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Degeneração

um argumento de
Jacopo Wassermann
ilustrado por
Mariana Rio

Um drama familiar sobre a ruína inexorável do tempo que passa.

1. INT. CARRO – TARDE
TIAGO (35), cabelo e barba comprida, camisola preta e calças de ganga, ambas rasgadas, conduz um pequeno jipe do início dos anos 90.
O autorrádio está a tocar uma cassete de música black metal ao volume máximo.
Tiago conduz calmamente, aparentemente imperturbado pela intensidade da música, fumando um cigarro.
O ecrã de um telemóvel compacto, situado ao lado da embraiagem, ilumina-se e começa a vibrar. “Carlos” está a ligar.
Tiago pega no telemóvel, olha brevemente para o ecrã, e volta a pô-lo novamente onde estava, deixando-o tocar.
Entra no parque de estacionamento de uma pequena estação de comboios. Estaciona o carro na faixa de carga e descarga de passageiros.
No passeio, através da janela, vemos CARLOS (40): cabelo curto, camisola polo de algodão clara, calções, aliança ao dedo, mochila às costas, cara de poucos amigos. Está ainda a segurar o telemóvel na mão.
Olha de soslaio para o Tiago, antes de desligar. Põe o telemóvel de volta no bolso dos calções. Aproxima-se do carro puxando um pequeno trolley. Coloca o trolley e a mochila na bagageira e volta a fechá-la.
Entretanto, Tiago acaba de fumar o cigarro e apaga-o no cinzeiro.
Carlos tenta abrir a porta do passageiro. Não abre.
Tiago estica-se para abrir-lhe a porta.
Carlos senta-se e fecha a porta atrás de si. Tiago põe o carro em marcha.

 

CARLOS
Devíamos mandar isto para o lixo.

 

TIAGO
Ainda serve.

 

Carlos olha para o autorrádio, suspirando com evidente desagrado.
Tiago apercebe-se disso. Para a cassete com um gesto atrapalhado.

 

CARLOS
Pá, só tu para ouvires essa merda.
Alguém ainda ouve cassetes?

 

TIAGO
E porque não?

 

CARLOS
Não sei, achava que se
tivessem deixado disso
nos noventa, ou coisa assim.

 

TIAGO
Pois, já se fosse o vinil
era outra história, certo?

 

Carlos não sabe muito bem o que responder. Pega no telemóvel e começa a responder às mensagens não lidas.
Há um breve silêncio.

 

TIAGO
Então, como queres fazer isto?

 

CARLOS
Isto o quê?

 

TIAGO
Quer dizer, queres falar-lhe
logo quando chegarmos, mais tarde,
amanhã de manhã…?

 

CARLOS
Quanto mais cedo melhor.
Não achas?

 

Os dois ficam em silêncio.

 

2. EXT. RUA – TARDE
Uma rua deserta, com carros estacionados em ambos os lados do trânsito, atravessa o bairro residencial de uma pequena vila.
Vemos uma fileira de pequenas moradias de aspeto velho e desgastado.
Em frente à entrada de uma das habitações, vemos INÁCIO (77), cabelo ralo, barba mal aparada, vestindo uma camisa de mangas curtas, camisola interior encharcada, calças cumpridas e chinelos de couro consumido, que deixam à mostra os seus calcanhares nus. Não tem aliança.
Inácio anda por cima do passeio, com os braços cruzados, dando uns passos para trás e para frente, como uma barata tonta. Tem um ar cansado e impaciente.
O jipe aparece ao virar da esquina no fundo da rua, aproximando-se de Inácio.
Inácio parece reconhecer o carro. Fica onde está, fixando o seu olhar raivoso nele.
O carro estaciona num lugar livre, perto da habitação de Inácio. Ouvimos o som do motor a desligar.
Através do para-brisas, vemos Tiago e Carlos a olharem para Inácio.
Trocam um olhar entre eles, tentando ganhar coragem.

 

3. INT. CASA DE INÁCIO/SALA – TARDE
Vemos uma sequência de pormenores na sala de Inácio.
Há uma mesa de centro, bastante desarrumada, encoberta por papéis e cartas de vários géneros; móveis antigos, cujas estantes estão preenchidas por livros amarelecidos, fotografias emolduradas, cassetes e CDs; condecorações militares; uma ventoinha móvel que não deixa de ranger; um sofá; um cadeirão; e um televisor, ligado a um volume estridente.
Tiago e Inácio estão sentados lado a lado no sofá, enquanto Carlos ocupa o cadeirão.
Carlos repara na desarrumação e poeira à sua volta com evidente desagrado. Tiago está a beber uma mini com ar tenso e culpado.
Inácio está a olhar para a televisão e não se apercebe do mal-estar entre os rapazes. Vira-se para Carlos.

 

INÁCIO
Jantas cá?

 

CARLOS
Não, eu e o Tiago
vamos jantar fora.

 

Inácio vira-se para Tiago.

 

INÁCIO
Ah, também vais?

 

TIAGO
Sim, mas voltamos cedo.
De qualquer forma
dormimos cá os dois.

 

INÁCIO
Está bem.

 

Inácio volta a olhar para o televisor.
Faz-se novamente silêncio entre eles.
Carlos e Tiago trocam um olhar de entendimento.

 

CARLOS
Pai, queríamos falar contigo
sobre como têm corrido as
coisas ultimamente…

 

Inácio não desvia o olhar do televisor.

 

INÁCIO
Sim.

 

CARLOS
E… das decisões que
haveremos de tomar no futuro.

 

Inácio continua sem prestar-lhe atenção.
Carlos pega no comando e desliga o televisor.
Inácio, espantado, vira-se a olhar para ele.

 

CARLOS
Lembras-te de que na
semana passada estiveste
no hospital?

 

INÁCIO
Talvez… quer dizer,
agora não estou bem a ver.

 

CARLOS
Tiveste uma consulta
com o doutor Gonçalves…

 

Inácio olha para o ar, com ar aflito. Após alguns segundos, parece fazer-se luz.

 

INÁCIO
Ah, o doutor Gonçalves.

 

CARLOS
Pronto. A visita com o doutor
esteve ligada a, digamos…
uma situação problemática.
Concordas?

 

INÁCIO
Sim.

 

CARLOS
Bem.

 

INÁCIO
Problemática por causa dele.

 

Carlos olha confusamente para o pai.

 

CARLOS
Em que sentido?

 

INÁCIO
No sentido que esse
senhor é um imbecil.

 

Carlos remexe-se no assento.

 

CARLOS
Não comeces.
O doutor Gonçalves é um
profissional que nos foi
aconselhado e que aceitou
receber-te de forma preferencial,
portanto, escusas de insultar
as pessoas sem razão…

 

Inácio fixa novamente o olhar à sua frente, visivelmente incomodado com o tom do filho.
Tiago faz sinal ao irmão para se acalmar. Carlos cala-se e desvia o olhar dos dois.

 

TIAGO
Porque dizes isso, pai?

 

Inácio suspira.

 

INÁCIO
Porque…
fez uma análise que achei…
muito aproximativa e parcial…
de uma situação que, por começar,
nem sequer me é clara.

 

Carlos baixa a cabeça, rendido. É a vez do irmão mais jovem.
Tiago acaba a mini de um gole e pousa-a no chão.

 

TIAGO
Então… O Carlos e eu achámos
importante que o doutor te visse,
porque temos reparado… e talvez
também tenhas essa sensação…
que há algum tempo, tens tido…
certas dificuldades.

 

INÁCIO
…dificuldades?

 

CARLOS
Sim.

 

INÁCIO
Quais dificuldades?

 

Tiago hesita.
Carlos levanta novamente a cabeça.

 

CARLOS
Como é que se chamam
as minhas filhas?

 

Inácio e Tiago olham para ele. O pai esforça-se para se lembrar.

 

INÁCIO
Então, são a coisa e a…

 

Não lhe ocorre nada. Faz uma careta de impaciência.

 

INÁCIO
Agora não sei.
Também vejo-as tão pouco.
Até parece que não são minhas netas.

 

Carlos faz um sorriso de desdém.

 

INÁCIO
E com isso? Não me parece que
seja caso de tantos alarmismos.

 

TIAGO
Está bem, então uma pergunta
mais fácil. Há quanto tempo
moras nesta casa?

 

Inácio mantém-se calado.

 

TIAGO
Sabes?

 

INÁCIO
(à custa)
Sim.

 

TIAGO
Então?

 

INÁCIO
…desde que me reformei.

 

TIAGO
E isso foi quando?

 

INÁCIO
Por aí há dois anos.

 

TIAGO
Pai, saíste do exército há doze anos.
Moras nesta casa há trinta.
Vivíamos cá com a mãe, lembras-te?

 

INÁCIO
Como, com a mãe?

 

TIAGO
A mãe. A nossa mãe.

 

INÁCIO
Ah…

 

Inácio fica cabisbaixo.

 

CARLOS
É preciso perguntar se te
lembras de quem é a nossa mãe?

 

Inácio aperta os lábios.
Tiago olha com reprovação para o irmão.
Carlos pega na sua mochila e abre o bolso da frente. Retira daí o jornal do dia e uma revista colorida de quebra-cabeças infantis.

 

CARLOS
Além dos comprimidos que estás
a tomar, o doutor disse que deves
treinar as tuas funções cognitivas.
O cérebro é como um músculo.
Se ficar parado, enfraquece.

 

Carlos pousa as revistas sobre o apoio de braço do sofá, ao lado do pai.

 

CARLOS
Eu sei que não és grande leitor.
Isto também não é nenhum
Guerra e Paz.

 

Inácio repara nas ilustrações infantis na capa com evidente humilhação.
Pega nelas com cerimónia, pelo canto, aproximando-as de si…

 

CARLOS
Seria suficiente ler o jornal
todos os dias, fazer as palavras
cruzadas… Coisas deste género.
E depois podemos marcar outra
consulta…

 

…e atira-as para o colo do Carlos.
Carlos é apanhado de surpresa.

 

CARLOS
Então?

 

Inácio pega no comando e volta a ligar a televisão, ignorando-o de propósito.

 

CARLOS
Estás a gozar comigo?

 

TIAGO
Carlos…

 

CARLOS
(dirigindo-se ao Inácio)
Olha lá, ó estúpido, sabes que
esta é a quarta vez que estamos
a ter esta conversa contigo?

 

Inácio tem uma expressão confusa.

 

CARLOS
Não tinhas noção, pois não?
Pois… Não te lembras das tuas
netas, não te lembras da mãe,
e não tarda muito… Estás a ouvir?

 

Inácio continua a olhar para o ecrã.
Carlos dá um pontapé contra o canto do sofá.

 

CARLOS
Estou a falar contigo!

 

Inácio obstina-se a não olhar para ele. Carlos aproxima-se dele.

 

CARLOS
Achas que vou andar atrás de ti?
Ou, quem, o Tiago? Estás muito
enganado. Olha, eu não vou fazer
nada disso. Tenho uma vida, para
que tu saibas. E o Tiago também não
vai ficar aqui para sempre, não
contes com isso. Depois do que se
passou com a Lucinda, uma
mulher-a-dias está fora de questão.
Já foi sorte ela não ter feito queixa.
Por isso vê lá se começas
a colaborar, porque, caso
contrário, a solução é fácil.

 

Inácio vira-se finalmente para ele.

 

CARLOS
Pois é. E não penses que te
meto numa daquelas residências
chiques, que não há dinheiro para
isso. Não, levo-te mesmo para um
lar. Sabes? Um daqueles sítios de
que falam tanto nas notícias? Isso.
Ponho-te num desses. Queres?

 

Inácio, derrotado, mantém-se em silêncio.

 

CARLOS
Esta é a última vez
que tento falar contigo.
Depois, já sabes.

 

Carlos levanta-se e atira as revistas aos pés do pai. Pega na sua mochila e sai apressadamente da sala.
Inácio afasta as revistas com o pé.
Tiago levanta-se e vai atrás do irmão, deixando o pai sozinho.
Passados alguns segundos, Inácio olha novamente para as revistas.
Recolhe-as do chão, relutante, folheando-as devagar.

 

4. INT. CASA DE INÁCIO/QUARTO DE CARLOS – TARDE
O antigo quarto de Carlos tem ainda algumas das suas antigas medalhas desportivas penduradas na parede.
Tiago aparece vindo da sala.
Carlos está a despir-se para vestir roupa de corrida.

 

TIAGO
Não podes falar assim com ele.

 

CARLOS
Ele não entende de outra forma.

 

TIAGO
Está bem, mas é preciso
ter calma, senão a coisa não vai…

 

CARLOS
Ter calma. Como tu, não é?

 

TIAGO
Como assim?

 

Carlos vira-se para ele. Faz um gesto em direção do resto da casa.

 

CARLOS
Olha-me para esta pocilga.
Quem é que tinha ficado
de pôr ordem nisto?

 

Tiago desvia o olhar, mas Carlos fita-o, implacável.

 

CARLOS
Quem?

 

TIAGO
Tive ensaios, não deu tempo.
Juro-te que vou tratar disso.

 

Carlos olha fixamente para ele, abanando a cabeça. Calça um par de ténis apressadamente.

 

TIAGO
Eu também preciso
do trabalho, Carlos.

 

CARLOS
Sabes lá o que é trabalhar, pá.

 

Carlos sai do quarto sem olhar para o irmão.
Ouvimos o som da porta de entrada a bater.
Tiago fica onde está, olhando para os troféus pendurados do irmão.

 

5. EXT. RUA – TARDE
Carlos está a dar uma corrida à volta do quarteirão.
Está a ouvir música através de fones ligados ao seu telemóvel.
Trata-se de música eletrónica, ideal para a atividade física.
O seu olhar é distraído, como se estivesse perdido em pensamentos insondáveis.
Pega no telemóvel e para a faixa em curso. Procura outra e põe-na a tocar.
Trata-se da mesma música black metal que estava a tocar no carro.
À medida que a faixa cresce de intensidade, Carlos acelera o passo.
A respiração torna-se cada vez mais acelerada.
A sua expressão deforma-se numa mistura de cansaço e raiva, acompanhando a atmosfera sombria da música.
Atravessa um cruzamento sem olhar de lado.
Ouve-se o súbito apito de um carro que para a pouca distância das pernas de Carlos.
Carlos dá um sobressalto.
O carro passa-lhe ao lado.

 

CONDUTOR (O.S.)
Andas a dormir?!

 

O carro afasta-se.
Carlos tira os fones dos ouvidos e dobra-se por cima dos joelhos, recuperando o fôlego.
No fundo, continuamos a ouvir a música a ser emitida pelos fones.

 

6. INT. CASA DE INÁCIO/COZINHA – TARDE
A cozinha demonstra a mesma falta de cuidados que aflige o resto da casa: móveis e azulejos velhos, garrafas vazias, sacos do lixo, poeira e sujidade cumulada nos cantos.
A partir da cozinha, um corredor leva aos quartos e ao hall de entrada, que por sua vez tem ligação com a sala.
No fundo, ouve-se ainda o som do televisor.
Tiago está a lavar a louça suja que se tinha acumulado ao longo dos últimos dias.
Ouve-se o som da campainha a tocar.
Tiago ainda não acabou de lavar a louça. Vira-se em direção ao hall.

 

TIAGO
(alto)
Pai? Vais abrir?

 

7. INT. CASA DE INÁCIO/SALA – TARDE
Inácio adormeceu no sofá, com as revistas ainda no colo.
A campainha toca novamente, durante mais tempo.
Desta vez, Inácio desperta.

 

TIAGO (O.S.)
Pai? Ouviste?

 

Inácio levanta-se do sofá com alguma dificuldade e cambaleia em direção à porta de entrada.
As revistas caem novamente no chão.

 

8. INT. CASA DE INÁCIO/HALL – TARDE
Inácio abre a porta de entrada.
Num plano em subjetiva, vemos a silhueta desfocada de um homem em frente da moradia. As feições do homem são irreconhecíveis.
Inácio parece perturbado com o que vê. Fecha a porta.

 

9. INT. CASA DE INÁCIO/COZINHA – TARDE
Enquanto Tiago está a lavar a louça, Inácio regressa à sala sozinho.
Passam alguns segundos. A campainha toca mais uma vez.
Tiago vira-se para o hall vazio, com expressão confusa.

 

TIAGO
(alto)
Pai, já abriste?

 

Após um momento, Inácio reaparece novamente no hall e abre a porta de entrada.
Desta vez, sai para abrir a cancela da moradia.
Após alguns segundos, Carlos e Inácio regressam juntos.
Tiago recomeça a esfregar a louça.

 

10. INT. CASA DE INÁCIO/HALL – TARDE
Inácio põe-se à frente de Carlos, impedindo-o de avançar. Tem uma expressão confusa e hostil.
Nas suas costas, no fundo do plano, vemos Tiago que continua a lavar a louça.

 

INÁCIO
Então, já não se fala
português por aqui?

 

Carlos não tem paciência para lhe responder. Tenta dar um passo em direção ao corredor.
Inácio põe-se lhe novamente à frente e empurra-o pelo ombro.

 

INÁCIO
Não, não. Não vais a lado nenhum.
Mas o que queres, afinal?

 

Atrás deles, vemos a silhueta de Tiago a virar-se para eles. Esfrega a esponja cada vez mais devagar.
Carlos fica onde está, estupefacto, olhando fixamente para o pai.

 

CARLOS
Como assim?

 

INÁCIO
Perguntei-te o que é que queres,
porra! Esta é a minha casa!

 

CARLOS
Mas tu estás maluco, pá?
Que raio de conversa é essa?

 

Após um momento de tensão, Inácio vira-lhe as costas, enfurecido.
Sai do hall, atravessa o corredor e vai em direção aos quartos, desaparecendo da vista.
Faz-se silêncio.

 

11. INT. CASA DE INÁCIO/CORREDOR – TARDE
Carlos avança devagar no corredor, olhando para Tiago. Tiago olha de volta para o irmão. Vislumbramos uma intuição assustadora no seu olhar.

 

TIAGO
Ó Carlos…

 

Nesse instante, Inácio reaparece vindo do seu quarto, segurando num revolver.
Aponta-o contra Carlos.

 

12. INT. CASA DE INÁCIO/COZINHA – TARDE
Ouvimos um tiro. Mais um. E mais outro.
Depois, o baque surdo de algo que cai ao chão.
Num primeiro momento, Tiago esconde-se instintivamente atrás do balcão da cozinha.
Fica aí escondido durante alguns segundos, em estado de choque.
Levanta-se novamente, devagar, aproximando-se do corredor.
A água da torneira continua a escorrer por cima dos pratos sujos.

 

13. INT. CASA DE INÁCIO/CORREDOR – TARDE
Inácio está ainda a segurar no revolver.
Carlos está a sangrar e a contorcer-se pela dor, ofegando. Tenta rastejar em direção à porta de entrada.
Tiago acorre para o ajudar e ajoelha-se ao seu lado. Carlos para de se mexer, agarrando-se a Tiago.
Tiago passa-lhe a mão por cima das feridas, como se ainda não conseguisse acreditar no que acabou de acontecer.
Pega no telemóvel e liga para o número das emergências. As mãos tremem-lhe enquanto digita o número. Segura o telemóvel ao ouvido.
Após alguns segundos, ouvimos a voz do operador a responder.

 

TIAGO
(em estado confusional)
Boa tarde… houve um acidente
com a pistola do meu pai, o meu
irmão levou um tiro. Quer dizer,
três tiros. Não sei o que fazer…
(pausa) Mas quanto tempo demora isso?
(pausa) Está bem, eu espero.

 

Enquanto Tiago está a falar ao telemóvel, Inácio aproxima-se deles.
Olha para o homem deitado no chão com crescente estranheza.

 

INÁCIO
…Carlos?

 

Tiago vira-se a olhar para ele. Perante a confusão muda do pai, não tem a força de o antagonizar.

 

TIAGO
…sim, pai. É só o Carlos.

 

Inácio parece voltar lentamente a si. O seu olhar manifesta uma nova, desesperada, lucidez.

 

INÁCIO
…pois é. Foi da camisola.
Dá-lhe um aspeto diferente.

 

Há um breve silêncio entre os dois. Depois, Inácio passa-lhe ao lado e regressa à sala.
Tiago segue-o mecanicamente com o olhar.
Ouvimos a voz do operador a chamar por ele no telemóvel.
Tiago demora alguns segundos antes de conseguir responder.

 

TIAGO
…estou, sim.

 

14. INT. CASA DE INÁCIO/SALA – TARDE
Inácio senta-se no sofá. Fixa o seu olhar atordoado no televisor.
No fundo, ouvimos a voz destroçada de Tiago a falar com o operador das emergências.
Inácio coloca o revólver por cima da mesa de centro e pega no comando.
Aumenta o volume do televisor até a voz do filho se tornar ininteligível.

 

 

FIM

JACOPO WASSERMANN

Jacopo Wassermann nasceu em Itália em 1989. Licenciou-se em Disciplinas das Artes, Música e Espetáculo pela Universidade de Turim. Tirou o mestrado em Estudos Cinematográficos na Universidade Lusófona. Tem experiência profissional enquanto assistente de produção e realização, tendo participado nas rodagens de The Man Who Killed Don Quixote de Terry Gilliam e Frankie de Ira Sachs. A sua primeira curta-metragem, Calor, foi selecionada para competição nacional na edição de 2021 do MotelX, e arrecadou o prémio de Melhor Realização na edição do mesmo ano do Girogirocorto Film Festival, em Roma. Está de momento a concluir o doutoramento em Artes dos Media na Universidade Lusófona, onde também leciona nos cursos de Património Cinematográfico e Videojogos.

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