Produção short/age. © Todos os direitos Reservados.
Este autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

Seis Cilindros

um argumento de
Vera Casaca
trilha sonora de
Teresa Gentil
ilustrado por
Susa Monteiro

No meio de uma operaçāo secreta, um grupo de espiões gananciosos vêm as voltas trocadas por uma família de civis incompetentes.

EXT. HOTEL – NOITE

Um Peugeot 403 preto pára, ouvimos os travões a guincharem.
O letreiro néon do Hotel projecta luz intermitente nos vidros molhados do carro.

TITLE CARD: VISEU, 1950

No seu interior vemos uma mulher, LEONOR.
Boina de lado, limpa uma mancha vermelha no rosto espreitando no retrovisor.

 

LEONOR
(sotaque francês)
Não devias ter bebido tanto café.
Já sabes que te causa nervoso.

 

Assim que se vê composta no espelho, olha para a entrada do Hotel e passa para o lugar do pendura.
Com urgência entra LIONEL, bem vestido de gabardine e fedora.
Leonor lança-se numa tentativa vã de um beijo, mas Lionel coloca-lhe a mão no rosto afastando-a.

 

LIONEL
O nosso agente está em perigo.
Como é que chegas assim atrasada?

 

LEONOR
Não encontro o meu revólver.

 

Leonor levanta uma pequena pochete, de onde vai tirando pertences: uma carteira, batom, um bibelot, cartas, óculos de sol, um guarda-chuva enorme.

 

LIONEL
Três dias. Estou à tua espera há
três dias.

 

Uma cafeteira, um gato bebé…

 

LEONOR
Já tentei recapitular tudo o que
fiz hoje, acordei, fiz as malas.
Tomei café com açúcar.

 

Leonel levanta o braço de Leonor reparando na sua manga ensaguentada.

 

LIONEL
Perdeste a arma
antes ou depois disto?

 

LEONOR
Açucareiro. Se calhar
deixei-o no açucareiro.

 

Num impulso Lionel faz uma vistoria pelo carro. Encontra algo no banco de trás que não nos é revelado imediatamente.
Levanta uma manta e apalpa algo, a sua mão vem vermelha.
Transtornado descarrega a cólera no volante. Leonor tenta apaziguá-lo, saca da pochete uma agenda e uma caneta.

 

LEONOR (CONT’D)
Pois olha troquei as voltas.
Não tinha agendado isto.
(apontando para trás)
Pensei que era terça. Só mato
às terças. Mas afinal é Domingo.
Dia santo ainda por cima.
Já te aconteceu, pensares que
é um dia e afinal é outro…
E os dias fundem-se assim?

 

LIONEL
Sim, quando trabalho contigo.
Penso que passou uma década e
afinal foi um mês.

 

Lionel arranca-lhe a agenda e atira-a para trás. Silêncio entre o dois.

 

LEONOR
Tinhas de atingi-lo com a agenda?
Não tens sensibilidade nenhuma.

 

LIONEL
E tu, tinhas de matá-lo?
Tens de parar com esse hábito.

 

Leonor levanta as mãos, desprezando o exagero de Lionel.

 

LEONOR
Não é todos os dias.

 

LIONEL
Ao menos tem alguma coisa
a ver com a operação?

 

LEONOR
Não directamente, mas…

 

LIONEL
Temos a Agente B33, em perigo. Como
é que te distrais com estas coisas?
Dá-me as chaves.

 

LEONOR
Aaaah! Afinal é uma agente, tinhas
dito um agente. Um agente. Aposto
que é uma galdéria.

 

LIONEL
Leonor dá-me as chaves!

 

LEONOR
Leonor dá-me as chave se…

 

LIONEL
Se faz favor. E a morada. O Belga
está a fazer jogo duplo, temos de
avisá-la.

 

Leonor vitoriosa, deixa cair as chaves na palma de Lionel, mas o seu sorriso revela que vai dar uma cartada.

 

LEONOR
A morada está na agenda. Podes ir
buscá-la e aproveita para lhe pedir
desculpas. Morto ou não morto não
se atiram objectos a ninguém.

 

Contrariado, Lionel apalpa o banco de trás. Levanta uma mão que segura na agenda. Parece oferecer-lhe resistência.

 

LIONEL
Mas que raio. Agora no meio desta
operação já atrasada ainda vamos
ter de nos livrar de um corpo.

 

Nisto arranca a agenda ensanguentada e desfolha procurando morada. Lionel suspira.

 

LIONEL (CONT’D)
A igreja? Podias-me ter dito que o
esconderijo era a igreja.

 

LEONOR
Se falasses comigo noutros modos.
Trouxeste o dinheiro?

 

Contrariado Lionel abre a gabardine mostrando-lhe um envelope no bolso interior.
Leonor estala os dedos.
Lionel gira a chave na ignição.
Leonor estala o dedos mais vigorosamente. Nesse momento a mão pálida surge de revólver em punho e aponta-a à cabeça de Lionel que fica hirto e desliga o carro.
Leonor suspira de alívio.

 

LEONOR (CONT’D)
Olha que esta. A minha Colt!
Eu sabia que a tinha deixado
em algum lado.

 

GUSTAVO
Passa o dinheiro.

 

LEONOR
(condescendente)
Se faz favor.
Podes dizer se faz favor?

 

Lionel apercebe-se que caiu numa armadilha.
Vemos agora o rosto de GUSTAVO, um jovem. Nas suas mãos o revólver treme como uma folha ao vento.
Lentamente Lionel retira o envelope para dá-lo a Gustavo, mas Leonor agarra no envelope, espreita e conta as notas.

 

LIONEL
Leonor?

 

LEONOR
(sem sotaque)
Leonor não. Angelica. Sabes houve
um momento que até gostei de ti.

 

GUSTAVO
Dele?

 

Leonor continua a contar as notas.

 

GUSTAVO (CONT’D)
Tu gostaste dele?

 

Gustavo continua de revólver em punho, mãos suadas.

 

LEONOR
(ignorando Gustavo)
Mas eu quero saber, tu sentiste
alguma coisa por mim?

 

LIONEL
Vou ser sincero –

 

BAAAM. Gustavo dispara o revólver acidentalmente.
Leonor fica aborrecida, mas não hesita.

 

LEONOR
O que é que eu te tinha dito em
relação ao café? Eu já sabia.
Ficas com as palpitacões, as mãos
transpiradas e taquicardia.

 

Gustavo salta para o banco da frente e empurra Lionel para fora do carro. Gustavo está alucinado com a situação.

 

GUSTAVO
(voz nervosa)
Matei uma pessoa.

 

Leonor segura firmemente no envelope.

 

LEONOR
Muito mais do que
eu estava à espera.

 

Ouve-se um barulho vindo do banco de trás.

 

LEONOR (CONT’D)
O que é isto?

 

GUSTAVO
(completamente em transe)
O meu irmão. Trouxe-o.

 

Surge MANUEL, que estende a mão para cumprimentá-la.

 

LEONOR
Tens um irmão? Perfeito.
Agora tenho de me livrar de três corpos?

 

Gustavo continua a navegar na sua espiral, murmurando.

 

MANUEL
Três? Como assim?

 

PAULO (O.S.)
Já tenho a perna dormente.

 

Leonor dá um salto.

 

LEONOR
Quem é que está aí?

 

Aparece PAULO.

 

PAULO
Prazer. Sou o irmão mais velho.

 

LEONOR
Quatro, quatro corpos.

 

Surge mais um rosto: MANECAS

 

LEONOR (CONT’D)
Cinco.

 

MANECAS
Sou o Manecas. Tenho ouvido falar
tanto de si. O meu irmão –

 

MANUEL
Cinco quê?

 

CAMILA (O.S.)
Ai. Está-me a pisar menino.

 

Surge CAMILA, uma senhora nos seus 70 anos.

 

CAMILA (CONT’D)
Prazer. Sou a Camila, a dona da
mercearia onde estes trastes
trabalham.

 

MANUEL
O que é que quis dizer com cinco?

 

LEONOR
Seis.

 

CAMILA
Sabe menina, eu nem gosto de me
meter nestas aventuras mas eu gosto
tanto de laurear a pevide. Ora
estes aqui disseram que iam dar
uma volta e claro que eu não ia ficar na mercearia.
Seja para onde for eu vou.

 

MANUEL
Gustavo, acho que a tua namorada
está a planear ver-se livre de nós.

 

CAMILA
Vamos onde? Olhe morria para ver a
serra do Caramulo. Olhe aqui, faço
sempre este pedido à Nossa Senhora.
Que me leve a ver a Serra do
Caramulo antes de eu bater
as botas.

 

Camila puxa um fio com uma grande medalha de ouro com a Nossa Senhora. Beija-a e volta a colocá-la dentro da camisola.

 

LEONOR
Quanto é que isso vale?

 

MANUEL
Gustavo! Ela vai matar-nos.
Gustavo acorda do seu transe.

 

GUSTAVO
Não digas disparates.
A Leonor não –

 

BAAAAAAAMMMMM. Leonor dispara um tiro fazendo tombar Gustavo.
O grupo no banco de trás grita em histeria, mas Leonor não perde tempo. Rapidamente vemos Manuel, Paulo, Manecas e Camila tombarem.

 

LEONOR
Ohhhhh… Detesto matar aos
domingos. Que Deus me perdoe.

 

Surge alguém de batina junto ao carro. Leonor fica tensa. A porta abre. Vemos a AGENTE B33, vestida de freira, puxa o corpo de Gustavo e senta-se.

 

AGENTE B33
“Agente B33”.

 

LEONOR
Leonor “a francesa”.

 

AGENTE B33
Bela tourada aqui.

 

LEONOR
Danos colaterais.

 

AGENTE B33
Estou na igreja escondida há
3 dias. Dormi no mármore.

 

LEONOR
Estava fresquinho?

 

AGENTE B33
Alimentei-me a hóstias! E vinho.

 

Contrariada com a descompostura, Leonor olha para a janela.

 

AGENTE B33 (CONT’D)
Tem o dinheiro? O meu contacto
em Bruxelas vai precisar de
viajar para –

 

LEONOR
Dinheiro? Non.

 

Tensão. As mulheres entreolham-se medindo-se.
Pausa tensa.
Leonor aponta-lhe a arma. A Agente B33 levanta as mãos no ar.

 

AGENTE B33
Bonita Colt. Já se fartou de
trabalhar hoje. Quantos foram?

 

A Agente B33 olha em redor, contando os corpos.

 

LEONOR
Com o trapaceiro do Lionel, que
fique sabendo, estava apaixonado
por mim, são…

 

AGENTE B33
Seis!

 

Nisto, a Agente B33, com um pujante soco deixa Leonor inconsciente.

 

AGENTE B33 (CONT’D)
A Colt só leva 6 balas. Amadora.
Mas quem é que está agora nos
recursos humanos?

 

A Agente B33, tira o envelope com dinheiro, abre a porta do passageiro e com o pé, empurra o corpo de Leonor. Gira a chave na ignição, ligando o carro.
Acelera, mas trava imediatamente quando se apercebe que uma pessoa se ergue no banco de trás, é Camila, que com esforço vai para o banco do passageiro. Baixa a camisola e vemos a pele avermelhada. Puxa o fio e mostra a sua medalha desfigurada pela bala.

 

AGENTE B33 (CONT’D)
Eu vou para Bruxelas minha senhora.

 

CAMILA
Seja para onde for eu vou. Mas pode
passar na Serra do Caramulo antes?

 

A Agente B33, acena com a cabeça pisa o acelerador.
Os faróis do carro extinguem-sena noite.

 

FIM