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Refazer

um argumento de
Sofia Moura
trilha sonora de
Leonardo Outeiro
ilustrado por
L Filipe dos Santos

Exausto dos longos dias e com uma bebé para cuidar, um casal imagina o refazer da sua vida e do mundo que o rodeia.

1. INT. QUARTO DE BEBÉ NUM APARTAMENTO – DIA
Uma porta no interior de um apartamento abre-se revelando um quarto de bebé. Uma CRIANÇA de cerca de um ano dorme num berço no centro do quarto. As persianas estão praticamente fechadas, mas entram fios de luz pelas frestas. Quem entra no quarto é a sua MÃE, uma mulher na casa dos 30, de cabelo longo, apanhado. Veste calças e uma camisola de manga comprida. É de manhã cedo. O dia lá fora está cinzento e chuvoso. A MÃE dirige-se ao berço em bicos de pés, sem fazer barulho. A CRIANÇA acorda.

 

MÃE
(falando entredentes)
Merda. O teu pai vai-me matar.

 

Dirigindo-se para a CRIANÇA.

 

MÃE
Então, meu amor?
Bem-disposta? Bom dia!

 

A criança estende os braços. A mãe pega na criança. Abraçam-se.

 

MÃE (CONT’D)
Vais-te portar bem hoje, não vais?

 

Toca-lhe na testa. Está quente. No seu rosto é visível a preocupação.

 

MÃE (CONT’D)
Estás quase boa.

 

A CRIANÇA lança os braços à volta do pescoço da MÃE.

 

MÃE (CONT’D)
Agora a mãe tem de ir.
Tem paciência filha,
a mãe volta já.

 

A CRIANÇA rejeita largar-lhe o pescoço. A MÃE sente-se culpada.

 

MÃE
Vá, tem de ser.
O pai fica aqui contigo.
Eu já venho, está bem?
Beijinho na testa para ficares boa.

 

Volta a deitar a CRIANÇA que começa a fazer uma birra. Entra o PAI, um homem na casa dos trinta, cabelo despenteado. Veste um pijama e traz na mão uma caneca de café quente.

 

PAI
Então, acordaste-a?

 

MÃE volta a pegar na criança.

 

MÃE
Não… Acordou sozinha, eu não
fiz barulho, só entrei para
ver como estava.

 

PAI
Que merda.

 

PAI abre as persianas.

 

PAI
Que dia.

 

MÃE
Vá, eu tenho de ir embora.
Cuidas dela?

 

PAI
Pois, claro.

 

Passa a criança para os braços do PAI que, por sua vez, lhe passa a caneca de café.

 

MÃE
Tínhamos combinado que
ficavas tu desta vez.

 

PAI
(interrompendo)
Shh… fala baixo.
(sussurra)
Pode ser que adormeça outra vez.

 

MÃE
(sussurra)
Avisei no trabalho que ia hoje.
Já te arrependeste?

 

Enquanto embala a CRIANÇA, responde.

 

PAI
Não. Vai lá.

 

MÃE
Já estou arrependida.

 

PAI
Vai.

 

MÃE
Se calhar ainda posso
ligar para lá…

 

PAI
Vai!

 

MÃE
Ok. Qualquer coisa liga-me,
por favor.

 

PAI
Não te preocupes.
Nós ficamos perfeitamente bem.

 

A MÃE sai do quarto com relutância. Fecha a porta.

 

2. EXT. ESTACIONAMENTO JUNTO A PRÉDIO – DIA
Está um temporal. MÃE sai de casa. Não tem guarda-chuva. Corre até ao carro, entra e liga a rádio. Está cansada.

 

3. INT. CARRO – DIA

VOZ DA RÁDIO (O.S.)
Este mês de Junho está a ser fustigado
pelas depressões que nos
chegam do Atlântico. Preveem-se
chuvas intensas e ventos fortes
durante todo o mês. Os distritos
de Viana do Castelo, Braga, Vila
Real, Porto, Aveiro, Viseu e
Coimbra estão esta quarta-feira sob
alerta laranja devido à previsão
de chuva persistente, segundo o
Instituto Português do Mar e da
Atmosfera. Os sete distritos vão
estar em alerta entre as 09:00
e as 21:00 desta quarta-feira.

 

O carro afasta-se.

CORTA PARA

 

4. EXT. ESTACIONAMENTO JUNTO A PRÉDIO – NOITE
É o final do dia, sete da tarde, já escuro. Vemos ao longe o carro a aproximar-se, a estacionar. MÃE sai do carro a correr e entra no prédio. Ainda chove.

 

5. INT. SALA DE ESTAR – NOITE
O casal está no sofá em frente à televisão. Lá fora continua a chover furiosamente. Falam em sussurro. Ao longo da conversa o volume das vozes vai aumentando gradualmente.

 

MÃE
Porque é que estamos
a falar baixo?

 

PAI
Está a dormir.

 

MÃE
Pois, claro. Boa, ainda bem que
dorme. (pausa) Nunca pensas como
é que teria sido se não tivéssemos
tido filhos?

 

PAI
Não. (pausa)
Se não tivéssemos
tido filhos falávamos alto.

 

MÃE
Seguramente.
Sabes quem é que se separou?

 

PAI
Quem?

 

MÃE
O Carlos e a Magda.

 

PAI
A sério?

 

MÃE
Sim.

 

PAI
Porquê?

 

MÃE
Não sei, não falei com eles,
soube pela Ana, mas agora vai
ser um problema.

 

PAI
Coitados.
Com a miúda pequenina…

 

MÃE
É a vida.

 

Ouvem-se as notícias da televisão.

 

VOZ DE UM JORNALISTA (O.S.)
A Procuradoria da Ucrânia confirmou
que mais de 3.574 crianças foram
afetadas pela guerra, com 630
menores assassinados e 1322
feridos. Esta manhã, um bebé
recém-nascido morreu na sequência
de um ataque russo a uma
maternidade na região
ucraniana de Zaporijia…

 

PAI
O mundo é mesmo uma merda.
Muda por favor. Põe uma série
ou um filme, não quero estar
a ver isso.

 

MÃE
Queres fingir que não se
passa nada, portanto?
É este o mundo que
ela vai conhecer.

 

PAI
O que é que eu posso fazer?

 

MÃE
Há sempre qualquer coisa
que se pode fazer.

 

PAI
Tu fazes alguma coisa?

 

MÃE
Por aquelas crianças não faço nada.
Mas podia fazer. Podia mesmo.
Se tivesse mais tempo.
Mais coragem.

 

PAI
Pois, a conversa é sempre a mesma.
Ias para lá? Com uma bebé em casa
para cuidares também? É aceitar
que estamos condenados a ver
acontecer e a pouco ou nada
podermos fazer. Não sei se a
resposta certa é mudar de canal,
mas também não me parece que
haja uma resposta certa.

 

MÃE
Pois. Se calhar tens razão.
(pausa) Estou exausta.

 

PAI
Eu sei. Também eu.

 

MÃE
Hoje foi tão óbvio para mim o
quanto estou farta do meu
trabalho. Preferia ter ficado
em casa com ela. Arrependi-me
logo quando cheguei lá.

 

PAI
Então? O que se passou?

 

MÃE
É o ambiente sobretudo.
Já não posso aturar a Inês.
Sempre a mandar bocas que
não se percebem. E depois é
toda a depressão daquele sítio.
A vulnerabilidade de quem ali
vai. Eles estão mesmo dependentes
da nossa boa-vontade. E se estás
num dia mau? Cometes um erro
ou respondes torto e, para alguém
assim, vulnerável, isso faz toda
a diferença. Isto revolta-me.
Eu própria, hoje, estava em piloto
automático. Conseguia ver os
olhos do Sr. Ramiro a pedirem-me
umas palavras de conforto e eu
fui fria, não lhe liguei nenhuma.

 

PAI
Acontece, não dá para estares
sempre bem. Não te recrimines.
E o COVID, como é que está?

 

MÃE
Está em alta outra vez.
E acho que vem aí outro vírus,
vi ontem nas notícias. Espero
que não seja grave. Estou tão
farta. Não sei como vai
ser daqui para a frente.

 

PAI
Eu não sei como vai
ser daqui para trás.

 

MÃE
Hã?

 

PAI
Esquece. (pausa)
As coisas são como são.
O que aconteceu aconteceu.
O que está feito está feito.
Mas era bom que desse
para refazer.

 

MÃE
Refazer o quê? O COVID?

 

PAI
Esquece. (pausa) Não, quer dizer,
sim,o COVID também, ou não, porque
isso nós em particular, não
controlamos mas há-de haver alguém
que controle, ou talvez há-de
ter havido alguém que cometeu um
erro ou que podia ter impedido
isso, não sei. Mas digo no geral.
Refazer aquilo que possa ter sido
um erro. Refazer o teu dia. O dia
daquele recém-nascido. Refazer
a escolha da tua profissão ou a
cidade em que vivemos.
A meteorologia. Ou refazer a
relação da Magda e do Carlos.

 

MÃE
(sarcástica, mas divertida)
Nesse teu sonho temos muito
poder de ação, tu e eu.
Controlamos o tempo que
faz e tudo.

 

PAI
Pois, claro, não vamos conseguir
refazer tudo, há coisas que estão
mesmo fora do nosso alcance.
Ainda assim, era incrível,
podíamos agora mesmo
sair do sofá e fazer alguma
coisa, tu construías um
“para a frente” e eu refazia
o que está “para trás”. E esse
à frente ia ser constantemente
refeitoe corrigido pelo que
vem de trás.

 

MÃE
Vamos em direções opostas?

 

PAI
É para sermos mais eficazes.
Depois voltamos a encontrar-nos
quando dermos a volta.

 

MÃE
É circular, portanto. O tempo.

 

PAI
Talvez. Estou a imaginar.
Parece-me que seria assim.

 

MÃE
Seria muito tempo para
estarmos separados.
Ela ia com quem?

 

PAI
Não pensei nisso.

 

MÃE
Mas já tinhas pensado nisto?
Não foi agora?

 

PAI
Mais ou menos.

MÃE
Arrependes-te do que
está para trás?

 

PAI
Quando digo que era bom refazer
digo no geral. Não exatamente
nas nossas vidas. Mas no geral.
(pausa) Foi só um pensamento.

 

MÃE
Bonito. Mas irreal.
O tempo não se dobra
assim. Tens de aceitar
que estamos condenados
a ver acontecer e a pouco
ou nada podermos fazer.

 

Pausa. Veem televisão durante uns segundos. Na televisão não há imagem. Vê-se um ecrã com formigueiro.

 

MÃE
Tenho de ir tomar banho.
Ligaste ao homem para
vir ver da caldeira?

 

PAI
Achas que tive tempo?

 

MÃE
Ai que merda, achas que é possível
viver mais tempo sem água quente?
Podes tratar do assunto?

 

PAI
Tu também podes tratar.

 

MÃE
Eu não tenho mesmo tempo.

 

PAI
Eu também não.

 

MÃE
Mas combinámos que eras tu a
tratar. Isto é uma prioridade.
É como comer, dormir, não deixas
de fazer porque não tens tempo,
tens de fazer. Gostas de tomar
banho com água gelada? E já
nem falo do banho da Vitória,
que tenho de estar sempre a
aquecer panelas com água.
Se estivesse calor lá fora
ainda entendia essa tua demora.

 

PAI
Olha, acalma-te se faz favor.
E não cuspas que eu sei lá as
doenças que trazes do hospital.

 

MÃE
Eu uso máscara no trabalho, ok?
Ela não apanhou aquilo de mim.
Ah, e já agora, antes que me
esqueça, reparei que ela estava
outra vez com as outras fraldas,
usa das fraldas reutilizáveis,
já te disse mil vezes, tu sabes
a culpa que sinto sempre que
mando uma das outras fraldas
para o lixo? 500 anos que demora
a degradar-se! E tu estás-te
nas tintas só porque dá um
bocadinho mais de trabalho,
que nem dá! É uma questão de hábito.

 

PAI
Quando ela chora não
dá tempo. Não dá…

 

MÃE
Não dá o quê? Claro que dá…

 

PAI
(quase a gritar)
Não dá para falar contigo.

 

MÃE levanta-se. Está irritada, cansada e confusa.

 

MÃE
Refaz então.
Andas para trás e eu sigo para
a frente. E já agora refaz o
tempo que não temos que anda para
aí perdido e que agora dava muito
jeito para pôr tudo em ordem.
Não sei se mude as roupas das
gavetas, não sei se ainda vai
demorar a chegar o bom tempo,
não sei se devemos voltar a
mandá-la para a creche, mas
também não temos alternativa,
era bom se pudéssemos arranjar
uma ama ou talvez uma empregada
a tempo inteiro porque ou é isso
ou então não podemos estar aqui
sentados a relaxar um pouco, mas
e o dinheiro para isso? Temos de
ser nós, não sei o que estamos
aqui a fazer sentados, é preciso
ir arrumar a cozinha, tratar da
roupa, levaste o lixo? Hoje
deste-lhe banho? Aqueceste a
água ou deste com água fria?

 

PAI
PÁRA!

 

Ouve-se um bebé a chorar. Ambos olham na direção do som. O som vem do lado da porta do quarto do bebé. Vemos a porta.

 

6. INT. SALA DE ESTAR (DIFERENTE) – NOITE
As personagens mudam de designação de PAI E MÃE para ELE E ELA.
Existem mudanças subtis no apartamento. Um vaso com uma planta muda de localização, existe agora um quadro na parede onde antes não havia nada, o sofá tem uma cor diferente. ELE e ELA vestem uma t-shirt, ELA tem o cabelo solto. Estão nas mesmas posições do fim da cena anterior, ELA está em pé e ELE está sentado na borda do sofá.

 

ELA
Bonito. Já não consigo ouvir isto.
Quando é que nos mudamos?

 

ELE
Nunca pensas como é que teria
sido se tivéssemos tido filhos?

 

ELA
Não. (Pausa, acalma-se)
Se tivéssemos tido filhos
falávamos baixo.

 

ELE
Seguramente.

 

A televisão passa do formigueiro a um concurso de talentos. O barulho desvia a atenção de ambos para o ecrã.

 

ELA
Não devias perder o teu tempo
a ver essas porcarias.
Muda para as notícias.

 

ELE
Já chega por hoje.
Estou exausto, vou dormir.

 

ELE desliga a televisão. ELA desloca-se à porta do quarto. Abre a porta. Lá dentro está um escritório, em vez de um quarto de bebé.

 

ELA
Não consigo dormir com este calor.
Vou trabalhar. Ver se faço alguma
coisa produtiva. Tenho de
acabar a encomenda da Magda.

 

7. INT. ESCRITÓRIO – NOITE
Senta-se a uma secretária. Vemos na secretária desenhos espalhados. Lápis de carvão. Um candeeiro.
Ouve-se de novo o som do bebé a chorar, vem do apartamento do lado. ELA revira os olhos, suspira e liga música clássica, Debussy, para abafar o som. Olha para um papel onde está o retrato de uma família que estava a desenhar. Vê-se um post-it em cima do desenho que diz:

Entregar até ao final da semana.

No desenho vê-se um pai, uma mãe e uma criança bebé. Mostra-se desagradada com a forma como está desenhado.

 

ELA
Refazer.

 

Amachuca o desenho, tira uma folha em branco e começa um novo retrato.

 

 

FIM