1. EXT. QUINTAL – DIA
Datura stramonium (ou figueira-do-diabo) em flor dança ao vento contra as grades do muro de um quintal. A casa é sumptuosa. O jardim é enorme.
Ouvem-se cantos agudos de aves e o nervosismo dos arbustos com o vento da primavera.
Ouve-se também, ao longe, uma linha repetitiva de um baixo elétrico, lenta, monótona, apática.
2. INT. SALA DE ESTAR – DIA
Uma sala pouco mobilada, pouco iluminada. As notas graves do baixo elétrico são agora claras e próximas.
Um osso de plástico roído, um peluche encardido, três pares de ténis converse maltratados e três mochilas eastpack de cores variadas descansam sobre o chão de tijoleira.
FILIPA, 15, está deitada num cadeirão de veludo esverdeado com o baixo sobre o corpo, ligado a um amplificador velho. Toca a mesma frase, uma e outra vez.
NUNO e SAUL, ambos 15, estão espalhados num largo sofá forrado com o mesmo tecido. Os seus corpos sobrepõem-se. Ouvem sem interesse nem ânimo os esforços de Filipa. Nuno tem nas mãos um flip phone com um ecrã monocromático.
ALBERTO, um cão castanho e branco, dorme num cadeirão idêntico ao de Filipa.
O dedilhar das cordas do baixo prossegue até parar. Filipa suspira.
Silêncio sem aplausos.
3. EXT. RUA CASA DE FILIPA – AMANHECER
O dia nasce. O canto das aves é espalhafatoso. Ao longe, carros apressam-se na via rápida.
Filipa, cabelo amarrado, mochila às costas, sai de casa e bate com o portão enferrujado. A casa é modesta e tem um quintal cheio de ervas por aparar. Através das grades, acaricia a cabeça de Alberto. O sotaque de Filipa é evidente.
FILIPA
Pronto, pronto… até logo.
Vai para dentro, vai.
(Alto, para dentro de casa)
Mãe! Chama o Alberto para dentro!
(Num sussurro, para o cão)
Vai, Alberto. Vai para dentro.
Ninguém responde. Filipa sai.
Em passo lento, caminha até à paragem de autocarro. Ao passar pela vivenda luxuosa da cena inaugural, desliza a mão pelas flores que trespassam o muro espreitando a estrada. Ouve-se uma ambulância ao longe.
Filipa aguarda o transporte, ensonada.
4. EXT. PÁTIO DA ESCOLA – DIA
Filipa, Saul e Nuno estão sentados, por esta ordem, em linha num muro riscado com marcadores e corretor de caneta. Os três pares de pernas balançam em harmonia. O dia está quente e o ruído do pátio indicia a presença e movimentos dos restantes alunos, que nunca são vistos.
As pernas de Saul cruzam-se por vezes ora com as de Filipa, ora com as de Nuno.
Cada um tem o seu telemóvel nas mãos, modelos dos primeiros anos do século.
Conversam sem se olharem, sempre concentrados nos ecrãs.
SAUL
Ganhaste?
FILIPA
Não.
SAUL
Estava a perguntar ao Nuno.
NUNO
Ainda não. Tu?
SAUL
Ainda não.
NUNO
Perdeste com quantos pontos?
SAUL
Ainda não perdi.
NUNO
Estava a perguntar à Filipa
(pronuncia Filhipa).
SAUL
(a troçar, exagera no sotaque)
Filhipa.
NUNO
(enuncia cada sílaba lentamente)
FI-LI-PA.
FILIPA
Com duzentos.
Saul e Nuno produzem uma interjeição de desdém, idêntica, em simultâneo.
Continuam a jogar em silêncio. Ouve-se a campainha que anuncia o fim do intervalo.
5. EXT. CAIS – DIA
Não há sombra no pontão. O som dos barcos, das gaivotas, das ondas, dos carros na marginal e da população em trânsito é uma amálgama exagerada de ruído denso.
Filipa, Saul e Nuno, por esta ordem, estão sentados/deitados num banco a olhar o mar. As mochilas estão atiradas para um canto, contra a grade verde que delimita o cais. Seguram copos descartáveis de refrigerantes e papéis engordurados de fast food já consumida.
As pessoas que estão no cais existem apenas no plano sonoro.
SAUL
Morre-se de tédio?
FILIPA
Havemos de descobrir.
NUNO
Aqui, jaz Saul José. Cansou-se.
FILIPA
Nasceste com o cordão à
volta do pescoço?
SAUL
Sim. Suicida no útero.
Filipa dá uma chapada de reprovação na cabeça de Saul.
NUNO
O que é que isso tem a ver?
FILIPA
Saul José. Se tem José no nome,
é porque nasceu com o cordão
umbilical à volta do pescoço.
NUNO
Olha… sempre a aprender.
Ao longo da conversa, os três alternam os olhares entre o horizonte e os telemóveis. Os seus corpos tocam-se e entre Filipa e Saul e entre Saul e Nuno, há toques voluntários, discretos, ternos.
NUNO
(olha para o mar)
Eu li um conto, há uns tempos.
Não era para a minha idade. Um
homem via um veado que falava,
assim uma espécie de oráculo, mas
não podia contar a ninguém. Era
sinistro, um bocado assustador.
SAUL
Giro. Quem escreveu?
NUNO
Não sei. Estava lá para casa,
num livro qualquer da minha mãe.
Uma antologia.
Filipa expressa confusão.
NUNO
Tive pesadelos com esse
veado durante dias.
Filipa e Saul olham discretamente um para o outro e sorriem.
Os três olham o mar.
6. INT. QUARTO DE FILIPA – NOITE
Quarto humilde e limpo. Numa das paredes há uma prateleira suspensa, carregada de CDs.
A secretária, sem computador, está praticamente vazia, tem apenas uma caneca e uma pequena aparelhagem, que toca uma canção instrumental, ao estilo new age.
Filipa dorme com Alberto a seus pés.
7. INT. QUARTO DE NUNO – NOITE
O quarto de Nuno é amplo e atulhado de livros, roupa e ténis de várias cores pelo chão. Sobre a cama de casal por fazer repousam cadernos e mais livros.
Um candeeiro de pé ilumina o quarto, com uma lâmpada multicolor que vai mudando o ambiente.
Nuno está de pijama de flanela, sentado à secretária, com os olhos num monitor CRT. Joga um videojogo de simulação da vida humana. No ecrã, veem-se versões digitais de Nuno e Saul a confraternizarem e, por fim, a darem um beijo.
8. INT. QUARTO DE SAUL – NOITE
O quarto tem um beliche e uma cruz pendurada numa das paredes. Na escassa luz da noite, pouco mais é discernível.
Saul está deitado no colchão de cima, de olhos abertos.
Alguém ressona na cama de baixo.
Ouvem-se gritos abafados pelas paredes, uma discussão cuja violência escala.
Saul tenta adormecer.
9. EXT. RUA CASA DE FILIPA – DIA
Ouve-se um autocarro a parar e as portas a abrir. As mãos de Saul e Nuno acariciam as grades da mansão vizinha, e, sempre em movimento, arrancam com força várias flores de datura.
10. INT. SALA DE ESTAR – DIA
Silêncio desconfortável.
Na sala de Filipa há um bule e três canecas sobre a mesa de café. Não se vê o baixo nem a desarrumação inicial. O sol entra pelas portadas.
Filipa, Saul e Nuno estão sentados à volta da mesa de café, apreensivos. Evitam o contacto visual. Alberto, ansioso, começa a ladrar e a ganir. Todos ignoram a aflição do animal.
Ouve-se uma ambulância muito ao longe.
11. EXT. DESCAMPADO – NOITE
Um descampado. Só há relva seca e céu. Filipa, Saul e Nuno surgem iluminados como num estádio desportivo durante um treino noturno, com uma luz branca intensa. Dão passos lentos, a medo, pela relva. Há muito silêncio.
Caminham escassos metros e dão as mãos num gesto lento, formando uma corrente humana que tem Saul no centro.
12. EXT. DESCAMPADO – AMANHECER
Amanhece. A relva é de um verde muito vivo e o céu está muito saturado, em tons de índigo e fúcsia. O ambiente é onírico. Ouve-se a linha de baixo que Filipa tocava, em simultâneo com vento, mar, aves, o ladrar de Alberto ao fundo e um piano harmonioso.
Há um corredor de enormes flores de várias espécies, brancas e arroxeadas, da cor da flor de datura stramonium.
Filipa, Saul e Nuno abraçam-se, estão sorridentes e em roupa interior. Afastam-se e dançam, ora em conjunto, ora individualmente.
Saul cheira as flores com prazer, uma e outra vez.
FILIPA
Anda, Saul…
Saul sorri e regressa para junto dos amigos, voltando de seguida para perto dos girassóis.
SAUL
(eufórico)
Só Deus decide quando e como e
onde partimos. Mas ninguém manda
em mim! Ninguém manda em mim!
Ninguém manda em nós!
Nuno aproxima-se e abraça Saul pelas costas, um abraço longo e afetuoso. Afastam-se lentamente da fila de flores.
SAUL
(como um sussurro)
E eu sempre quis uma morte
sem sangue.
A palavra “morte” é abafada pelo ladrar e pelo baixo.
O som do baixo elétrico é ensurdecedor.
13. INT. SALA DE ESTAR – AMANHECER
Os primeiros raios da manhã entram pela sala escura e desarrumada, com roupa espalhada pelo chão.
Alberto ladra em desespero. Filipa vomita num dos cantos.
Nuno tem espasmos e abraça Saul que tem o corpo imóvel e tenso.
Estão os três em roupa interior.
Filipa arrasta-se até ao telefone fixo e marca um número.
Ouve-se a sirene de uma ambulância que transita para a cena seguinte.
14. INT. URGÊNCIAS – DIA
Numa parede azul na sala de espera das urgências de um hospital público, um cartaz A3 pede silêncio. Há uma fila de três cadeiras de plástico cor de laranja, vazias, encostadas à parede.
Todo o movimento acontece em off, só as cadeiras cor de laranja na parede azul são mostradas.
Há um burburinho grave na sala. Entre conversas inacabadas, ouvem-se fragmentos de frases.
FILIPA (O.S.)
Não há nada a fazer?
NUNO (O.S.)
Não havia nada para fazer…
FILIPA (O.S.)
Não tínhamos nada para fazer…
NUNO (O.S.)
Não foi por mal. Nós não
tínhamos nada para fazer.
FILIPA (O.S.)
Não há nada a fazer?
NUNO (O.S.)
Saul…
FILIPA (O.S.)
Não tínhamos mais nada
para fazer…
O som diegético desvanece para dar lugar ao som de gaivotas, do chiar de cascos e mastros no cais, ondas e um único e longo toque da buzina de um navio que parte.
15. EXT. CAIS – TARDE
O ambiente sonoro da cena anterior transita para esta cena.
De costas e ligeiramente afastados um do outro, Nuno e Filipa observam o horizonte e o dia que acaba.
Está vento e nenhum tem roupa suficientemente quente para o frio da noite.
O tempo passa lentamente. O Sol põe-se.
16. EXT. MIRADOURO – DIA
A vista para o abismo é autoritária. Turistas fazem comentários e soltam interjeições de admiração, sendo ouvidos mas nunca vistos. Nuno, 35, olha apreensivo para as fajãs e para o mar tão longe.
No dedo anelar da mão esquerda, Nuno tem uma aliança dourada. Veste um polo desportivo e umas calças pretas bem engomadas. Com o smartphone, tenta capturar a dimensão da escarpa.
17. EXT. ESPLANADA DO MIRADOURO – DIA
Nuno senta-se numa cadeira cromada e pousa os cotovelos na mesa redonda que reflete os brilhos do dia.
As outras pessoas na esplanada são apenas ouvidas.
Filipa, 35, tem um dos braços ostensivamente tatuado e o cabelo parcialmente rapado. Veste um avental e tem um pano colorido nas mãos. Limpa a mesa de Nuno sem olhar para ele. O seu sotaque é carregado. Nuno fala com o sotaque padrão do continente.
FILIPA
Posso ajudar?
NUNO
Olá. É um abatanado, por favor.
FILIPA
Um quê?
Reconhecem-se em mútuo espanto e desconforto.
NUNO
Filipa…
FILIPA
(com um sorriso de troça)
FI-LI-PA. Doutor Nuno, olá!
NUNO
Trabalhas aqui?
FILIPA
Não, gosto de ajudar. Sou
voluntária a servir bicas e
imperiais ao preço do ouro…
Nuno esboça um sorriso terno mas inquieto.
FILIPA
(em tom de confidência)
É tudo muito caro, preço de inglês.
NUNO
É um americano.
FILIPA
O quê?
NUNO
O abatanado, é um café americano.
Grande, aguado.
FILIPA
Nunca tinha ouvido.
Queres mais alguma coisa?
NUNO
Acho que não.
Um copo de água?
FILIPA
Trago já.
[Não há elipses, o tempo da cena é o tempo das ações.]
Nuno pega no smartphone enquanto espera. Ouve-se o retinir da máquina de café e uma torneira a ser aberta e depois fechada.
Filipa regressa com o copo e a chávena que pousa delicadamente sobre a mesa.
NUNO
(sorridente, tímido)
Obrigado.
Nuno bebe o café demoradamente a olhar o vazio.
Algum tempo decorre. Filipa aparece no quadro e senta-se, sem pedir, ao lado de Nuno.
Sorriem um para o outro. Filipa põe o cotovelo na mesa e descansa a cabeça na mão, olhando o movimento das coisas que passam.
Nuno continua a beber o café. Não comunicam verbalmente, mas estão em paz.
FIM
HENRIQUE BRAZÃO
Nasceu em Coimbra em 1993, cresceu na Madeira e reside e trabalha em Lisboa desde 2011. É estudante do terceiro ano do Doutoramento em Estudos Artísticos – Arte e Mediações da FCSH, e cineasta independente. Escreveu e realizou quatro curtas-metragens: “Em Junho” (2019); “Farol” (2022); “Postais do Oceano Atlântico” (2023); e “O Cais”, atualmente em pós-produção. Tem vindo a escrever também para publicações académicas sobre cinema e nostalgia, e o seu tema de investigação é o amor e a temporalidade no cinema contemporâneo.
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