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Do Sentir

um argumento de
Sandrine Cordeiro
trilha sonora de
Luís Antero
ilustrado por
Carolina Celas

Ela sente a pedra. Ele conhece-a e descobre o ‘sentir’ motivado por ela.

FADE IN

EXT. SÉ DE VISEU – TARDE
A CATEDRAL mostra-se em todo o seu esplendor. Plano geral.

 

ANTÓNIO (O.S.)
É uma construção do século XII,
românica e foi reconstruída no
século XVIII pelo Mestre João
Castilho, seguindo o estilo
manuelino da época.

 

CORTA PARA

INT. IGREJA da SÉ DE VISEU – TARDE
Um grupo de turistas acompanha ANTÓNIO (28 anos, bem parecido, jovial e comunicativo) numa visita guiada à Catedral.

 

ANTÓNIO
Segue o modelo de espaço
unificado da Igreja “Salão”.
Reparem nas colunas…

 

TURISTA UM
São lindíssimas!

 

ANTÓNIO
Sem dúvida. Têm a particularidade
de terem alturas diferentes.

 

TURISTA DOIS
(aponta)
Pois é! Aquelas são mais
altas do que estas.

 

ANTÓNIO
Exatamente!
É uma das singularidades desta obra.

 

TURISTA TRÊS
São magníficas!

 

ANTÓNIO
Os capitéis são muito ricos a nível escultórico.
O dourado dos capitéis que sustentam os arcos
formeiros encordoados e os terceletes formam
grossos nós, como podem ver.
(Aponta para cima. Todos olham.)

 

TURISTA UM
UAU!

 

No grupo de turistas, ANA (40 anos, jovial) destaca-se por observar o espaço de acordo com a sua vontade, não segue as orientações do guia. Absorta nos seus pensamentos. O grupo segue ANTÓNIO. ANA não os acompanha.

 

ANTÓNIO
Vamos seguir para o claustro…
Um espaço renascentista, encomendado
em 1535 pelo Bispo Miguel da Silva ao
arquiteto italiano Francesco de Cremona.

 

A voz de António vai-se desvanecendo à medida que se afastam.
ANA olha em seu redor e observa com atenção o espaço que a circunda.

 

CORTA PARA

INT. IGREJA da SÉ DE VISEU – PISO INFERIOR – TARDE
ANA aproxima-se de uma das colunas e abraça-a. Fecha os olhos e sente-a. Percorre a igreja, para, olha para o alto. Observa. Deita-se no chão e observa os arcos e os nós que se formam sobre ela. Inspira.

 

CORTA PARA

INT. CLAUSTRO da SÉ DE VISEU – TARDE
ANTÓNIO continua com o grupo de turistas.

 

ANTÓNIO
Estas paredes mantiveram alguns
dos vãos da antiga Sé gótica.

 

TURISTA DOIS
Há vários estilos neste monumento.

 

ANTÓNIO
Sem dúvida. Temos diferentes marcas
do tempo aqui representadas.
Ali em cima, por exemplo, o
claustro é barroco, do século XVII.

 

TURISTA TRÊS
Também tem um Museu de Arte Sacra, não é?

 

ANTÓNIO
(sorri)
Vejo que fez o trabalho de casa.
Sim, o acesso para o Museu é
precisamente no piso superior.

 

TURISTA UM
Podemos visitar?

 

ANTÓNIO
Claro que sim! Nem vos deixaria ir
embora sem ver as maravilhas que
ali se escondem. Vou acompanhar-vos
até à entrada. Vamos?

 

O grupo de turistas segue ANTÓNIO.

 

CORTA PARA

INT. IGREJA da SÉ DE VISEU – PISO INFERIOR – TARDE
ANA deitada no chão da igreja. Plano zenital.

 

CORTA PARA

INT. CLAUSTRO da SÉ DE VISEU – PISO SUPERIOR – TARDE
ANTÓNIO e o grupo de turistas estão à entrada do Museu de Arte Sacra. VERA (55 anos, formal).

 

ANTÓNIO
Espero que tenham apreciado
esta visita…

 

TURISTA UM
Foi muito bom! Muito obrigada
pelas suas explicações.

 

TURISTA DOIS
E simpatia!

 

ANTÓNIO
Eu é que agradeço. Foram um grupo
muito atento. Deixo-vos agora com a
minha colega, a Dr.ª Vera, responsável
pelo Museu. Olá Vera, agora é contigo.

 

VERA
Boa tarde a todos!
Espero que o António se tenha portado bem.

 

TURISTA TRÊS
Nota máxima!

 

ANTÓNIO
Bem, não é desta que sou
despedido (ri). Voltem sempre!

 

O grupo de turistas entra no Museu de Arte Sacra.

 

CORTA PARA

INT. IGREJA da SÉ DE VISEU – PISO INFERIOR – TARDE
ANA deitada no chão da igreja. Plano de pormenor. A mão de Ana acaricia o chão de pedra.
ANTÓNIO vê ANA deitada no chão. Apressa-se para junto dela.

 

ANTÓNIO
Está bem?

 

ANA não responde.

 

ANTÓNIO
Está a sentir-se mal?

 

ANA
Como?

 

ANTÓNIO
Está a sentir-se mal?

 

ANA deitada no chão da igreja. Plano zenital sobre o rosto.

 

ANA
Não. Estou só a sentir.

 

ANTÓNIO
Desculpe?

 

ANA
Estou a sentir o tempo… o meu
corpo em contacto com a pedra.

 

ANTÓNIO
Ah!

 

Plano em ANTÓNIO do ponto de vista de ANA.

 

ANA
Acha estranho?

 

ANTÓNIO
Invulgar. Não costumo ver
pessoas deitadas no chão.

 

ANA
Mas olhe que é a melhor
forma de se sentir.

 

ANTÓNIO
Imagino.

 

ANA está deitada no chão da igreja e ANTÓNIO de pé junto dela.

 

ANA
Não imagine. Experimente.

 

ANTÓNIO
Não posso.

 

ANA
Porquê?

 

ANTÓNIO
Trabalho aqui.

 

ANA levanta o tronco. Fica sentada no chão. Planos vão alternado entre ANA e ANTÓNIO.

 

ANA
Mais uma razão para sentir
o espaço que lhe dá sustento.

 

ANTÓNIO
Posso ser despedido.

 

ANA
Como é que se pode considerar
um bom profissional se não
conhece realmente este espaço.

 

ANTÓNIO
Mas eu conheço este espaço
como a palma da minha mão.
É um monumento do século XII,
românico que…

 

ANA
Isso são factos, não é conhecimento.

 

ANTÓNIO
Claro que é!

 

ANA
Não. São apenas datas de
acontecimentos, não é vivência
do espaço.

 

ANA volta a deitar-se.

 

ANTÓNIO
Mas eu vivo aqui. Quase…
Só me falta mesmo dormir.

 

ANA
Passa aqui muito do seu
tempo, sim. A educar turistas
curiosos que nem se dão ao
trabalho de ler um livro de
história da arte e esperam
receber informação fácil e
mastigada. Saem daqui com a
sensação de conhecimento,
mas não de vivência.

 

ANTÓNIO
Mas é esse o meu trabalho.

 

ANA
Não tenho nada contra o seu
trabalho. Acompanhei o grupo
no início e, sim, admito que
tenha conhecimentos sobre o
que está a dizer, mas falta
alguma coisa.

 

ANTÓNIO ajoelha-se junto de ANA.

 

ANTÓNIO
O que é que me falta?

 

ANA
Transmitir a vivência, o sentir
do espaço. As informações que
faculta estão nos livros. Mas a
vivência está em si e, essa,
você não a partilha.

 

ANTÓNIO
Deveria?

 

ANA
Provavelmente, não. Cada vivência é
única e intransmissível. Foi por isso
que fiquei aqui. Para poder sentir o espaço.
Algo que nunca me poderia fornecer
nas suas descrições.

 

ANTÓNIO
Não se vai perder do grupo?
Eles já devem ter terminado
a visita ao museu. Já passaram
vinte minutos.

 

ANA
Vinte minutos para conhecer
um museu? Pff!

 

ANTÓNIO
É o tempo da visita.

 

ANA
Lá está… debitam uma série de
informações sobre esta e aquela
peça e, pronto. Vinte minutos não
chegam para observar uma única peça.

 

ANTÓNIO volta a levantar-se. Estende a mão a ANA para que ela se levante. ANA não reage. ANTÓNIO insiste.

 

ANTÓNIO
E o grupo? Não vai perder o autocarro?

 

ANA
Não faço parte de nenhum grupo.
Estou sozinha. Estamos todos sozinhos.
Criamos a ilusão de grupo, mas na verdade…

 

ANTÓNIO
O autocarro vai partir sem si.

 

ANA
Não faço parte daquele grupo,
já lhe disse.

 

ANTÓNIO
Mas estava com eles ainda há pouco.

 

ANA
Juntei-me a eles para ouvir o que
tinha a dizer e depois fiquei aqui
a sentir o espaço.

 

ANTÓNIO
E não viu mais nada?

 

ANA
Não preciso de ver mais nada, eu
não quero ver. Quero sentir.
Apenas isso.

 

ANTÓNIO
Tenho tanto pare lhe mostrar.
Venha comigo.

 

ANTÓNIO estende a mão a ANA.

 

ANA
Não. Deite-se e sinta.

 

ANTÓNIO
Se eu me deitar, promete
que me segue até à saída?
Estamos na hora do fecho.

 

ANA
O tempo dos relógios não me interessa.
Deite-se e sinta, pela primeira vez…
Deveríamos estar nus.

 

ANTÓNIO
(inquieto)
Você é louca! Se nos apanhassem nus,
aqui deitados, seríamos presos.

 

ANA
Eu sei. E então?

 

ANTÓNIO
(irritado)
Desculpe, mas tem de se
levantar e acompanhar-me.

 

ANA
(sempre calma)
Só depois de se deitar e sentir
o tempo da pedra sob o corpo.
Sinta com as suas mãos, acaricie
a textura da pedra alisada pela
passagem de gente, ao longo de
séculos. Isso, sim, é história.

 

ANTÓNIO
Vou perder o meu emprego!
Mas, seja. Perco-o de qualquer
maneira se não a tirar daqui.

 

ANTÓNIO deita-se no chão.

 

ANA
Que tal?

 

ANTÓNIO
Estou tramado.
Se entra aqui alguém
Se a Dr.ª Vera me apanha…

 

ANA
Esqueça isso. Esqueça-me e sinta.

 

ANTÓNIO
Muito bem, estou deitado
e a sentir. Está frio. Vamos?

 

ANA
Ainda não está a sentir.
Feche os olhos, inspire e expire
lentamente até estar em plena relação
com a pedra. Abra os olhos e veja a
dança de nós encordoados que
paira sobre si.

 

ANTÓNIO permanece em silêncio. Introspetivo.

 

ANA
Está a sentir?

 

Plano zenital sobre ANTÓNIO e ANA.
ANTÓNIO não responde.

 

ANA
(sorri)
Agora sim.

 

Plano zenital para os arcos. Vista de ANA e ANTÓNIO.
FADE OUT.

FIM