANUEL
Chamava-lhe “o jardim
das oliveiras”.
ANA
Não podes comentar com ninguém
por favor. Não quero falatório…
MANUEL
Acho que isso é uma lenda…
ANA
É uma cisma que eu tenho
e sinto que devo fazer alguma
coisa, até para honrar a memória
do avô.
MANUEL
Mas olha que não
sei se é verdade…
ANA
Ajudas-me?
6. INT. CORREDOR CASA MANUEL / GRAÇA. NOITE
Graça segura três maçãs no avental suspenso. Só agora percebemos que está parada, no corredor, à porta da cozinha, tentando ouvir a conversa entre Ana e Manuel.
7. INT. QUARTO ANA. NOITE
Ana, sentada na cama, lê um livro.
GRAÇA (O.S.)
Posso?
Ana pousa o livro.
ANA
Entra.
Graça entra com um jarro de água e um copo.
GRAÇA
Deixo-te um jarrinho de água
na mesa de cabeceira.
ANA
Não quero dar trabalho, se
tiver sede vou à cozinha.
GRAÇA
Não dás trabalho nenhum…
Graça pousa o jarro e o copo na mesa de cabeceira, dirige-se à porta para sair, mas detém-se e fica a olhar para Ana por instantes. Ana reage com um olhar desconfortável.
ANA
Obrigada.
GRAÇA
Estavas a rezar…
ANA
Não.
GRAÇA
Estavas estavas.
ANA
Não tenho esse hábito.
GRAÇA
Mas estavas.
ANA
Não.
GRAÇA
Eu ouvi-te rezar.
ANA
Impressão tua.
8. EXT. TERRENO TESOURO. MANHÃ
Ana e Mário percorrem o terreno. Não conseguem identificar os marcos. Ana observa o perímetro onde vai procurar o tesouro, mas sente-se perdida. Manuel aproxima-se.
MANUEL
Tens que pedir ajuda
a um topógrafo.
9. INT. QUARTO ANA CASA MANUEL / GRAÇA. TARDE
Ana rasga o papel pardo que envolve o objeto e abre a caixa de onde retira um detetor de metais. Senta-se na cama e observa o detetor como se se tratasse de uma obra de arte. Graça espreita, desde o corredor, para o interior do quarto de Ana sem que esta a veja. Ana monta as peças do detetor.
10. EXT. TERRENO TESOURO. TARDE
Ana, rosto suado, vestida com equipamento térmico, calçada com botas de campo, está em ação com o detetor de metais, de auscultadores, caminhando vagarosamente pelo terreno. Um plano geral revela a relação de proximidade entre o terreno e o Castelo, num estágio superior. Em cima de uma fraga, fora do campo de visão de Ana, Graça observa-a.
11. INT. QUARTO ANA / CASA MANUEL. NOITE
Ana está sentada na cama, encostada à cabeceira. Continua a sua leitura. Ouve-se bater à porta. Ana reage ao som e vê a porta abrir lentamente. Graça entra com um jarro de água e um copo e deixa-o em cima da mesa de cabeceira. Ana segue os seus movimentos, vagamente intrigada. Graça aproxima-se da porta para sair.
GRAÇA
Boas noites.
ANA
Bom descanso prima.
Graça para e vira-se para Ana e sorri.
GRAÇA
É muito importante o descanso.
Há noites em que o descanso é pouco…
Graça continua a sorrir. É um sorriso amistoso e de admiração. Ana, expectante, não entende aquele sorriso, mas também não precipita nenhuma reação. Graça, que estava de saída, senta-se
aos pés da cama. Ana, surpreendida, continua expectante, disfarçando a estranheza que sente naquela abordagem de Graça. Graça perde o sorriso e entra num transe, enquanto relata, sem olhar para Ana.
GRAÇA
Matei um homem… deves ter ouvido
falar. Estive presa 11 anos em
Tires, lá perto de Lisboa.
ANA
Nunca te fui visitar…
GRAÇA
Eu não queria. Não sei se
o meu irmão te disse…
eu não queria visitas.
Pausa. Ana, impassível, encara Graça.
GRAÇA
Ninguém viu. Era só eu e ele.
O sol já se tinha posto.
Não tinha dúvidas que o homem
queria abusar de mim, até
porque não era a primeira vez
que tentava. Eu estava ali
sozinha a cavar e só tinha a
minha enxada. Foi a minha enxada
que me salvou. Acreditas em mim?
ANA
Sim.
GRAÇA
Mas como se tivesses visto?
Consegues ver?
ANA
Consigo imaginar sim, acredito.
GRAÇA
O que as pessoas fazem,
mal ou bem, não morre com elas.
Graça vira a cabeça para Ana e observa-a com um olhar ameaçador.
12. EXT. APIÁRIO FERNANDO. MANHÃ
Numa zona abrigada por florestação e junto a um pomar, FERNANDO (45) trabalha no apiário. Vêmo-lo de costas com o equipamento de proteção completo. Fernando fumega as colmeias para acalmar as abelhas. Detalhe da fumaça. Mais afastada, aparece Ana. Observa Fernando, ao longe, ainda de costas. Fernando para de fumegar quando ouve o pisar de um restolho. Fernando vira-se e vê Ana aproximar-se.
FERNANDO
Não se aproxime.
Ana vira-lhe as costas e vai embora. Fernando afasta-se do apiário, retira a máscara, e segue Ana, intrigado, tentando alcançá-la.
FERNANDO
Ana! És tu?
Ana vira-se. Fernando olha para Ana e vê ANA com 18 anos. Lentamente, o plano funde com Ana atual.
ANA
Desculpa, não devia ter vindo.
FERNANDO
Percebeste mal, não te estava
a mandar embora. Como te vi
a aproximar das abelhas e podia
ser perigoso…
ANA
Mesmo assim, não devia ter vindo.
FERNANDO
Porquê?
ANA
Estás a trabalhar.
FERNANDO
Mas posso parar, pelo menos
para te cumprimentar…
(sorri) Ou não mereces?
ANA
Hum?
FERNANDO
Há quanto tempo?
13. INT. QUARTO ANA. MANHÃ
Graça tenta pôr o detetor de metais a funcionar. Sem saber como, consegue ligar, mas assusta-se com o barulho e desliga. Tenta deixá-lo no mesmo sítio, para não se suspeitar que foi mexido.
14. EXT. CAFÉ CENTRAL. CREPÚSCULO
Ao fundo, o horizonte cinzento da pedra e o azul do crepúsculo. O plano abre e revela um terraço que é a esplanada do Café da aldeia. Ana sente-se cercada pelos autótocnes, mas ignora, sorri e continua a beber brandy de um cálice. Começa a chover. Ana levanta-se cambaleante. Já de pé, desequilibra-se e, apoia-se na mesa, fazendo cair copos e garrafas. Detalhe de copos e garrafas que se partem no chão. Fernando aparece à porta do Café e olha para Ana.
15. EXT. RUA ALDEIA.NOITE
Chove. Fernando caminha pela rua. Ana, ébria, vai apoiada nas costas de Fernando. Ana, nostálgica, olha para Fernando que, pelo seu ângulo de visão, não se apercebe do olhar dela.
16. INT. SALA FERNANDO. NOITE
Ouve-se a chuva. Plano geral da sala espartana. Fernando deita Ana no sofá. Ana dorme. Fernando despe-lhe o casaco encharcado e tapa-a com uma manta.
17. EXT. APIÁRIO FERNANDO. MANHÃ
Sol ainda baixo denuncia o início da manhã. Fernando coloca calços sob os pés traseiros da colmeia por forma a conseguir uma inclinação para escoar as águas infiltradas. Fernando levanta-se. Tem o rosto suado. Levanta um pouco a máscara para limpar o rosto. Subitamente é picado por uma abelha e entra em pânico. Desorientado, começa a andar, cambaleante. Gradualmente vai perdendo força nas pernas. Cai. Rasteja em direção a casa. Sente dificuldade em respirar. Ofegante, continua a rastejar, em transe.
18. INT. SALA FERNANDO. MANHÃ
Ana dorme. Ouve-se uma porta abrir. Fernando entra em casa, rastejando na sua agonia. Já com os olhos semicerrados e com os lábios levemente arroxeados, Fernando tenta chegar ao sofá onde está Ana. Vemos o rosto de Ana o detalhe da mão de Fernando que entra em campo.
Fernando abana o rosto de Ana que acorda sobressaltada e confusa. Ana puxa Fernando para cima.
FERNANDO
(com dificuldade em falar)
Caneta…
Ana não percebe de imediato. Fernando insiste apontando para a cómoda.
FERNANDO
(mal se percebe o que diz)
Caneta…
Fernando, com esgares impercetíveis, aponta para uma cómoda. Ana, num acesso de lucidez, levanta-se e vai em direção à cómoda. Afasta papéis. Abre a primeira gaveta. Abre a segunda gaveta e encontra uma caneta (auto injetor de epinefrina). Plano de Fernando, quase inconsciente. Subitamente, num plano geral, Ana administra o injetor. Lentamente, Fernando começa a ganhar consciência. O Plano permanece fixo com Ana e Fernando prostrados no sofá.
19. EXT. TERRENO OLIVEIRAS. MANHÃ
Corte brusco para o detalhe do detetor de metais. Ana movimenta-se no terreno com o detetor na procura do tesouro. Instantes depois, desliga o detetor e fica apreensiva, olhando para uma pedra, ainda longe do local onde está. Tira os auscultadores, muito intrigada.
Elipse. Perto dessa pedra, estão Ana e Manuel. Olham para a pedra e para a terra remexida à volta da pedra.
ANA
A terra está remexida… e não
fui eu. Nunca estive nesta zona.
MANUEL
Estranho.
ANA
E esta pedra também foi deslocada.
Alguém sabe do tesouro.
MANUEL
Por mim não foi de certeza.
ANA
Eu sei primo.
MANUEL
Pediste segredo…
ANA
Eu sei e confio em ti.
Elipse.
Ana, com o detetor de metais e auscultadores, continua a busca do tesouro. Movimenta-se um pouco mais rápido do que o habitual, está com pressa, desconcentrada, parece um autómato. Interrompe o movimento. Tira os auscultadores. Olha para a terra. A sua expressão denota tristeza, desistência. Elipse. Grande plano de Ana em montagem paralela com o detalhe da prancha do detetor junto ao solo. A montagem alterna planos cada vez mais curtos, algo que lhe confere um tom frenético e que só culmina com o detalhe da luz vermelha e do alerta sonoro vindo do detetor. Ana desliga o detetor e mexe na terra muito devagar, com um misto de receio e ansiedade. Sente algo na mão que retira da terra. É um fio dourado com uma medalha que sugere uma figura, mas a terra impregnada não permite uma leitura percetível dessa figura. Ana tira os auscultadores e senta-se, exausta. Olha para o fio, olha para o horizonte, deixa-se cair até ficar deitada no solo de barriga para cima a olhar o céu. Elipse. Ana volta ao trabalho, agora num registo revigorado e determinado. Liga o detetor, mas nada, não funciona. Liga de novo, mas nada. O detetor está avariado. Ana vai para destruir o detetor, mas interrompe-se.
20. INT. COZINHA MANUEL / GRAÇA. NOITE
Ana prepara o jantar, põe uma panela de ferro na lareira, corta legumes. Manuel entra na cozinha.
MANUEL
Então e hoje?
ANA
Nada… e o detetor
deixou de funcionar.
MANUEL
Amanhã estou de folga,
posso tentar repará-lo.
ANA
Deixa lá, não acredito que
tenha conserto. Não é um
detetor profissional.
MANUEL
Talvez na loja de ferragens do
Sr. Mateus na Mêda. Amanhã tenho
de levar o Fernando à consulta,
mas antes deixo-te na Mêda.
Pode ser que ele venda…
Manuel é interrompido por Graça que entra com um molho de couves para a sopa.
21. INT. LOJA FERRAGENS. MANHÃ
O SR. MATEUS (60) está ao balcão a escrevinhar algo. Ana entra. O Sr. Mateus e Ana trocam olhares furtivos. O Agricultor paga o produto e sai. Mateus sorri, demoradamente, para Ana, tentando vislumbrar quem é.
MATEUS
Conheço a senhora…
ANA
Não sei, os meus pais
eram de Marialva…
MATEUS
Não estou a ver.
ANA
Filha do Rogério
e Maria do Rosário.
MATEUS
Ah sim, boas pessoas…
estou a ver sim e talvez você
não saiba, mas fui eu que
comprei o jipe ao seu pai quando
ele já não podia conduzir.
ANA
Lembro-me desse jipe…
MATEUS
Então, no que posso ajudá-la?
ANA
Procuro detetores de metais.
MATEUS
Ah não, não tenho, nunca tive…
isso é um produto que muito
comerciante vende, mas depois as
pessoas usam assim sem mais nem
menos sem saber e sem ter
autorização.
ANA
Entendo.
MATEUS
Conheço um rapaz que faz
detetorismo, que até tem uma loja
autorizada com tudo certificado,
mas é em Aveiro, são quase 200 kms
daqui, não sei… mas, para que
quer um detetor?
ANA
(interrompe)
Posso ver o jipe que
comprou ao meu pai?
22. INT. GARAGEM MATEUS. MANHÃ
Ana e Mateus entram na Garagem. Mateus retira a lona que cobre o veículo, um Land Rover dos anos ‘70.
MATEUS
Estimo muito este jipe, sabe?
E de vez em quando dou umas
voltas com ele aos fins de semana.
Ana acaricia a fechadura e o assento do condutor. Ana entra no Jipe para o lugar do pendura e olha para o lugar do condutor.
23. INT. EXT. JIPE MATEUS / ESTRADA FOZ CÔA. MANHÃ
Mateus conduz o jipe. Ana, sentada no lugar do pendura, vai observando a paisagem. Sorri para Mateus. Mateus põe uma cassete no leitor e faz ‘play’.
MATEUS
Aprecio bastante a
música dos anos ‘70!
Ouve-se uma música rock dos anos ‘70. Sorriem. Plano da estrada que é uma planície de pedra.
24. EXT. TERRENO TESOURO. MANHÃ
Ana observa o Técnico de deteção, RICARDO (35) que vai preparando o seu equipamento enquanto fala. Ana, impassível, disfarça alguma ansiedade, dado que o detetorista manipula o equipamento com excessiva minúcia, atrasando aquilo que interessa, a procura do tesouro.
RICARDO
Isto é assim: a lei está obsoleta.
Não é permitido usar detetores de
metais sem Licença. Não percebo
porque não se faz como noutros
países. O detetorista encartado
também trabalha para recuperar
vestígios… claro que depois
os entrega às instituições
competentes, museus…
Ricardo começa a prospeção ao terreno usando já o detetor. Ana segue-o, ansiosa. Encadeado. Noutra zona, Ana segue Ricardo que continua a prospeção. Encadeado. Ricardo continua a prospeção. Ana, sentada numa pedra, observa os movimentos dele. Encadeado. Manuel traz o farnel. Ana e Ricardo almoçam. Ana segue Ricardo na busca do tesouro. Encadeado. A ação repete-se. Encadeado. Ricardo continua a andar com o detetor numa linha reta. Ana, agora mais afastada, encostada a uma oliveira, observa-o. Ricardo tira os auscultadores, deixa o detetor por ali e dirige-se a Ana.
RICARDO
Oiça, já percorri o terreno duas
vezes. Não há nada debaixo desta
terra a não ser terra… lamento.
Ana reage resignada.
25. EXT. TERRENO TESOURO. FIM DE TARDE
Sucessão de detalhes: mãos de Ana que pegam na terra e a deixam esvair-se; as pedras e as flores nascidas nos interstícios das pedras; flare provocado pelo contraluz de fim de dia. Plano Geral nas costas de Ana com o terreno ao fundo. Vemos agora o rosto de Ana que olha para o terreno como se fosse o último olhar. É a despedida.
26. EXT. CEMITÉRIO CASTELO. TARDE
Ana abre o portão do cemitério. É um portão muito antigo de ferro maciço, pesado e muito enferrujado. Ana arrasta uma pedra pelo solo e encosta-a ao portão para se manter aberto. Dirige-se à campa do pai e da mãe. Instantes depois, retira, do bolso, o fio de ouro com a medalha impercetível que encontrara no Terreno. Deixa o fio em cima da lápide da mãe.
27. INT. COZINHA CASA MANUEL / GRAÇA. TARDE
Manuel descasca uma maçã vagarosamente. Um bule de chá está ao lume. Ana aparece.
ANA
Vou agora.
Abraçam-se.
MANUEL
Vai com Deus.
ANA
A Graça?
MANUEL
Está à tua espera no quarto dela.
28. INT. QUARTO GRAÇA. TARDE
Graça, sentada na cama, está a coser o avental. Ouve-se bater à porta.
GRAÇA
Entra.
ANA
Vou embora.
GRAÇA
Já vais?
ANA
Já. Fiquei até mais tempo
do que previa. Tenho trabalho
para preparar.
GRAÇA
Que seja então.
ANA
Obrigada, muito obrigada por tudo.
Ana faz menção de sair. Graça levanta-se.
GRAÇA
Não vás já!
Ana volta-se, estranhando. Graça abre a gaveta da cómoda de onde tira um objeto envolto num pano. Graça abre o pano. Ana, incrédula, vê o tesouro que Graça abre, revelando as libras de ouro. Projeta-se uma luz dourada no rosto de Ana.
GRAÇA
Onde há ruína, há esperança
de encontrar um tesouro.
As duas olham-se demoradamente. Graça estende o tesouro a Ana que o recebe e segura. Ana sorri e devolve o tesouro a Graça.
ANA
Uma parte de mim
fica aqui na Terra.
29. EXT. ESTRADA MARIALVA. FIM DE TARDE
Ana conduz o jipe Land Rover que conduzira antes. Ouve-se a continuação da música dos anos’70. Plano geral da estrada com o jipe e a aldeia de Marialva em fundo que vai ficando cada vez mais longe.
FIM
ANTÓNIO BORGES CORREIA
Realizador (1966).
Licenciatura em Cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema.
Estágio no filme “A Caixa” de Manoel de Oliveira.
O caminho começa entre a Escola de Cinema e a Cinemateca, atraído por filmes que exploram identidade e memória. Ainda hoje me sinto estudante, longe das convenções e das fronteiras entre realidade e ficção. Sigo o mistério do cinema que convive com o mistério da experiência humana. Continuo a refletir sobre o cinema como um campo de experiências sobre a vida, mas sobretudo sobre a própria linguagem cinematográfica e, por princípio, com uma forte componente humanista.
As curtas metragens surgem a partir 1998, com realce para “Golpe de Asa” que percorre alguns festivais com destaque para Locarno. A partir de 2007 começo a explorar a linguagem documental onde os personagens se representam a si próprios num conceito de mise-en-abyme. Vários filmes – “O Lar” / “Parto” / “Gesto” / “Rapaz Só”), baseados nesse conceito, percorrem diversos festivais internacionais (Cinéma du Reél, Mexico City IFF, Hong Kong IFF, Gijón IFF, Bafici Buenos Aires, Santiago do Chile CineB, FCDE Belo Horizonte, Curitiba IFF, DocLisboa IFF, FIV Québec e Festin. “Os Olhos de André” é o filme mais viajado. Obteve três prémios no IndieLisboa 2015.
“A Mulher Sem Corpo” obteve o prémio de melhor filme (CN) no FantasPorto 2021.
Em 2024, o filme “Na Mata dos Medos” obtém o Prémio de Melhor Longa-Metragem pelo Júri Popular da 15a edição do FESTin – Festival de Cinema Itinerante de Língua Portuguesa. Estreia comercial nos cinemas a 14 de Novembro de 2024.
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