Produção short/age. © Todos os direitos Reservados.
Este autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

Tarde ou Nunca

um argumento de
Inês Sá Frias
trilha sonora de
Luís Antero
ilustrado por
Carolina Celas

Tentar controlar o seu temperamento nunca pôs tanta coisa em causa. Vasco chegou ao limite.

1. EXT. TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – DIA
Vemos um grande plano de uma mão masculina que segura um cigarro aceso. O punho tem feridas recentes, percebendo-se que esteve envolvido nalguma agressão. O cigarro é levado à boca de VASCO (37), que inala o fumo e o expele com visível prazer. VASCO está de pé, junto à porta principal do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu. A atmosfera é pacata e tranquila. VASCO trabalha como segurança. Fardado a rigor, tem um ar sisudo. É um homem bem constituído e forte. Vemo-lo concentrado, a olhar para o infinito. Na sua mão, o cigarro é fumado pelo vento, tal é a distracção. O momento sossegado é interrompido de rompante por uma CRIANÇA (10) que passa a correr tão perto de VASCO, que o pisa. VASCO acorda bruscamente do seu sonho acordado, fruto do susto e da dor no pé. A CRIANÇA, após pisar VASCO, corre a alta velocidade para perto de outros MIÚDOS (10), que se escondem agachados atrás de um carro. Furioso, VASCO atira o resto do seu cigarro na direcção da CRIANÇA que o pisou, com o intuito de lhe acertar.

 

VASCO
(grita, enraivecido)
Anda cá, seu cabrão!
Juro que te parto a boca!

 

De dentro do tribunal, algo ansiosa, surge GUIOMAR (46). Veste um fato formal e dirige-se precipitadamente a VASCO, que respira sofregamente. GUIOMAR está visivelmente enfurecida com VASCO.

 

GUIOMAR
(tenta sussurar)
Vasco!! Que é isto?
Mas tem quantos anos?

 

VASCO morde os maxilares com alguma força, tentando controlar-se.

 

GUIOMAR (CONT’D)
É absolutamente inadmissível que
perca a postura, ainda por cima à
porta de um tribunal!
Tenha respeito!

 

VASCO
(agitado)
Eu não posso mais com estes
putos, Dona Guiomar. Eu tou a
ficar maluco com eles.

 

GUIOMAR
Por amor de deus! Estamos a falar
de crianças! Armadas em parvas!
Quer dizer, se você não se contém
com simples provocações infantis,
não tem certamente capacidade
para lidar com situações sérias.

 

VASCO contém-se e retira outro cigarro do seu maço.

 

GUIOMAR (CONT’D)
E por favor, pare de fumar
enquanto está em serviço.

 

VASCO guarda o cigarro de volta no maço, sem dizer nada, mas visivelmente contrariado. GUIOMAR aproxima-se de VASCO e procura ser discreta.

 

GUIOMAR (CONT’D)
Vasco, lá em cima falou-se
bastante do seu incidente com o
miúdo cuja mãe apresentou queixa.
Você está por um fio.
Tente controlar a sua impaciência.
E por amor da santa, lembre-se
que se tratam de crianças!

 

VASCO
Dona Guiomar, é todos os dias!
Ninguém aguenta.

 

GUIOMAR
Pois, mas vai ter de aguentar.
Os alunos da escola da Ribeira
sempre passaram pelo tribunal
todas as manhãs e todas as
tardes, há anos! E vai continuar
a ser assim. E o Vasco tem de se
habituar, e tem de ignorar se
algum se mete consigo.

 

GUIOMAR recebe uma chamada, olha para o visor e prepara-se para regressar para o interior do tribunal.

 

GUIOMAR (CONT’D)
O Vasco deixa-se
afectar demasiado.

 

GUIOMAR entra no tribunal, atendendo a chamada. VASCO observa-a, e retira um cigarro do maço, acendendo-o. Após alguns segundos, ouvem-se assobios vindos da zona onde as crianças se escondiam. VASCO esforça-se para ignorar os assobios, olhando para o lado oposto e começando a trautear uma música com furor, de modo a não os ouvir. Fuma irritado, com o maxilar constantemente tenso, segurando no cigarro ansiosamente, e exalando o fumo agressivamente. Os assobios tansformam-se em palavras gritadas de longe, a maioria imperceptível. Provocado, VASCO atira o cigarro aceso para o chão e entra no tribunal, ficando do lado de dentro da entrada a olhar o exterior através do vidro. VASCO olha mortífera e atentamente o grupo de MIÚDOS. Entretanto, todos estão distraídos a ver um vídeo num telemóvel que um deles segura. Todos menos LEANDRO (10), que continua a olhar VASCO, concentrado. Existe um confronto tenso de olhares entre ambos durante uns segundos.

 

2. INT. CASA DE VASCO – FIM DE TARDE
Vestido com roupas de civil, VASCO retira do microondas uma refeição pré-feita de supermercado. A sua cozinha, estilo kitchenet, é suja e desarrumada. O ambiente é escuro e pouco acolhedor. VASCO fala ao telemóvel, agitado, caminhando pela pequena casa. Nunca ouvimos a conversa do outro lado.

 

VASCO
(exaltado)
Epá, oh Cíntia, deixa-me falar
com ela! (Pausa) Deixa-me falar
com ela, foda-se, também é minha
filha e tenho o direito de falar
com ela. (Pausa. VASCO fica mais
irritado) Diz-me em que hospital
é que estão! (Pausa, grita) Eu
tou-me a cagar para essa merda de
papel! A Sara precisa de estar
com o pai, especialmente quando
está em fase de tratamentos!
Qual é o nome do hospital?
Responde-me! (Pausa, VASCO fica
vulnerável) Cíntia, por favor.
Não me faças isto, deixa-me
visitá-la, por favor. (Pausa,
enfurece) Tu não me podes fazer
isto! Sabes quantos juizes é que
eu conheço, que quando souberem
que a minha filha tem leucemia me
vão retirar essa merda de ordem
de afastamento para poder estar
com ela? Ela precisa de mim!
(Pausa longa) Responde-me!

 

VASCO apercebe-se de que CÍNTIA (34) desligou a chamada enquanto este gritava. VASCO perde o controlo e atira o telemóvel ao chão com furor. Senta-se no sofá, impetuoso. Alguns segundos depois, pega no seu telemóvel e tenta ver se funciona bem, preocupado. Está desorientado.

 

3. EXT. TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – FIM DE TARDE
VASCO, fardado, auxilia duas SENHORAS IDOSAS a entrar no tribunal, mostrando-se prestável e simpático. LEANDRO caminha perto do tribunal, regressando das aulas, sozinho, de mochila às costas. Depois de ajudar as senhoras, VASCO coloca-se novamente no seu posto, reparando imediatamente em LEANDRO, que o observa de longe. Ambos ficam algum tempo em contacto visual. VASCO fica notoriamente incomodado com a presença de LEANDRO. De repente chega OUTRO SEGURANÇA (50’s), vestido como VASCO, vindo de dentro do tribunal. Vemos esta acção de longe, do ponto de vista de LEANDRO. VASCO e o OUTRO SEGURANÇA cumprimentam-se amigavelmente, trocam umas breves palavras inaudíveis, e VASCO despede-se, dirigindo-se para dentro do tribunal e sendo substituído pelo novo colega, que assume a postura imediatamente.

 

4. INT. BALNEÁRIO STAFF TRIBUNAL – FIM DE TARDE
VASCO está vestido à civil e acaba de apertar os atacadores dos ténis num banco do balneário. Fecha o saco desportivo onde tem a sua farda e coloca-o a tiracolo, dirigindo-se à saída do balneário.

 

5. EXT. ESTACIONAMENTO TRIBUNAL – FIM DE TARDE
VASCO sai do tribunal e caminha em direcção ao seu carro.
LEANDRO, que estava sentado nas escadas da entrada do tribunal, vê VASCO e levanta-se, seguindo-o deliberadamente até perto do carro. No estacionamento, LEANDRO olha VASCO tímido, com uma postura oposta à provocadora que vimos anteriormente. VASCO observa LEANDRO uns segundos e arranca com o carro.

 

6. EXT. TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – DIA
LEANDRO e um grupo de COLEGAS estão na zona pedonal em frente ao tribunal. Todos, menos LEANDRO, jogam à bola, animados. LEANDRO aparenta estar aborrecido e entediado, apenas a observar o jogo, e mostrando-se mais atento à porta de entrada do tribunal, como se aguardasse a chegada de alguém. Na entrada do tribunal, é um SEGURANÇA DIFERENTE (40’s) quem está de serviço. Alguns instantes depois, VASCO surge na entrada do tribunal, fardado, trocando de turno com o colega SEGURANÇA. LEANDRO fica subitamente muito atento a esta mudança, e ganha outra presença, mais participativa no jogo. VASCO, muito sério
no seu posto, presta subtilmente atenção às crianças, tentando não o transparecer. LEANDRO, a certa altura, recebe a bola de um amigo e chuta-a com intenção na direcção do carro de VASCO, de propósito. VASCO engole em seco e cerra os punhos, enraivecido. Alguns dos COLEGAS de LEANDRO ficam enervados.

 

COLEGA 1
Ei, então Leandro?

 

COLEGA 2
Agora vais lá tu buscar!

 

LEANDRO caminha em direcção à bola, bastante devagar, em jeito de provocação.

 

COLEGA 1
(provocação amigável)
Epá despacha-te, otário!

 

LEANDRO alcança a bola, perto do pneu de Vasco, e olha para ele. VASCO olha-o nos olhos, intensamente. LEANDRO retribui o olhar, com ar de mau. Dá um chuto na bola, com mais força, fazendo-a bater no para-choques do carro de VASCO. LEANDRO não desvia o olhar de VASCO, e cospe para o carro. VASCO concentra-se para se conter. LEANDRO abre a braguilha e começa a urinar contra o carro de VASCO. Todos os amigos de LEANDRO se riem descomedidamente, alguns aplaudem enquanto gargalham. Ficamos nos olhares de VASCO e LEANDRO, que se olham fixamente.

 

7. INT. CASA DE VASCO – FIM DE TARDE
VASCO está sentado no chão da sua casa, encostado ao sofá. Chora em silêncio enquanto segura o telemóvel ao ouvido. Tenta conter o choro enquanto está em silêncio a ouvir alguém que fala do outro lado.

 

VASCO
(tentanto não soluçar)
Eu-eu vou só ter de passar no
tribunal então, para ir buscar a
declaração. (Pausa) Sim,
do-da-daquela merda do papel que
a Cíntia arranjou- Sim, isso.
(Pausa) Ya, posso ter uma cena
que me dão lá no tribunal, para
ir ao velório e ao funeral.
(Pausa, choro contido enquanto
afasta o telemóvel de modo a que
não o oiçam chorar. Respira
fundo) Sim mano, é rápido, vou lá
agora. (Pausa) Ok, Casa de Saúde, ’tá bem.
Vou fazer isso agora e depois sigo para aí.

 

8. EXT. ESTACIONAMENTO TRIBUNAL – FIM DE TARDE
No estacionamento do Tribunal, VASCO entra no carro com um envelope na mão. Chora com o envelope junto ao rosto, e força-se a respirar fundo para se acalmar. Ouve-se o som de uma notificação no telemóvel de VASCO, tratando-se de uma SMS. VASCO pega no telemóvel e, no ecrã bloqueado, lemos a pré-visualização da mensagem: “Quando estiveres a caminho diz”. VASCO elimina a notificação e vemos a imagem que usa enquanto papel de parede do telemóvel bloqueado: uma bonita fotografia sua com Sara, ambos sorridentes. Observa um pouco a fotografia, e esfrega os olhos com força, tentanto não chorar. Quando se recompõe, repara em LEANDRO, que está sentado no corrimão da rampa exterior do tribunal. Desta vez sozinho. LEANDRO observa VASCO, com cara de mau. VASCO arranca com o carro e quando está na estrada, paralelo à rampa onde está LEANDRO, olham-se por uns segundos. VASCO estica-se e abre a porta do pendura, oferecendo o lugar a LEANDRO, e silêncio. LEANDRO salta do muro e dirige-se, devagar, ao carro de VASCO. Sem nenhum dizer nada, LEANDRO entra no carro de VASCO e senta-se no lugar do pendura, fechando a porta e colocando o cinto de segurança.

 

9. INT. CARRO VASCO – FIM DE TARDE
No carro de VASCO, este conduz enquanto LEANDRO observa o exterior. Vão em silêncio. Afastam-se do centro de Viseu, em direcção a São João de Lourosa.

 

LEANDRO
Tens namorada?

 

VASCO não responde, continuando a conduzir, muito sério. LEANDRO distrai-se com as árvores e postes na berma da estrada. Toca o telemóvel de VASCO. VASCO rejeita a chamada de imediato. LEANDRO não presta atenção. Segundos depois, toca novamente o telemóvel de VASCO, levando-o a rejeitá-la de novo. LEANDRO repara na fotografia que ocupa o papel de parede do ecrã bloqueado do telemóvel de VASCO.

 

LEANDRO (CONT’D)
A Sara está sempre
a faltar às aulas.

 

VASCO engole em seco, agarrando no volante com mais força.

 

LEANDRO (CONT’D)
Ela vai chumbar por faltas, de
certeza. (Pausa) A Sara é pior
aluna da turma. Toda a gente
diz que ela é burra.

 

10. EXT. DESCAMPADO – FIM DE TARDE
O carro de VASCO entra num descampado, algo árido, sem muita vegetação. Trata-se de um local afastado do centro de Viseu, e o ambiente é ligeiramente sinistro, existindo uma atmosfera suspeita no ar. VASCO sai do carro e LEANDRO continua no lugar do pendura, a observar o que o rodeia. Vasco caminha alguns passos, de mãos nos bolsos. Respira fundo algumas vezes. Esfrega os olhos, a testa, o pescoço. Está claramente inquieto e fora de si. Vasco vê uma tampa de esgoto no meio do descampado. Está um pouco camuflada por diversas plantas, umas mais altas e secas que outras. Vasco olha em volta, procurando entender a atmosfera do local. Dá uns leves toques com o pé na tampa de esgoto, averiguando se esta se move facilmente. Olha para o carro, e LEANDRO está entretido a embaciar o vidro e desenhar com o seu dedo algumas figuras e bonecos. VASCO olha novamente para a tampa, e tenta levantá-la com as mãos. Sem sucesso. Pensa durante algum tempo, e tenta outras estratégias, como pedras e paus, que o auxiliem a levantar a tampa. Não consegue. Encontra um pau mais resistente, e depois de algumas tentativas, continua sem conseguir. O suor e vermelhidão no seu rosto são agora evidentes. VASCO tem uma respiração ofegante e esfrega a cara com a camisola algumas vezes. De cócoras, tenta recuperar uma respiração calma. Levanta-se e dirige-se ao porta bagagens do seu carro, retirando de lá um pé de cabra, com o qual caminha até à tampa de esgoto. Com muito esforço, alguns gemidos e uma mão ensaguentada, consegue, finalmente, mover a tampa. VASCO vê a ferida na palma da sua mão e limpa o sangue às calças enquanto observa o interior húmido, sujo e escuro do esgoto que acaba de destapar. Vasco está transpirado e com alguns tiques incomuns. Na sua cara, nem contentamento nem raiva. Apenas uma expressão apática, peculiar.

 

11. EXT. CARRO VASCO – ANOITECER
Vasco aproxima-se do carro, e repara que LEANDRO dorme profundamente enquanto chucha no próprio polegar, usando uma camisola de Vasco enquanto almofada, junto à janela do carro. VASCO observa-o por uns segundos. Chora em silêncio.

 

12. EXT. DESCAMPADO – NOITE
É de noite. A tampa está de novo a cobrir o esgoto, o ambiente silencioso. Algumas folhas voam levemente, com a ajuda do vento. Vemos o carro de VASCO afastar-se.

 

FIM