Produção short/age. © Todos os direitos reservados.

Reco

um argumento de
Rúben Sevivas
ilustrado por
Mariana Rio

Durante a matança do porco, um menino navega entre o espaço dos homens e o sítio das mulheres na esperança de encontrar o seu lugar.

Nota: todos os diálogos das personagens portuguesas estão escritos de forma a respeitar e melhor transmitir o sotaque transmontano. Os diálogos do personagem galego estão escritos numa mistura entre o galego e o castelhano e o português, para transmitir a aculturação do personagem ao país onde agora reside.

 

FADE IN

EXT. ALDEIA – MADRUGADA
Por entre o nevoeiro e o fumo espesso que sai das chaminés desalinhadas na paisagem, escondem-se telhados brancos, caiados pela geada, erguidos sobre paredes grossas de granito.
AO FUNDO: interrompendo a serenidade da paisagem transmontana do final dos anos 90, ouvimos o SOM de um porco em agonia. Ouvimos, também, as VOZES de vários homens; todos ao mesmo tempo.

 

EXT. QUINTAL – INÍCIO DA MANHÃ
Contrastando com o tom cinzento da manhã invernosa, surge DUARTE (8 anos) vestindo uma camisola amarela de lã, umas calças azuis de bombazina e um casaco vermelho. Todo arranjado, como se fosse para a missa. Vem a jogar uma GAME BOY COLOR.
Duarte levanta o olhar da Game Boy e contempla, de longe, a matança do porco. A sua expressão denota alguma indiferença e não se aproxima mais. Seguidamente, volta a focar-se no jogo.
Ouvimos a VOZ de uma mulher a aproximar-se.

 

AIDA
Fuge, rapaz!

 

AIDA (50 anos), com os braços salpicados de sangue, aproxima-se apressada e brutamente, carregando um alguidar de barro preto. Duarte, tentando desviar-se, tropeça no piso irregular e cai no chão de terra húmida.
Aida segue o seu caminho, apressada, sem deixar cair uma gota de sangue do alguidar.

 

AIDA
(para si)
Rai’s parta!
(chamando)
Ó, Bele!
Olha ali o teu garoto.
Cuida que é domingo
ou o catantchas.

 

BEL (O.S.)
Que se passa?

 

Ao SOM das palavras de BEL (35 anos), Duarte levanta-se num instante.
Bel é bonita e elegante, apesar das roupas desleixadas e gastas, e está nitidamente atarefada e sem tempo ou paciência para a situação.

 

BEL
Ó, Duarte, qué isso?

 

Apercebendo-se do sucedido, aponta para a Game Boy.

 

BEL
Já não dá?

 

Duarte baixa a cabeça comprometido, segurando a Game Boy na mão.

 

BEL
É-te bem feito!
Quem te mandou bir a jogare isso?
E essa roupa? Não te deixei o
fato-de-treino em cima da cama?!
(saindo)
Bai-te lá mudar.

 

Bel diz a última frase já a ir-se embora, enquanto limpa as mãos molhadas ao avental.
Duarte olha para a Game Boy partida sem grande esperança no rosto. Está resignado e conformado, sem sinais de irritação.
FORA DE CAMPO: Ouvem-se os PASSOS dos homens e as suas VOZES a aproximarem-se.
Duarte levanta os olhos e vira a sua atenção em direção aos HOMENS que se aproximam.
Sem vermos os rostos, corpos e roupas masculinas passam em frente a Duarte, sem lhe prestarem grande atenção. Um dos homens, GENARO (47 anos), sem revelar o rosto, dá-lhe um cachaço (calduço) – uma pancada que se dá na nuca de alguém com a palma da mão aberta – contestando:

 

GENARO
(em galego)
Ahora te quedas, neno!?

 

CORTE PARA NEGRO

 

TÍTULO DO FILME: “RECO”
Subtítulo: “NOME MASCULINO
1. TRANSMONTANISMO = PORCO”

 

INT. QUARTO DE DUARTE – INÍCIO DA MANHÃ
O quarto de Duarte é bastante colorido. A colcha da cama é do REI LEÃO.
Na parede ao fundo, vemos prateleiras com brinquedos e jogos. Duarte está em boxers revelando um corpo pálido e franzino. Duarte está a vestir as calças do fato-de-treino, colorido, quando TIAGO (10 anos), mais forte fisicamente que Duarte, entra no quarto a comer uma fatia de pão seco.

 

TIAGO
(mostrando a mão a Duarte)
Olha o que o reco me fez?
Botei-me às patas e o filho
da puta lixou-me.
(pausa)
Mas não o larguei!

 

Tiago diz a última afirmação de forma impositiva e, ao mesmo tempo, como que a querer justificar-se, revelando alguma insegurança.
Duarte continua a vestir-se. Está pouco interessado na conversa do primo.

 

TIAGO
Bê só este músculo?

 

Tiago exibe os bíceps inexistentes. Duarte olha hesitantemente. Tiago pega na mão de Duarte e obriga-o a apalpar-lhe o braço.

 

TIAGO
Sentes? Tá forte, não tá?

 

Duarte parece desconfortável, mas não tira a mão. O momento parece que pára, por segundos. Os seus olhos fixam, sem perceber o porquê, a pele do primo.
De repente, Tiago, incomodado com a reação de Duarte, mexe-se retirando o braço.
Duarte acorda ainda meio perdido na suspensão do momento.

 

TIAGO
Bá, despacha-te!
Já o tão a tchamuscar.

 

Tiago sai do quarto e Duarte, aligeirando-se, continua a vestir-se.

 

EXT. QUINTAL – INÍCIO DA MANHÃ
Num canto do quintal, cimentado, os homens lavam o corpo do porco com água. Vestem roupas escuras e pouco coloridas.
Falam todos ao mesmo tempo. TÓ (45 anos) é o único calado e tem um ar naturalmente calmo e reservado. Os restantes homens discutem entre eles sobre os que fazem o trabalho bem e os que o fazem mal. Disputam a técnica como se disputassem a masculinidade.
Duarte aproxima-se e fica ao pé de Tó, que fuma um cigarro. Tó nunca olha diretamente para Duarte, embora a criança procure constantemente o seu olhar.

 


(para Duarte)
Baixa a água da mangueira que o
teu primo anda com a mão pesada.

TIAGO
(irritado)
Eu perguntei se taba boa!

 

Enquanto a discussão continua, como barulho de fundo, Duarte dirige-se apressadamente até à torneira onde a mangueira está ligada e fecha um pouco a mesma. Quando regressa, Duarte olha para o pai e esboça um pequeno sorriso de vitória. Tó, por seu turno, continua sem olhar para ele.

 

HOMEM 1
(para Duarte)
Anda p’aqui tu qués
mais certo có teu primo…

 

Duarte sai de junto do pai e prepara-se para segurar na mangueira ocupando o lugar do primo que, não tomando as ações com bons modos, deixa cair a mangueira ao invés de a passar em mãos a Duarte.
Tiago afasta-se e murmura algo para si, impercetível aos demais.
Duarte, ainda que um pouco molhado, segura na mangueira vitoriosamente.
A água que sai da mangueira limpa o corpo do porco, agora bem liso e sem pelos, escorrendo a porcaria e o sangue cimento abaixo. A água segue um caminho imprevisível, mas certeiro, pelo pavimento cimentado até desaguar num pequeno rego de corrente abundante.

 

EXT. QUINTAL/COBERTO – INÍCIO DA MANHÃ
Os homens e Genaro circundam o corpo do porco que jaz de barriga para cima. Tó vai cortando a pele da barriga do porco, cuidadosamente, para que esta saia intacta, revelando a gordura e os músculos do animal.
Ao fundo, vemos Tiago e Duarte a contemplar o trabalho cirúrgico de Tó; ambos impressionados.

 


(sem levantar o olhar,
mas falando para Duarte)
Ó pá, tchega-me aí essa rodilha!

 

Tiago adianta-se a Duarte e entrega um pano, que já se encontrava preparado em cima de uma mesa, a Tó.
Tó ata uma ponta do pano ao porco e a outra ponta a uma corda.
Depois, os homens içam o porco. Tiago aproxima-se deles para os tentar ajudar, mas é empurrado. Duarte sorri.
Com algum esforço, os homens conseguem elevar o porco à altura de Tó, sem que o focinho roce o chão. Nesse momento, é Duarte quem agarra numa bacia grande, coberta por um lençol, e se chega à frente.

 

HOMEM 1
Dá cá isso, rapaz!

 

Mas Duarte continua agarrado à bacia. Não a quer entregar.

 

GENARO
Bueno, caralho, bueno!
Ti ques deixa lo quedo?
Ti no ques ber o neno a
llebar coas tripas enriba?

 

Todos se riem. Duarte olha para Tó, como que a pedir conforto, mas Tó fita-o fulminantemente.
Duarte entrega, imediatamente, a bacia a um dos homens e afasta-se.
Tó abre o abdómen ao porco. As entranhas do animal caem pesadamente para dentro do lençol segurado por dois dos homens. Depois, Tó arranca o coração ao animal.
Duarte permanece no seu canto, quieto, sem expressão, com o olhar fixo nas mãos de Tó.

 

INT. SALA DE JANTAR – INÍCIO DA MANHÃ
Na mesa, serve-se o sangue cozido regado com azeite e alho.
Os homens estão sentados; as mulheres põem em cima da mesa as travessas que parecem locomotivas, deixando um rasto de vapor atrás de si.
As mulheres, tal como os homens, vestem roupas pouco coloridas. Predominam os pretos, os castanhos, os verdes e os azuis escuros. Falam todos ao mesmo tempo: sobre o tempo; sobre política; e sobre futebol.
Duarte está sentado ao lado de Tiago e de DAVID (17 anos) com um aspeto grunge, com uma camisa de flanela aos quadrados e o cabelo escorrido.
CATARINA (14 anos) já com corpo de mulher feita, veste uma t-shirt das Spice Girls, leva uma sandes de queijo e fiambre, em pão centeio, a Duarte. Este sorri-lhe.

 

GENARO
(para Duarte, oferecendo-lhe
um pedaço de sangue)
Ti non queres probar um cibo!?

 

Duarte faz um gesto de negação com a cabeça e uma expressão de enojado. Ao seu lado, Tiago leva uma garfada de sangue à boca.

 

GENARO
Olla para o teu primo!
Máis houbese máis el comía!
(para António)
Ala Tó! Che o neno te sae vegetariano.
Ya te jodeste! Me cago en D…

 

DULCE (40 anos) surge rapidamente interrompe a asneira que Genaro ia a dizer com uma pancada seca no ombro. Este cala-se
enquanto todos se riem. Aida começa a servir-se de sangue cozido, em pé e debruçada sobre a mesa.

 

AIDA
(também para António)
Metej’o a comer a erba
do nabal e tá jantado!
Nem fodes dinheiro em calda…

 

Todos se riem. Tó bebe o resto do copo do vinho e, sem dizer uma palavra, pousa-o em cima da mesa. Duarte olha primeiro para o pai. Depois, envergonhado, mete a cabeça pra baixo. Quando este levanta o olhar…

 

INT. SALA DE JANTAR – INÍCIO DA MANHÃ – MINUTOS DEPOIS
…ouve-se o SOM das mulheres na cozinha a arrumar a loiça e a conversar.
Duarte, sozinho, sentado à mesa no mesmo local e na mesma posição, olha para a toalha suja de forma pensativa.
Depois, levanta-se e tira a toalha da mesa, pousando-a numa cadeira. Procura, entretanto, nos armários por uma toalha lavada. Põem a toalha lavada na mesa. Seguidamente, põe os pratos, os talheres e os copos. No fim, olha novamente para a mesa. Hesita.
Duarte dobra então os guardanapos de papel em forma de leque que põe dentro dos copos. No fim, contempla a sua mesa. Depois de alguns segundos, pega na toalha suja e sai.

 

DULCE (O.S.)
Qu’andas a fazere?

AIDA (O.S.)
Sempre de roda das saias da mãe.
Bai lá pra fora ter cos homes!

BEL (O.S.)
Bai, filho. Dá cá isso.

 

Ouve-se o SOM de uma porta a bater. AIDA entra na sala de jantar. Fica congelada por momentos. Depois, pondo as mãos na anca, esboça um sorriso de gozo.

 

AIDA
Ó, Bel! Anda cá ber que isto,
hoje, parece um restorante.

 

Aida não espera que Bel apareça e segue até ao fundo da sala de onde tira uma grande panela do armário. Ao fazê-lo, toca num dos guardanapos atirando com dois copos sobre a mesa.

 

AIDA
Caralho!
Já fodi a obra d’arte ó rapaz.

 

Bel chega e sorri, mas ao contrário de Aida, fica a olhar a mesa orgulhosamente.
Enquanto Aida continua a sua vida indiferente ao sucedido, saindo da sala com a panela, Bel levanta os copos e recompõe a mesa feita por Duarte.

 

EXT. PÁTIO/VARANDA – INÍCIO DA MANHÃ – LOGO DE SEGUIDA
Duarte percorre a varanda de madeira que circunda um pátio cimentado.
Encostados ao corrimão, estão Tó e Genaro a conversar e a beber um copo de vinho. Os homens mais novos e os primos dão uns toques numa bola, no pátio.
Duarte fica a olhar por momentos para os restantes. Distante. Ninguém parece reparar na sua presença. Duarte sai.

 

INT. QUARTO DE DUARTE – INÍCIO DA MANHÃ
Duarte entra no quarto e olha para a Game Boy, sem funcionar, pousada na prateleira.
Seguidamente, tira um bloco de folhas, umas canetas e começa a desenhar Pokemons no chão do quarto. Duarte parece estar bem.

 

INT. SALA DE JANTAR – FIM DA MANHÃ
Os guardanapos estão em cima dos pratos, pousados. Nenhum parece ter estado dobrado. São novos.
Duarte olha para a mesa, triste e desiludido. Tiago surge a comer uma fatia de pão seco.

 

TIAGO
Que tens?

 

Duarte não responde. Bel entra na sala com uma grande travessa de alumínio com salada, está a tratar da mesa para o almoço. DULCE entra na sala com uma grande jarra de água e olha para Duarte imóvel e encolhe os ombros.

 

BEL
(amavelmente)
Filho, bai com o teu
primo ber os bonecos, sim?

 

DULCE
Agora aqui só estais a estrobar…
ide lá!

 

Como o Duarte e Tiago não se mexem, Dulce agarra em Tiago pelo braço e arrasta-o para fora da sala.

 

TIAGO
Ai, mãe! Que me magoas!

 

BEL faz um sinal resignado a Duarte para que ele se vá. Duarte obedece sem alento.

 

INT. SALA DE ESTAR – FIM DA MANHÃ
Duarte e Tiago estão no sofá a ver TV. Ouvimos a MÚSICA do genérico dos Power Rangers.

 

TIAGO
A minha mãe no Natal disse que
me ia dar um Power Ranger.
Daqueles nobos!

 

Duarte olha para Tiago com ar de superioridade e sai. Tiago fica a olhar para ele meio intrigado.
Duarte reaparece e traz consigo um Power Ranger amarelo, dos que giram a cabeça revelando a identidade do ranger. Exibe-o confiante a Tiago. O boneco está com a cabeça destapada, sem capacete, revelando as suas feições.

 

TIAGO
É a rapariga!
Tu brincas com a rapariga?
(não espera pela resposta)
Eu não brinco com a rapariga…

 

Dito isto, Tiago ignora o brinquedo de Duarte e volta a sua atenção de novo para a TV.
Duarte permanece com o boneco na mão. Senta-se novamente no sofá e contempla a Power Ranger, pensativamente. De repente, vira a cabeça, e quando o faz o boneco fica com o capacete para cima, tapando-lhe a cara.

 

INT. CORREDOR – INÍCIO DA TARDE
A porta do quarto de Duarte está fechada. Ouve-se o SOM dos passos de Catarina.

 

CATARINA
Duarte, que tás a fazer?
A mãe já chamou pra comere!
Duarte?

Catarina aproxima-se da porta e prepara-se para bater quando esta se abre.
Duarte sai do quarto vestindo uma camisola preta, nitidamente maior do que ele.

 

CATARINA
Que tas a fazer com
a camisola do pai…?

 

Duarte nada diz.

 

CATARINA
Duarte?!

 

Duarte segue o seu caminho, sem olhar para Catarina e sem falar.

 

CATARINA
Duarte!!

 

Catarina, muito confusa, entra no quarto.

 

INT. QUARTO DE DUARTE – INÍCIO DA TARDE
Em cima da cómoda, está a Power Ranger amarela pintada a marcador preto.
Catarina pega no brinquedo, gira a cabeça do mesmo, e esta, que o revelaria rapariga, está partida.

 

FIM

 

FADE OUT

RÚBEN SEVIVAS

Nasceu em Chaves, em 1991.
Licenciou-se em Cinema pela Universidade da Beira Interior, com a apresentação do seu projeto final e primeiro filme – Fôlego (2017). Paralelamente, construiu uma carreira de ator e de produtor de teatro na sua cidade natal. Onde também cofundou uma produtora independente ligada à cultura, às artes e à região Transmontana.
Cofundou, em 2018, o coletivo Ay Filmes, um trio artístico em colaboração com João Araújo e Rita Lameira. Terminou o mestrado em Cinema em 2021, também pela Universidade da Beira Interior, de onde resultou o seu primeiro documentário, Direito à
Memória (2019), premiado com os prémios de melhor documentário no YMOTION19 e no Leiria Film Fest (2020), bem como com a Menção Honrosa do Prémio PrimeirOlhar Cineclubes, nos Encontros de Cinema de Viana (2020). O seu projeto final de
mestrado, Sobrevoo (2021), recebeu críticas favoráveis, entre elas a de Rui Tendinha, no DN: “uma confissão pungente e com uma audácia humana a lembrar os home movies de Chantal Akerman.”.
Integrou a equipa de programação do Cine Eco – Festival Internacional de Cinema Ambiental da Serra da Estrela, entre 2020 e 2021, e, atualmente, frequenta o doutoramento em Media Artes, mais uma vez, na Universidade da Beira Interior.