FUNDO NEGRO
Ouvimos o vento. Uma voz feminina adulta sobrepõe-se.
QUERIDA (V.O.)
Oito segundos.
A voz de QUERIDA treme.
QUERIDA (V.O.)
Oito segundos e setenta e duas
milésimas. É o tempo que uma moeda
de duas gramas e meia demora a cair
dos cento e dois andares do Empire
State Building sem contar com a
resistência do ar.
MONTAGEM – FILMAGEM CASEIRA SUPER 8
– Querida, com quatro anos, desembrulha presentes na alcatifa da sala. A luz das janelas iluminam a árvore de Natal que está ao canto.
– Querida, com sete anos, no teatro da escola. Tem uma cartola por cima dos cabelos loiros, um bigode falso e uma varinha na mão. A câmara vira-se para os pais que se riem e batem palmas.
QUERIDA (V.O.)
E se fosse uma pessoa a cair?
– Querida, com 10 anos, na casa-de-banho, dança e canta com uma escova que serve de microfone, olhando para o espelho.
QUERIDA (V.O.)
E se fosse eu?
– A câmara faz zoom em Querida que continua a cantar, olhando ora para a câmara, ora para o cão que deambula animado à volta dela.
FUNDO NEGRO
Ouvimos gemidos femininos.
QUERIDA
Sim. Oh sim!
Os gemidos intensificam-se.
INT. ROOFTOP – DIA
Enquanto os gemidos continuam, vemos a cara de GASTÃO (45), que, com uns óculos fundo de garrafa, olha despreocupadamente para a sua frente enquanto come uma maçã.
QUERIDA (O.S.)
Isso, isso!
Vemos agora, sentado, PAULO (48), de calções e uma camisa havaiana velha. Está inclinado para trás, com olhar crítico e empinado. HUGO (39), bigode e uma camisa havaiana ainda mais espalhafatosa que a de Paulo, está ao seu lado. Olham ambos atentamente para a frente.
JULIO (26), alto e esguio segura, em esforço, numa perche por cima da sua cabeça.
Finalmente vemos QUERIDA (27) que geme e grita efusivamente.
Por cima dela está MARCO (30), um homem extremamente musculado, com uma máscara estilo Texas Chainsaw Massacre, que move a anca de forma mecânica na direção de Querida.
Hugo e Paulo olham insatisfeitos um para o outro.
PAULO
Ok, corta.
Um rooftop vazio, que tem tanto de branco, como de genérico. No espaço aberto, vemos luzes, câmaras, cabos e uma equipa inteira de filmagens. Num sofá, Querida está estendida de barriga para cima. O branco de um chamativo vestido de noiva cobre-a. Por trás, um gigante bolo de casamento.
PAULO
Não, não, mantenham as posições.
Paulo aproxima-se de Querida.
PAULO
Querida, estás a arrasar,
fantástico. Brilhante. Mas vamos
tentar algo novo. Precisamos de
algo mais… intenso.
Genuíno. Algo que seja
transcendente, que transcenda
o espetador, todos os seus medos,
todas as suas preocupações, para
este telhado, para este momento.
QUERIDA
(não convencida)
Transcendente?
PAULO
Sim, transcendente.
É quando uma pessoa é de…
QUERIDA
Eu sei o que quer dizer transcendente.
PAULO
Boa, sabes normalmente
as pessoas da tua área não…
Querida franze uma irritada sobrancelha. Paulo dá um passo atrás.
PAULO
Bem, vamos avançar.
Marco, perfeito.
Querida, mais emoção.
Marco estende orgulhosamente o polegar a Paulo. Querida respira fundo.
QUERIDA
(para si)
Ok, bora lá,
tu és profissional,
tu és profissional,
tu és profissional.
Paulo senta-se novamente ao pé de Hugo. Olham através do ecrã de uma televisão velha ao seu lado.
PAULO
Não gosto muito da voz.
HUGO
(penteando o bigode)
Podemos contratar alguém
melhor para dobrar em pós.
PAULO
Não, tem que ser real.
Tem que transcender.
Fica pensativo a olhar para o ecrã.
PAULO
(baixo)
Gostas do tom dela, de pele?
Não estou a gostar nada.
HUGO
Nada, nem um bocadinho.
É de fumar.
Paulo levanta-se.
PAULO
(alto)
Gastão, não consegues baixar a luz?
GASTÃO
(ainda a mastigar a maçã)
Se baixo mais, vais perder as
silhuetas cinematográficas.
PAULO
Pois, não, as silhuetas não se
podem perder, elas transcendem.
Não gosto muito da pele dela pah.
GASTÃO
Pois. Também não gosto muito, não.
Ainda debruçada, Querida olha para os homens que continuam a conversar.
PAULO
É. E um refletor?
Gastão pega no refletor e coloca perto de Querida. Gastão não nota quando o refletor bate na cabeça de Querida.
GASTÃO
Assim?
PAULO
Perfeito. vamos para take.
(tosse) Ação.
Querida começa a gemer. Quando olha para cima vê Marco e a sua máscara, o que a faz desviar o olhar. Continua a gemer. Até que a perche quase lhe toca na cabeça. Ela para.
QUERIDA
Desculpem, isto precisa
de estar tão perto de mim?
Paulo suspira.
PAULO
Corta!
Paulo levanta-se irritado.
PAULO
Julio, consegues afastar?
JULIO
Vou apanhar ruído.
PAULO
Pois, pois, ruído, não.
Percebes, não percebes querida?
QUERIDA
E Paulo… já agora.
PAULO
Sim?
QUERIDA
Eu não sei se estou a
perceber a história.
PAULO
(irritado)
Não leste o guião?
QUERIDA
Li, li, e é óptimo!
Mas fiquei com algumas dúvidas.
PAULO
(indignado)
Dúvidas?
QUERIDA
Sim, é que…
PAULO
(suspira)
Tu és uma mulher, que depois da
morte do marido, perdeu o sentido
de viver, assolada pela força
implacável do luto. Resultado de
um passado sombrio, decides voltar
a estudar, o que te faz viajar até
aos recônditos da tua frágil e
salgada inocência. Não está claro?
QUERIDA
Não, não, está. Apenas, porque
é que ele tem que usar aquela
máscara?
PAULO
A máscara representa o que é real.
O êxtase e o fulgor pelo desejo
para encontrares alguém que te
volte a dominar. O Marco.
QUERIDA
Mas então ele não devia estar
dentro de mim? Para ser…real?
PAULO
(sorri)
Querida, as emoções devem ser
reais. Isto é um filme, certo?
QUERIDA
Ok… e é preciso estar vestida de
noiva? O bolo de casamento…
não é um bocado demais?
PAULO
(abana a cabeça)
O bolo é para o final Querida,
não ponhas a carroça à frente
dos bois.
Paulo afasta-se e volta para o seu lugar.
PAULO
Ok, vamos para mais um take.
Querida exaspera.
PAULO
De quatro agora.
Querida coloca-se de joelhos e mãos no chão. Marco por trás dela.
PAULO
Ação!
Querida geme. Vemos a bacia de Marco contra o rabo de Querida.
PAULO
Mais emoção! Tem que ser real!
Querida geme mais.
PAULO
Mais. Mais.
Queria revira os olhos e fecha os punhos cada vez mais frustrada. Os gemidos tornam-se quase em gritos.
PAULO
Mais. Real! Emoção!
Querida GRITA em desespero, como se fosse dor. A equipa olha em choque. Marco fica parado.
Querida vira os olhos para Paulo.
QUERIDA
Queres mais emoção? Queres mais
emoção? Eu dou-te a emoção! Queres
emoção vai para a Disneyland.
Aproveita e leva esse teu amigo,
aposto que esse bigode de tarado
vai fazer um sucesso ao pé de crianças.
Querida levanta-se. Aproxima-se de Julio, o operador de som.
QUERIDA
E tu, consegues ouvir-me agora,
ou o som está com ruído?
Ninguém vê isto pelo som, meu,
isto não é um podcast.
Julio dá um passo atrás, aterrorizado. Querida vira-se para Paulo.
QUERIDA
Queres fazer uma obra-prima? Hmm?
Achas que isto é o Citizen Kane?
Bem, o Kane ainda percebo com a
máscara e tal, fora isso, estás à
espera do quê? Atenção, atenção,
Gone With The Wind? Godfather?
Abram alas para Jurassic Porn 3
e Clockwork Orgy, a passadeira
vermelha espera-vos.
Querida faz uma vénia e fica ainda mais irritada. Aproxima-se, de indicador estendido, de Hugo e Paulo.
QUERIDA
E queres que te conte um segredo?
(segreda) “Pizza boy seduz dona de
casa excitada” não é propriamente
guião para limpar os óscares tão
cedo. (levanta a voz) E uma questão.
Uma questão que todos queremos saber.
Em que parte do guião é que a força
implacável do luto ou os recônditos
da salgada infância se traduzem no ecrã?
Olha à sua volta, a tremer, à procura de respostas. Todos olham para ela atónitos e em silêncio.
QUERIDA
Digam-me lá. É na parte que digo
“Sim, papá, por favor, espeta-me
com força” ou na, e passo a citar
“o teu grande mangalho faz-me
delirar Artur”? E já agora, porque
é que dão sempre nomes próprios aos
gajos e eu sou sempre Housewife 2
ou Stepmom 3?
Olha para Gastão.
QUERIDA (CONT’D)
E tu, meu energúmeno do refletor.
Não gostas da minha pele? Sempre
com a merda das luzes. Queria-te
ver a fazer um broche com não sei
quantos watts apontados à fuça.
Vá anda para aqui, não queres ser
a estrela “querida”? Isto tem mais
holofotes que Broadway meu, porque
nada grita mais “passado sombrio”
do que Leds apontados aos cornos.
Furiosa, volta-se novamente para Paulo.
PAULO
Querida…
QUERIDA
Cala-te! Não querias algo real?
Algo transcendente ou intemporal?
Queres dobrar alguma coisa?
Dobra os joelhos e vem tu
para aqui, ver se te consegues
concentrar com o Freddie
Krueger em cima de ti.
Suspira a olhar para Marco.
QUERIDA
E tu? Era isto que querias fazer?
De certeza que por trás dessa
máscara aterrorizadora e desses
esteróides todos, passando por
inúmeros mommy issues, coisas
por resolver e provavelmente
DSTs, está um rapaz com sonhos…
Onde estão esses sonhos?
Querida para por um momento. Olha para baixo. Fecha os olhos. Pequenos flashes aparecem no ecrã:
– Querida, sete anos, a pousar para o espelho com o seu cão.
– Querida, dez anos, a ver o Singin’In The Rain projetado na parede da sala.
– Querida a cantar com a escova.
Voltamos a Querida (27), que abre os olhos.
QUERIDA
Onde estão os meus sonhos?
Uma lágrima escorre pela cara de Querida. Os elementos da crew olham uns para os outros sem saber como reagir.
QUERIDA
Não foi isto que eu sonhei.
Eu queria ser atriz…
Coloca as mãos na cara. Aproximamo-nos dela.
QUERIDA
Eu queria ser…
Chora. Respira fundo.
Um spotlight acende por cima dela. O resto fica escuro.
Querida olha determinada para a frente. Começa a cantar.
QUERIDA
“Sempre quis atingir a glória
Só atingi um glory hole
Sempre quis fazer história
Mas estou a filmar um foot fetish role!
Sonhei com a red carpet
Não em estar deitada nela
Sonhei em ser media target
Não filmar com uma trela”
A crew entreolha-se. Estão cada vez mais confusos. Menos Marco que abana o pé ao som da música.
Ouvimos umas notas de piano. É Gastão que toca. Bailarinas com strap-ons vestidos juntam-se a Querida que continua a cantar.
QUERIDA
“5 minutos de fama passaram
a 5 minutos com 3 homens na cama
(5? na melhor das hipóteses).”
BAILARINAS
(coro)
“Para onde foram os sonhos?”
QUERIDA
“Um futuro brilhante,
trocado por camadas
de lubrificante.”
BAILARINAS
(coro)
“Para onde vão os sonhos?”
QUERIDA
“Um guião fantástico,
trucidado por um pénis
de plástico.”
As bailarinas saem de cena. O ritmo da música abranda.
Aproximamo-nos de Querida que fica agora mais séria.
QUERIDA
(quase falado)
“Para onde vão os sonhos?
Não para aqui. Não para aqui.”
Gastão retoma o ritmo do piano, tocando cada vez com maior intensidade.
QUERIDA
(em crescendo)
“Por isso digo-vos Adieuuuuu.
Goodbyeeee. Fuck youuuu.
A minha vida começa agora.
Um início brand newwwww!”
Querida abre os braços em grande no último verso.
Querida sorri, confiante, vencedora, ofegante, enquanto recupera o folego.
PAULO (O.S.)
(muito baixo)
Estás aqui?
Querida começa a ouvir barulho de fundo.
PAULO (O.S.)
(um pouco mais alto)
Alô? Querida?
O spotlight desaparece. Querida olha à sua volta. Continua no mesmo sítio onde estava antes de começar a cantar e a crew, à sua volta, olha com um ar confuso para ela.
Querida olha para baixo, as mãos mexem-se de um lado para o outro, sem saber o que fazer com elas. Olha para o rosto confuso de cada membro da equipa.
PAULO (O.S.)
Estás na lua ou quê?
Querida continua a olhar à sua volta desenfreadamente. No lugar do piano está um canteiro. Marco está a olhar para ela, ainda no sofá.
Os olhos de Querida encontram-se agora com a berma do Rooftop. Fecha os olhos.
Flash de Querida (6) a assistir um filme iluminada pela luz do projetor.
PAULO (O.S.)
Querida?
Querida abre os olhos. Uma lágrima forma-se.
Flash de Querida (7) no teatro da escola, vénias, sorrisos e palmas.
Dá um passo em direção à berma do Rooftop.
QUERIDA (V.O.)
Oito segundos.
Aproximamo-nos mais da berma que está cada vez mais próxima.
A lágrima escorre-lhe pela face.
QUERIDA (V.O.)
Oito segundos e setenta e duas
milésimas. É o tempo que uma moeda
de duas gramas e meia demora a cair
dos cento e dois andares do Empire
State Building sem contar com a
resistência do ar.
Querida fecha os olhos.
POV: Em câmara lenta, caímos do prédio abaixo. Pessoas e carros movimentam-se como formigas.
QUERIDA (V.O.)
E se fosse uma pessoa a cair?
POV: As pessoas já parecem pessoas e os carros já parecem carros. O passeio de cimento está cada vez mais próximo.
QUERIDA (V.O.)
E se fosse eu?
EXT. RUA – DIA
Ouvimos buzinas, pessoas e cães a ladrar. O caos da metrópole.
Na berma de um grande prédio, pessoas apressam-se em diferentes velocidades.
PAH! Um bolo de casamento vindo do céu embate em força no passeio. Bocados de bolo por todo o lado. Um homem olha horrorizado para o seu fato cheio de bolo. Uma mulher tenta tirar bocados rosas que revestem o seu cabelo.
A porta do prédio, também coberta de bolo abre de rompante.
No meio do caos rosa, aparecem uns sapatos altos e um vestido de noiva. Parecem acabados de sair da máquina.
Um sol de fim de dia embate nos olhos de Querida que coloca os óculos escuros. Acende um cigarro.
Da porta, sai agora Paulo, recheado de rosa do cabelo aos pés.
PAULO
Sua Cabra! Onde é que
pensas que vais?
Querida sorri, olha para o horizonte. Dá mais um bafo no cigarro.
QUERIDA (V.O.)
Zero segundos.
Querida deixa lentamente o fumo sair pela sua boca.
QUERIDA (V.O.)
Zero segundos e oitenta e
duas milésimas. É o tempo que
demoramos a dizer: Vai-te foder.
Querida atira o cigarro para cima do que sobrou do bolo. Coloca os headphones e caminha confiante rumo ao pôr-do-sol enquanto ouvimos a música rock que ela também está a ouvir.
FIM
LOURENÇO VAZ
Lourenço Vaz nasceu em Lisboa, 18 de Abril de 1997, mas também em Nova Iorque nos anos 80, em Roma nos anos 60 e até nos anos 2000 na Coreia do Sul, tal eram os filmes e realidades dos DVDs que foi assistindo.
Dividido entre livros e filmes, encontrou nos guiões o casamento perfeito. Algumas aulas de Economia no secundário sobre a lei da oferta e da procura foram suficientes para perceber que o seu caminho não passava por aí. Estou Cinema e TV na ETIC e posteriormente Guionismo em Londres.
Trabalhou vários anos como realizador e guionista freelancer para publicidades, documentários, programas de televisão e curtas-metragens. Conta com o 3º lugar nos Prémios Sophia Estudante e 10 prémios no festival 48hfp com o filme Samanta: Má ou Santa.
Em 2023 criou a Disaster, uma produtora que promete comunicar o incomunicável e continuar a quebrar barreiras.