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Este autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

Primeiro Acto da Tranquilidade

um argumento de
Guilherme Gomes
trilha sonora de
Samuel Martins Coelho
ilustrado por
Susa Monteiro

Um projecto cultural promove uma instalação que passa por uma câmara de vigilância a emitir sem parar para a internet, com a expectativa de que as pessoas vão partilhar mensagens nesta plataforma. Esta instalação revela-se uma oportunidade para encobrir um homicídio. Como lidamos com a culpa de um acto que permitimos?

1. INT. ESCRITÓRIO EM CASA DO FRANCISCO – NOITE

Um escritório cuidadosamente organizado, iluminado com luzes quentes. Lugar confortável. Há construções em puzzle um pouco por todo o lado. Há livros e máquinas fotográficas.

FRANCISCO está sentado numa secretária, de frente para dois ecrãs. No ecrã da direita, a página em branco onde FRANCISCO trabalha no que parece ser uma ilustração; no ecrã da esquerda, o que parece ser a imagem de uma câmara de vigilância. No enquadramento distinguimos o adro da sé de Viseu.

É tarde. FRANCISCO está com fones.

 

FRANCISCO
Não posso falar mais alto,
os vizinhos já chatearam no outro dia…
É… (olha para o ecrã da esquerda)
Não. Ninguém.
De dia ainda aparecem umas pessoas,
mas à noite nunca vi aparecer ninguém.
Eu desligava isto de noite.
O quê? (ri) Está bem!
Vai lá. Bom descanso.

 

FRANCISCO fecha a página onde está a trabalhar na ilustração. Fica, por uns instantes a olhar para a imagem no ecrã da câmara de vigilância. Conseguimos que esta imagem está numa página de internet. Ele faz scroll. Podemos ler:

 

Ponto de Encontro
Não poder estar no Adro da Sé não
significa que ele não exista.
Nesta página podem matar saudades da praça.
Podem, se isso não vos colocar em perigo, ir até lá,
deixar uma mensagem de alento para quem esteja
a ver a emissão da nossa câmara-mata-saudades.
Está enquadrado um ponto de encontro futuro.
Quando der, encontramo-nos lá.

 

FRANCISCO revê isto tudo. Faz um esgar. Parece céptico em relação a esta ideia.

Vai às estatísticas da página. Poucas visitas. Nenhuma visita activa a horas de madrugada.

Ele deixa a página aberta, com a emissão a correr. No outro ecrã inicia um jogo de luta em primeira pessoa. É um cenário de guerra, acontece tudo muito rápido, e ele parece perder.

Ouvimos os protestos tímidos dele, na forma de esgares.

No ecrã onde passa a emissão da câmara, vemos os faróis de um carro que chega e pára.

A imagem é escura, mas dá para ver o vulto das pessoas que saem do carro. São dois. FRANCISCO olha para a imagem pelo canto do olho.

No centro da praça podemos ver um pequeno brilho que logo se apaga, e depois, a presença contínua, ondulante, de um cigarro a ser fumado por uma terceira figura até agora discreta porque na escuridão.

Os dois vultos aproximam-se deste. Parecem falar. Conseguimos ouvir as suas vozes abafadas porque longe, misturadas com os efeitos de som do jogo que FRANCISCO está a jogar.

Um dos vultos aproxima-se deste terceiro pela retaguarda.

FRANCISCO começa um novo jogo.

O vulto na retaguarda encosta algo ao corpo do terceiro.

No ecrã da emissão vemos um brilho discreto, e ouvimos o som, que parece afastado, de uma espécie de assobio rápido. O terceiro vulto contorce-se. O que está à retaguarda agarra-o pelos braços, o outro levanta-lhe as pernas. Os dois levam um corpo sem força para o carro.

O jogo continua, mas FRANCISCO não lhe presta atenção.

Ao perceber o que pode ter acontecido, não tem reacção. Endireita-se na cadeira, olha em torno.

Cola a cara ao ecrã, tenta recolher informação: Fiat Punto verde.

Pega no telefone. Liga. Não atendeu.

Pensa.

Os vultos batalham com o corpo que tentam meter na mala do carro. Batem-lhe.

FRANCISCO liga de novo. Atendem.

 

FRANCISCO
– homem morto na Sé de Viseu.
Ainda lá estão as pessoas. (tempo) Boa noite. (tempo)
Numa câmara de vigilância que temos lá. (tempo)
É para um projecto, minha senhora. Eu explico,
mas por favor enviem uma equipa para lá. (tempo)
Eles estão a meter o corpo na mala. Cont’

 

O VIZINHO de baixo bate no tecto.

 

VIZINHO (O.S.)
(gritando)
Três da manhã! Pouco barulho.

 

FRANCISCO (CONT’)
Francisco. Chamo-me Francisco Paiva.
Por favor, um carro para lá.
Eles ainda não foram embora.

 

Na imagem, um dos vultos olha na direcção da câmara. Não é claro se olha para a câmara, o plano é muito abrangente. Mas o vulto, parado, acena com o braço direito. Depois, enquanto um dos vultos liga o carro, o que acenou aproxima-se do lugar da câmara. Em nenhum momento lhe conseguimos ver a cara. Começamos a ouvir os seus passos. Depois, a sua voz:

 

HOMEM
É como diz o poema:
Só nós — ó tempo, ó alma, ó vida, ó morte! —
Mortalmente compramos
Ter mais vida que a vida.

 

O vulto corre para o carro, e eles vão.

FRANCISCO com os olhos pregados no computador.

 

2. EXT. ADRO DA SÉ DE VISEU – DIA

Dois agentes estão junto ao pelourinho.

Afastados, FRANCISCO e JOÃO.

 

JOÃO
Não vale a pena insistir.

 

FRANCISCO
Como assim?

 

JOÃO encolhe os ombros.

FRANCISCO não entende.

 

JOÃO
Sim. Só não quero
ter nada a ver com isto…

 

FRANCISCO
Demasiado tarde.

 

AGENTE 1
(de longe)
Disse que ele estava aqui?

 

FRANCISCO
Podemos ver as imagens!

 

AGENTE 1
Aqui não há nada.

 

FRANCISCO
Não querem ver as imagens?

 

Os agentes regressam.

FRANCISCO tem o computador na mão. Mostra-lhes.

 

FRANCISCO
Estão a ver?

 

AGENTE 2
Eu estou a ver, sim, mas…

 

AGENTE 1
O que o meu colega quer dizer é:
esta câmara está a filmar a praça…

 

JOÃO
Temos autorização para isso.

 

AGENTE 1
Certo. Mas é com que propósito?

 

JOÃO
Nós instalámos a câmara como
um exercício artístico, percebe…
No fundo é como se fosse um palco online.
Um enquadramento onde as pessoas
podem fazer manifestações artísticas.

 

AGENTE 1
Percebe a nossa dúvida?

 

JOÃO
Que dúvida?

 

AGENTE 1
Como é que sabemos que isto
não é uma manifestação artística?

 

FRANCISCO
Como assim?

 

AGENTE 1
Não há vestígios de crime no local.
Não encontrámos sangue, nem cartucho de bala.
Não há testemunhas, e não há registo senão este
vídeo que está num site que se assume como
sendo um palco para “manifestações artísticas”.

 

FRANCISCO
Mas parece-nos muito evidente que isto não é.

 

AGENTE 1
Vocês terão a vossa noção de arte, claro.
Mas não é evidente que isto seja um crime.

 

AGENTE 2
Até o poema no final.

 

AGENTE 1
Até o poema no final. Repare,
uma pessoa, quando é baleada… esguicha.
Percebe?

 

FRANCISCO
Mas não pode acontecer que…

 

AGENTE 1
Mesmo que não tenha sido preparada por vocês,
tanto quanto sabemos isto pode ser uma…
Como é que dizias?

 

AGENTE 2
Uma performance.

 

AGENTE 1
Isto. É muito estranho?

 

AGENTE 2
Já vi coisas mais estranhas.

 

AGENTE 1
Se é de bom ou mau gosto, bom,
reservo-me o direito de não comentar.
Em bom rigor gosto pouco do que se anda
a fazer artisticamente hoje em dia,
não me interesso muito. Por isso,
meus senhores, vamos dar um bocadinho
de tempo ao tempo. Tudo se há de perceber.
Estamos entendidos?

 

FRANCISCO
Sim.

 

AGENTE 1
Então, passem bem, meus senhores.

 

AGENTE 2
Bom dia.

 

Os agentes entram no carro.

FRANCISCO fica a pensar na hipótese que os agentes colocam, vai até ao lugar onde estavam os vultos no momento do suposto disparo. Depois, vai até ao sítio onde estava o carro. Não sabe o que procurar, mas procura, ainda assim.

À distância, JOÃO, com as mãos apoiadas na cintura, olha para o lugar onde está a câmara. Acena que não com a cabeça.

 

3. INT. UMA SALA DE ESTAR – NOITE

JOÃO está sentado a uma mesa iluminada apenas por um candeeiro. Claramente num lugar que não é escritório permanente. Há um computador portátil ligado em cima da mesa, mas JOÃO não está de frente para a mesa, mas de lado, debruçado com um dos cotovelos apoiado na perna. Fala ao telefone.

 

JOÃO
É melhor desligar durante a noite, se calhar.
Ou é melhor desligar e pronto.
Aquilo foi sinistro, foi.
Mas pode ser que seja discreto.
Alguém publicou alguma coisa?
Pois, não sei, Francisco. Não, não penses nisso.
Acho que não podemos deixar que nos consuma
o que não sabemos que é. E não é nada, de certeza.
Temos de deixar que o tempo passe.
Já fizemos o que tínhamos de fazer.
Se houver alguma coisa para ser descoberta,
pronto… descobre-se. (tempo) É, relaxa.
Faz as pazes com isto.
Olha, viste o mail que te enviei?
O tipo diz que não tem disponibilidade depois,
por isso é de fazer já o cartaz, começamos
a comunicar isto e faz-se já.
Eu já enviei um mail para a Joana,
e já atualizámos o calendário –

 

4. EXT. ADRO DA SÉ DE VISEU – NOITE

Talvez embalados por uma qualquer canção tranquila, qualquer coisa como a “Candy Says”, dos The Velvet Underground; bom, talvez embalados por uma qualquer canção tranquila, vemos as imaculadas pedras do adro da sé em pormenor.

A praça vazia.

As ruas vazias.

AGENTE 3 olha uma rua, volta-se para a frente boceja, e olha para o relógio.

Sensação de uma espécie de apatia.

 

5. INT. ESQUADRA DA POLÍCIA – NOITE

Uma MULHER, 45, com o auscultador do telefone entre o ombro e o ouvido, e nas mãos um grande dossier.

 

MULHER
Eu lamento, o caso não está a ser sequer investigado.
Não há fundamento. Diz que não há indícios de crime.
Quer um conselho? A justiça é como a água:
passa pela mais pequena brecha.
Não tem razão para estar inquieto.
Vá descansar, que é tarde.

 

6. INT. ESCRITÓRIO EM CASA DO FRANCISCO – NOITE

FRANCISCO tira os fones. Expira. Está exausto.

Esfrega a cara.

Levanta-se e olha em volta, no quarto.

Anda, como que abandonado.

Senta-se.

Concentra-se na página da emissão.

São quatro e dezassete da manhã.

Vai aquecer água para fazer um chá.

Na cozinha, encostado à mesa, come bolachas.

Regressa ao ecrã onde a emissão acontece.

Fica a olhar para a imagem, que, parecendo estática, é a emissão em directo do que na praça se passa. Os olhos secos, o corpo desistente. E podemos ver, quando a altura é certa, o sol nascer no ecrã.

 

7. EXT. ADRO DA SÉ DE VISEU – NOITE

FRANCISCO caminha na praça vazia. Caminha na direcção do lugar onde está a câmara. Aí, há um vulto.

FRANCISCO caminha com cuidado, para não ser notado.

 

VULTO
(Para o lugar da câmara de vigilância. Fala num quase murmúrio.)
Está aí alguém? (tempo) Eu sei que está aí alguém.
Deve estar aí alguém. (ele senta-se)
Eu… Costumava vir aqui muitas vezes,
há muito tempo, já, há muito tempo.
A esta hora. Era uma hora vazia.
Isto é dizer que eu sabia que este lugar,
a esta hora, era meu. Nenhuma testemunha
da minha presença. Gosto de sentir que estou só.
Como se pudesse revelar-me nesses momentos
sem o receio de que a minha verdade seja julgada.
Melhor, sem medo de que a minha verdade seja
interpretada. Entendeis? Há gente que gosta
de ser discreta, não se meter em grandes confusões.
Eu sou um deles. Mas esta hora, agora, não é vazia.
Agora estais aqui. E eu andei este tempo todo a
ganhar coragem para vos falar. Não me podeis
responder. É que uma das-

 

O VULTO interrompe-se.

Volta-se.

Conseguimos ver a sua cara. Os olhos com uma expressão de busca inofensiva, as sobrancelhas arqueadas, a boca meio aberta, a cara magra, pouco cabelo, uma figura gasta, tudo debaixo de maquilhagem que desenha os contornos de um bobo. Aquele bobo inteligente que poderia ser Stańczyk.

 

FRANCISCO
Está desligada.

 

VULTO
Estais aí há muito tempo?

 

FRANCISCO
Algum.

 

VULTO
Estivestes a ouvir-me?

 

FRANCISCO
Sim.

 

VULTO
O que achastes?

 

FRANCISCO
Não sei.

 

VULTO
(descomprometidamente)
Hm. Não me satisfaz. Está desligada?

 

FRANCISCO
Sim.

 

VULTO
Não noto a diferença.

 

FRANCISCO
Não era diferença que se devesse notar.

 

VULTO
Mesmo assim…

 

FRANCISCO
Melhor assim, não?

 

VULTO
Para pessoas como eu é bom haver uma plateia.

 

FRANCISCO
Porquê?

 

VULTO
Uma pessoa não se maquilha para andar escondida…

 

FRANCISCO
Mas o que estavas a dizer…

 

VULTO
É parte do número.

 

FRANCISCO
Ah. Não é verdade?

 

VULTO
Há de ter o seu fundo…
Mas se fosse só verdade,
porque é que o diria desta maneira?
Porque é que o diria aqui?
Então está desligada?

 

FRANCISCO
Sim.

 

VULTO
Que pena.

 

FRANCISCO
Porque é que o dirias aqui?

 

VULTO
O quê?

 

FRANCISCO
Disseste: porque é que o diria aqui.
Aquilo que estavas a dizer.

 

VULTO
Ah, sim.

 

FRANCISCO
E porquê?

 

VULTO
Ora, para brincar.

 

FRANCISCO
Para brincar?

 

VULTO
Não podemos ser completamente sinceros
quando estamos em frente a mais do que uma pessoa.
Pomo-nos a jeito para equívocos.

 

FRANCISCO
Não vejo como.

 

VULTO
Ninguém olha para o mesmo sítio para ver a mesma coisa.

 

FRANCISCO
Sempre pensei o contrário.

 

VULTO
Nunca pensastes muito sobre isto.
Para mim, como pessoa experiente,
é um desperdício não aproveitar
uma circunstância destas.

 

FRANCISCO
A câmara?

 

VULTO
O público!

 

FRANCISCO
Bom, eu estou aqui.

 

VULTO
Ah, claro, mas isso muda tudo.
Posso, portanto, começar?

 

FRANCISCO
Sim.

 

O VULTO assume uma posição teatral.

 

VULTO
Não vos assusteis.
Isto é tudo a brincar.

 

À medida que avança no texto que diz, o adro ganha cores novas. Como se luzes de teatro se acendessem aqui. Há luzes de ribalta, jogos de sombras. Visto de fora, o adro poderia parecer uma casa de bonecas, um teatro de brincar. E o bobo revela-se vestido como no quadro de Jan Matejko. FRANCISCO, percebemos agora, veste púrpura e peles. Tem uma coroa.

 

VULTO
A abelha que, voando, freme sobre
A colorida flor, e pousa, quase
Sem diferença dela
À vista que não olha,
Não mudou desde Cecrops.
Só quem vive
Uma vida com ser que se conhece
Envelhece, distinto
Da espécie de que vive.
Ela é a mesma que
outra que não ela.
Só nós — ó tempo, ó alma,
ó vida, ó morte!—
Mortalmente compramos
Ter mais vida que a vida.
Melhor?

 

FRANCISCO
(com uma satisfação tranquila)
Agora sim, muito melhor.

 

FIM