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Café Montanha

um argumento de
Rita Andrade
ilustrado por
Sara Boiça

Um falso intelectual, uma família de betos, uma mulher deprimida, uma prima muito chata e dois fachos embriagados entram num café.

I – POMBAS, ACORDEÕES E BLOQUEIOS CRIATIVOS

 

EXT./INT. CAFÉ MONTANHA. FINAL DE TARDE
O café centenário tem um ar clássico, bastante português. Garrafas de vinho estão espalhadas um pouco por todo o lado, a vitrine recheada de doces de ovo, o menu apresenta alguns pratos da casa, bacalhau à lagareiro, tostas, sandes. À entrada um homem toca acordeão. Escutamo-lo. O ambiente é tranquilo, está um dia quente, mas sopra uma brisa.
Vêem-se pombas entre as mesas. No lado direito, duas turistas loiras e o tocador de acordeão. No lado esquerdo, um homem que lê o jornal, a quem é servido um expresso. No centro, o letreiro de bronze que anuncia o nome do café, Café Montanha. Por baixo do letreiro há um toldo que cobre a porta de entrada onde se pode ler Realizado por (nome do realizador).
A funcionária serve o cliente, que não tira os olhos do jornal.
Numa das mesas de mármore, há um dispensador de guardanapos brancos e finos têm a inscrição I – Pombas, acordeões e bloqueios criativos a itálico num tom azul-bebé.
Uma mão brusca rouba um par de guardanapos. É MARIA CLARA (27), que assoa o nariz sentada numa das mesas do canto. Escuta-se o tlintar das colheres de metal contra a porcelana das chávenas e o barulho vaporizado da máquina de café, sons ambiente. Maria Clara tem uma aparência confundível, cabelo castanho, olhos castanhos. A única coisa que poderá distingui-la é o piercing no septo. Tem uma expressão apática, sem emoção. Um olhar perdido.
À sua frente está um computador aberto com uma página em branco. Vai escrevendo várias frases.

“Porquê que existimos desta forma e não outra? A pergunta que serve como base ao existencialismo”

Apaga.

“Kierkegaard, Nietzsche, Dostoievski, Sartre, nomes conhecidos da”

Apaga mais uma vez.

“Uma sensação de desorientação perante um mundo sem sentido, assim se descreve a angústia existencial. Viver não é sofrer, Schopen”

Apaga novamente, carregando com mais força na tecla, até as letras desaparecerem da página. Mesmo com o fundo branco continua a apagar. A sua mão está inquieta, pressionando repetidamente a tecla, num ritmo constante e ansioso, mas o seu rosto continua inexpressivo.

 

II – CARTAS, BETOS E TIQUES NERVOSOS

 

INT. CAFÉ MONTANHA
Pelo café, há maços de tabaco expostos atrás do balcão, sai vapor da máquina, na parede está a imagem de Nossa Senhora emoldurada. Vinho é servido num copo pousado em cima de uma das mesas de mármore. A mão pousa a garrafa e lê-se no rótulo II – Cartas, betos e tiques nervosos.
Dois amigos jogam às cartas enquanto bebem o tinto. São homens com alguma idade, recém-reformados. O da direita (JOGADOR DE CARTAS 1) veste uma camisola de alças. Na pele avermelhada nota-se a marca mais clara da t-shirt e a tinta gasta duma tatuagem antiga, Moçambique’72. O da esquerda (JOGADOR DE CARTAS 2) usa uma camisa aos quadrados desabotoada até metade, uma boina e um bigode farfalhudo amarelado do tabaco. Jogam e riem alto.
Maria Clara continua a olhar para nada enquanto bate na tecla. Lentamente, foca-se nos dois jogadores de cartas barulhentos.
Jogam à Batalha. Há uma pilha de cartas à frente de cada um de onde retiram a do topo. Dois seis, empate. Reclinam-se nas cadeiras, estalam os dedos, ajeitam os bigodes. Preparam-se para a batalha. Retiram uma carta cada e voltam-na para baixo. Retiram mais uma e espalmam-nas com força contra a mesa, soltando grunhidos.
Quem ganha é o homem do bigode, que se ri muito alto com os dentes amarelos enquanto recolhe as cartas. O outro põe as mãos por trás da cabeça.
Notam-se especialmente os pelos nos sovacos, a marca de suor na camisola e a barriga de cerveja. Exclama num tom desnecessariamente audível em todo o café:

 

JOGADOR DE CARTAS 1
Foda-se, Zé! És sempre
o mesmo filho da puta!

 

Zé ri-se cada vez mais e quase se entala com o vinho.
Ao lado, está uma família de quatro pessoas: pai, mãe e um casal de gémeos adolescentes. Os quatro tem um ar bastante aprumado. O rapazito exibe uma quantidade notável de borbulhas na cara. A rapariga, MADALENA (16), tem um colar com um M pendente.
Sentam-se todos muito direitos, com os cafés e as torradas à frente, camisas perfeitamente engomadas, fardas do colégio, um fio de ouro com uma cruz no peito da mãe. Fazem silêncio. O pai leva a chávena à boca e ouve-se o sorver do café. Dirige um olhar reprovador aos jogadores de cartas que é replicado pelo resto da família.
Noutra mesa, está sentada uma mulher de meia-idade com um gato persa ao colo e um éclair pousado sobre a mesa. A mulher tem um ar deprimidíssimo. Cabelo armado tipo anos 80, blusa de cetim, grandes olheiras que seguram com dificuldade um par de olhos cansados, lábios finos que apontam para o chão pintados com batom vermelho e um maxilar recuado formando um duplo-queixo. O seu olhar está tão perdido quanto o de Maria Clara. Com uma mão acaricia o gato gordo, que está para lá de satisfeito, e com a outra pega no éclair. Leva-o à boca, muito aberta, e dá uma enorme trinca no bolo fazendo chantili jorrar para fora, sujando-lhe os cantos da boca. Não presta a mínima atenção ao barulho dos jogadores de cartas.
Na mesa do canto, está um jovem de aparência intelectual, com óculos redondos e um sobretudo preto, apesar do calor. Lê o livro “O Mito de Sísifo” de Albert Camus. A leitura é interrompida pelo riso alto e palavrões, pelo que o rapaz tira os olhos do livro. Inclina a cabeça para a mesa dos jogadores de cartas, lança também ele um olhar julgador, por cima dos óculos. Em seguida volta a virar-se para a frente, cruzando o olhar com a mesa de Maria Clara. Abre um sorriso, tira os óculos, morde a haste e pisca o olho. Maria Clara encara o leitor, franze ligeiramente o nariz contra as sobrancelhas e cerra os olhos, numa expressão que, embora não seja exatamente de nojo, deixa passar alguma repulsa. Continua a clicar no botão para apagar.
Nesse momento chega a prima SUSANINHA (27), loira falsa com as raízes de fora, óculos finos e grandes, unhas de gel. Duas
borboletas tatuadas no pulso. Entra toda despachada pelo Café Montanha e senta-se na mesa da prima.

 

SUSANINHA
Oi prima, desculpa o atraso.
O Vítor quis passar nos correios.
Sabes como é, uma chatice ele ter
ficado sem carta.

 

Maria Clara não responde, continua a encarar o rapaz do canto por cima do ombro da prima, com uma cara de reprovação, repetindo o tique nervoso.

 

SUSANINHA
Mas é como eu lhe disse, quando se
bebe não se vai fazer piões para o
meio da rua. Ao menos disfarçava.
Enfim, tem sorte que eu gosto dele.

 

Susaninha coloca bruscamente a mão por cima da de Maria Clara.

 

SUSANINHA (CONT’D)
Ai Clara, para com esse som
irritante. Como é que correu
com o engenheiro? É lindo e
tem guita, vê se te pões a pau.

 

III – VINHO TINTO, GLUTÉN FREE E ASSÉDIO SEXUAL

 

INT. CAFÉ MONTANHA
Uma mão que esfrega uma raspadinha com uma moeda. Há uma bandeira portuguesa hasteada na parede. Uma funcionária ostenta um polo vermelho com o logo do café estampado.
Entrega um menu às mãos de alguém, que o abre. Na primeira página está escrito, III – Vinho tinto, glúten free e assédio sexual no lugar do prato do dia. É Susaninha quem segura o menu e encara a FUNCIONÁRIA, uma adolescente com ar entediado e rímel esborratado.

 

SUSANINHA
Não tem nada sem glutén?

FUNCIONÁRIA
Deixe-me confirmar.

 

Sai. Susaninha dirige o olhar a Maria Clara.

 

SUSANINHA
O glúten é pior do que a droga.
Sabes que o nosso organismo não
foi feito para comer pão? Tipo no
início da humanidade não havia pão.
Faz mal aos intestinos. É por isso
que ficas tão inchada, o teu
estômago não digere. Eu estou a
tentar reduzir, pelo menos até
ao casamento. Ai prima, o Vítor
fica tão lindo de fato.

 

MARIA CLARA
Talvez sejas celíaca.

 

Susaninha faz uma expressão confusa.

 

MARIA CLARA
Intolerante ao glutén.

 

SUSANINHA
Não prima, eu engordo
muito facilmente.

 

A funcionária regressa, com a mesma postura aborrecida, sem paciência.

 

FUNCIONÁRIA
Temos bolinho de arroz.

 

MARIA CLARA
Acho que isso tem glutén.

 

A funcionária revira os olhos.

 

SUSANINHA
É de arroz, Clara.

 

Voltando-se para a Funcionária

 

SUSANINHA (CONT’D)
Pode ser. E uma meia de leite.

 

A funcionária recolhe o menu. Ao fundo ouve-se uma voz grossa. É um dos jogadores de cartas, que fala com a garrafa de tinto na mão.

 

JOGADOR DE CARTAS 2
Oh linda, traz mais uma
que o meu amigo tá com sede.

 

A funcionária fecha o menu com força.
Os Jogadores, já bêbados, estão prestes a terminar mais uma partida. Cartas na mesa e mais uma vitória para o do bigode.
O derrotado fala num tom alto, descontrolado, enquanto recolhe as cartas.

 

JOGADOR DE CARTAS 1
Puta que pariu esta merda!
Não jogo mais, oh Zé.
Por mim tá feito.

 

JOGADOR DE CARTAS 2
Tem calma, rapaz.
Não desistas já.
Queres apostar a conta?

 

JOGADOR DE CARTAS 1
Ah, vai gozar com outro.
Sabes o quê que eu aposto?
Aposto que estás a roubar,
trafulha!

 

JOGADOR DE CARTAS 2
Eu não trabalho para
o Estado, amigo!

 

Os dois riem-se. Demasiado. De seguida adotam um tom mais sério, ainda que embriagado.

 

JOGADOR DE CARTAS 1
É por isso que eu votei
no outro, a ver se isto
vai ao sítio.

 

JOGADOR DE CARTAS 2
Oh, ele tenta, mas não chega
aos calcanhares do Dr. Salazar.

 

JOGADOR DE CARTAS 1
Isso é que era tempo, Zé.
Isso é que era tempo.

 

A funcionária chega com o vinho, pousa-o na mesa e espeta o saca-rolhas na cortiça.

 

JOGADOR DE CARTAS 2
Disso é que eu gosto.
Quantos anos tens, querida?
Dezanove? Vinte?

 

A funcionária não responde. Continua a abrir a garrafa, com alguma dificuldade.

 

JOGADOR DE CARTAS 1
Ui, com esses bracinhos
de princesa não vais lá.
Dá cá que eu ajudo.

 

Tenta tirar a garrafa da mão da rapariga, que a segura com força e lhe responde em tom ríspido, expressão incomodada.

 

FUNCIONÁRIA
Deixe estar que eu abro.

 

O Jogador vira-se para o amigo.

 

JOGADOR DE CARTAS 1
Epá, já não se pode dizer
nada hoje em dia.

 

Encara a funcionária

 

JOGADOR DE CARTAS 1 (CONT’D)
Já não se pode ser um
cavalheiro, moça?

 

JOGADOR DE CARTAS 2
Deixa lá a menina.

 

JOGADOR DE CARTAS 1
(rindo)
Eu deixo, deixo-a
fazer-me o que ela quiser!

 

Irritada, a funcionária abre a garrafa, serve um copo e despeja-o propositadamente contra a camisola branca do homem, que fica indignado e se levanta da cadeira aos insultos. O amigo ri-se às gargalhadas.

 

FUNCIONÁRIA
(cinicamente)
Peço desculpa,
já lhe trago um pano.

 

JOGADOR DE CARTAS 1
Gaja maluca!

 

Volta-se para o balcão, apontando para a mancha roxa na barriga.

 

JOGADOR DE CARTAS 1 (CONT’D)
Oh patrão, vai permitir esta merda?

 

O PATRÃO, fisicamente parecido com os jogadores de cartas, dirige-se à mesa e segura a rapariga pelo braço.

 

PATRÃO
(entredentes)
Epá, eu por acaso pago-te pra isto?
Vai buscar um pano para o senhor.
E vê se tens mais calma para a próxima.
O Patrão dirige-se ao Jogador.

 

PATRÃO (CONT’D)
Peço desculpa, companheiro.
Ela ainda está a começar.

 

FUNCIONÁRIA
(enervada)
Realmente não me paga pra isto.
E não me diga pra ter calma!

 

Os ânimos começam a exaltar-se, a discussão começa a adensar.
Na mesa do lado, a família católica escuta a briga. O pai está com a mão na testa, a mãe com a mão no peito, agarrada à cruz do colar. O rapaz olha para baixo com os olhos esbugalhados e as costas muito direitas. A rapariga encara o sucedido com uma expressão de repulsa, enquanto enrola a ponta do cabelo.

 

PAI
Se esta gente não sabe sair
de casa que não saia. Pelo amor
de Deus, que escandaleira.

 

MÃE
Deus os abençoe.

 

MADALENA
Eu disse para irmos ao brunch,
vocês não quiseram saber.

 

MÃE
Madalena, são seis da tarde! Além
disso é importante conviver com
estas pessoas de vez em quando.

 

MADALENA
Odeio pobres!

 

PAI
Esteja calada, Madalena!
Essas coisas ficam-lhe mal.

 

MÃE
Deus ama a todos.

 

O rapazito continua a olhar para baixo sem opinião, dando trincas na torrada. O pai lança-lhe um olhar austero.

 

PAI
Coma com a boca fechada!

 

A mulher deprimida continua exatamente na mesma posição, com o gato pachorrento ao colo e o olhar perdido, entre as olheiras e a falta de energia. Continua a massajar o gato e a mastigar o bolo com a boca suja de creme, alheia à situação.
O falso intelectual fecha o livro, tira os óculos e levanta-se, virado para a mesa dos jogadores de cartas. Num tom altivo, algo irritado, algo encenado, algo exagerado, fala:

 

FALSO INTELECTUAL
Peço desculpa, podem fazer
menos barulho? Há quem esteja
a tentar ler deste lado!

 

Todos se calam por um segundo. Em seguida, falam todos aos mesmo tempo.

 

PATRÃO
Esteja calado!

 

FUNCIONÁRIA
Problema teu, oh lindo!

 

JOGADOR DE CARTAS 1
Vai ler para casa,
paneleiro do caralho!

 

JOGADOR DE CARTAS 2
Olha, este deve achar-se inteligente.

 

Faz-se silêncio. O rapaz coloca as mãos no ar e volta ao seu sítio, lentamente. Já sentado encara Maria Clara e, levantando o indicador, faz círculos junto à cabeça como quem diz «estão malucos». Volta a sentar-se, a colocar os óculos e a pegar no livro.
A discussão retoma. Susaninha não está minimamente preocupada com o que se passa no café. Continua a falar entusiasmada para a prima, que não a ouve realmente.

 

SUSANINHA
E é por isso que eu e o Vítor nos
damos tão bem, sabes? Ele tem lua
em capricórnio e eu sou touro com
ascendente em peixes.
Nós funcionamos, tá escrito nas
estrelas. Tipo no outro dia ele
levou-me ao trabalho, antes da
multa claro, e toda a gente disse
que nós parecíamos aqueles casais
das revistas. Tipo o DiCaprio e a
Angelina. Ou é o Brad Pitt? Ai já
não sei, sempre confundi esses dois.

 

Susaninha continua a tagarelar. A sua voz mistura-se com os gritos da discussão e as conversas paralelas do resto do café. O som começa a ficar baço, como quando se dá um mergulho. A atenção de Maria Clara vagueia pelo café. Ela permanece praticamente imóvel, mexendo apenas os olhos. A sua expressão é confusa, parece dissociar-se da realidade.

 

CORTA PARA

 

INT. CAFÉ MONTANHA.
O som volta ao normal. A funcionária começa a desapertar o avental e grita mais alto do que os outros todos, que se calam.

 

FUNCIONÁRIA
PARA MIM CHEGA!
FASCISTAS DE MERDA!

 

Volta-se para o patrão e fala num tom normal.

 

FUNCIONÁRIA (CONT’D)
Pague-me este mês
e vá para o caralho.

 

Tira o avental enquanto se dirige para a saída. Atira-o para o chão, caindo aos pés de Susaninha.

 

SUSANINHA
Vês, Clara, não sei para quê que
implicastes com o bolo de arroz.

 

IV – JORNAL DA TARDE, LUTA DE CLASSES E POSSÍVEIS ALUCINAÇÕES

 

INT. CAFÉ MONTANHA.
O movimento acalmou. Vê-se o papel que sobra do bolo de arroz e da chávena vazia da meia de leite. Susaninha fala e gesticula, embora não se ouça o que ela diz, e Maria Clara permanece com o cotovelo na mesa e a cara apoiada na palma da mão.
Vê-se um livro aberto com um telemóvel pousado entre as páginas, acompanhado por uma mão que faz swipe right em todas as raparigas que aparecem na app de encontros. É o falso intelectual.
Vê-se uma faca que tenta retirar a crosta queimada de uma torrada. É a mãe, da família católica. Entrega a torrada ao filho. O pai está com a mão na testa e a rapariga, desinteressada, segura o telemóvel.
Vê-se o focinho do gato persa, com um ar deliciado. A mulher deprimida continua exatamente com a mesma expressão triste enquanto massaja o gato entre as orelhas.
O Jogador de Cartas 2 dormita com a boca semiaberta e um ar satisfeito, como o gato. O Jogador de Cartas 1 conversa com o Patrão, que está em pé junto à mesa. Também não se ouve o que ele diz.
Maria Clara não presta atenção a uma palavra da prima. Olha para o computador, para a página em branco. Suspira. Levanta os olhos, na direção do televisor, situado num canto da sala.
Está a dar o noticiário. No ecrã aparece “já a seguir” e o primeiro título de notícia que aparece é: IV – Jornal da tarde, luta de classes e possíveis alucinações. A imagem que acompanha a headline é uma vista geral do interior do café.
Maria Clara endireita-se na cadeira, estranhando o que vê. Esfrega os olhos, abre-os muito e volta a olhar para o ecrã.
Maria Clara percebe que se vê no televisor. Apanha um susto, puxa a cadeira para trás e levanta-se sobressaltada.

 

MARIA CLARA
Foda-se!

 

Quase toda a gente repara em Maria Clara, à exceção da mulher deprimida e do jogador de cartas que não acorda. Maria Clara está de pé, embaraçada, e volta a encarar o café.
Susaninha olha para a prima com um ar confuso.

 

SUSANINHA
Credo, Clara. Foi alguma
coisa que eu disse?

 

Maria Clara volta a sentar-se. O café volta à normalidade.

 

MARIA CLARA
Vi uma coisa estranha na televisão.

 

Susaninha vira-se sobre a cadeira de forma a encarar o televisor, mas a notícia já mudou. É agora sobre um homem que decidiu processar os pais por ter nascido. A jornalista começa a falar.

O homem de 27 anos assegura que gosta muito dos pais e lamenta ter de levá-los a tribunal, mas não consegue ignorar o facto de não ter sido consultado antes de nascer.

Um homem aparece na tela, dando uma entrevista.

“Why must I be stuck in traffic? Why must I work? Why must I face wars? Why must I feel pain or depression? Why should I do anything when I don’t want to? Someone had me for their pleasure!”.

Susaninha interrompe a reportagem.

 

SUSANINHA
Realmente isto é muito estranho,
não devias prestar atenção a
estas coisas. Se pensares muito
entras em parafuso. É muito fácil
ficar maluco, Clara, é assim
(estala os dedos) E quando dás
por ti já não tens juízo.

 

MARIA CLARA
Acho que tens razão.

 

SUSANINHA
Claro que eu tenho razão, prima.
A irmã do Vítor matou-se por causa
disso, já não te disse? Também
andava nas drogas, pronto, mas
era aquela cabeça que não batia
em condições. O Vítor contou-me
tudo, ela pintava uns quadros
todos marados.

 

Susaninha levanta-se da cadeira.

 

SUSANINHA (CONT’D)
Enfim, foi muito triste, nota-se
que a mãe dele nunca recuperou.

 

Susaninha retira um penso higiénico da mala, coloca-o rapidamente no bolso.

 

SUSANINHA (CONT’D)
Vou à casa de banho, volto já.

 

Maria Clara fica sozinha na mesa. A sua atenção volta-se novamente para a televisão, que continua com a reportagem.

Samuel, claro, compreende que o nosso consentimento não pode ser procurado antes de nascermos, mas insiste que não foi nossa decisão nascer. Por esse motivo, argumenta que deveríamos ser pagos para viver o resto de nossas vidas.
Uma exigência como esta pode causar uma rutura em qualquer família, mas Samuel afirma dar-se muito bem com os pais (ambos advogados), que parecem estar a lidar bem com a situação.

Uma mulher de meia-idade aparece no ecrã.

“I must admire my son’s temerity to want to take his parents to court knowing both of us are lawyers. And if he could come up with a rational explanation as to how we could have sought
his consent to be born, I will accept my fault”.

Maria Clara esfrega os olhos. Dá um gole na água. Olha à sua volta. O JOGADOR DE CARTAS 1 fala com o patrão, enquanto o amigo dorme.

 

JOGADOR DE CARTAS 1
É assim, chefe. Elas andam todas
espevitadas. Já nem se sabe quem
veste as calças.

 

PATRÃO
Se fosse minha filha apanhava,
pode ter a certeza.

 

JOGADOR DE CARTAS 1
Não se preocupe. Tenha é mais
cuidado ao contratar a próxima.

 

PATRÃO
Pode ter a certeza.

 

Alguém chama o patrão. É o patriarca da família católica, que aponta para a torrada do filho.

 

PAI
Peço desculpa, amigo, mas esta
torrada veio toda queimada.

 

JOGADOR DE CARTAS 1
Oh companheiro, quando eu
tinha a idade do rapaz comia
pão com quinze dias.

 

O Jogador vira-se para o patrão.

 

JOGADOR DE CARTAS 1 (CONT’D)
E a gente não se queixava,
não é verdade?

 

PAI
Mas eu por acaso falei consigo?

 

Os ânimos começam, mais uma vez, a exaltar-se. O rapazito tem os olhos no chão, a mulher tenta acalmar o marido, colocando-lhe a mão no ombro, a rapariga está alheia, no telemóvel. Ri-se para o ecrã, depois olha para o lado, na direção do falso intelectual. Ele sorri de volta e pisca o olho. Encontraram-se na app de encontros. Ambos fazem swipe right e começam uma conversa. Ele chama-a para a mesa dele. Ela levanta-se sem que ninguém repare. A discussão escala. No caminho cruza-se com Susaninha, que regressa da casa-de-banho e dão um pequeno encontrão. As duas protestam uma com a outra, mas rapidamente seguem em frente. Susaninha passa pela mesa da mulher deprimida, que dá mais uma trinca no éclair e, mais uma vez, fica com creme espalhado pelos cantos da boca triste. Já na mesa, Susaninha senta-se, inclina-se sobre o tampo e fala, quase em sussurro.

 

SUSANINHA
Prima, ainda não me veio o período.
Já se passaram três semanas.

 

Maria Clara está outra vez focada na televisão, não presta atenção à prima. A notícia continua.

A crença de Samuel está enraizada no que é chamado de antinatalismo — uma filosofia que argumenta que a vida é tão cheia de miséria que as pessoas deveriam parar de procriar imediatamente.

A discussão intensifica-se.

 

JOGADOR DE CARTAS 1
Vocês, ricos, não sabem o que
é a vida! Havia de o ver a
pegar numa enxada!

 

PAI
Francamente, meta-se na sua vida!

 

JOGADOR DE CARTAS 1
Vá para o caralho! Anda um gajo
a pagar impostos para vocês
encherem a barriga!

 

PAI
(levanta-se, furioso)
Mas o senhor está a insinuar
o quê, ãh?

 

O falso intelectual, está com o queixo quase a tocar no ombro de Madalena, numa tentativa tosca de sedução. Ela enrola a ponta do cabelo e exibe uma expressão de superioridade. Pega no livro que está em cima da mesa.

 

MADALENA
O que estás a ler?

 

FALSO INTELECTUAL
É um livro sobre a vida.

 

MADALENA
Não são todos?

 

FALSO INTELECTUAL
(susurrando-lhe ao ouvido)
Sim, tudo é sobre a vida.

 

Susaninha, com ar de espanto.

 

SUSANINHA
Clara, acho que estou grávida!

 

Na televisão a notícia continua, é o homem a falar.

“If we stop having kids that would gradually phase out humanity from the Earth which would also be so much better for the planet”.

Maria Clara está com a mesma expressão perdida, a olhar para todo o lado e para lado nenhum. Há muita coisa a acontecer ao mesmo tempo, a sua atenção vagueia, é confuso.
Os momentos sucedem-se rapidamente, as conversas misturam-se.

 

JOGADOR DE CARTAS 1
Porco de merda!

 

PAI
Pobre nojento!

 

A mulher deprimida mastiga lentamente, enquanto massaja o gato. O falso intelectual e a beta católica estão aos beijos.
Susaninha tem as lágrimas nos olhos e as mãos na barriga.

 

SUSANINHA
Ai prima, estou mesmo a sentir.

 

Na televisão, o homem continua a falar.

“We are a stupid species”.

Os dois homens começam à porrada. O caos está instalado. O tocador de acordeão entra café adentro, os tons alegres e o ritmo animado misturam-se com o barulho das conversas e discussões. O outro jogador de cartas continua a dormir profundamente. O rapazito adolescente começa a ter um ataque de pânico. A mãe corre a socorrê-lo. A mulher dá mais uma trinca no bolo. O gato persa continua a dormir profundamente.
O falso intelectual e a beta católica beijam-se. O tocador de acordeão dança por entre as mesas, a música vai escalando. O patrão tenta, sem sucesso, colocar tudo em ordem. Susaninha chora agarrada à mão da prima. O do jogador de cartas dorme. O gato persa. Os dois são idênticos, refastelados com as caras redondas e os bigodes.
O homem na televisão:

“Human existence is totally pointless!”.

Maria Clara parece perdida, é uma mera observadora de todo aquele caos. A música do acordeão está prestes a atingir o climax.

 

CORTA PARA

 

Página em branco aberta no computador de Maria Clara. A música para. Ela olha à volta. Está tudo como no início, cada um no seu lugar. O ambiente é tranquilo, está um dia quente, mas sopra uma brisa. Ouvem-se os acordes de acordeão, mas ao longe, lá fora. O patrão aproxima-se da mesa e, sobre a mármore, pousa um pratinho de alúminio com um papel agarrado. É a conta. Maria Clara pega no papel e lê, escrita a negrito
no topo do retângulo, a palavra FIM.

 

 

FIM

RITA ANDRADE

Rita Andrade tem 22 anos e é natural de Santa Maria da Feira. Estudou desporto no secundário como se não soubesse que era de letras. Licenciou-se em Filosofia pela FLUP e atualmente frequenta o Mestrado em Escrita Criativa na Universidade de Coimbra, onde se vai descobrindo como artista.

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