EXT. OBRAS DO AEROPORTO – DIA
Poeira, cimento e maquinaria pesada. Os trabalhos de extensão da pista estão parados. Não há ninguém na obra. Ouve-se o vento e o mar.
Ao longe, um avião deixa um rasto de condensação no céu limpo de dezembro.
INT. APARTAMENTO DE PAULO – DIA
PAULO, 30, está sentado, nu, em frente a uma janela que dá para as obras do aeroporto.
Na pequena sala, onde a luz que vem da rua é predominante, há uma secretária com livros cheios de post-its coloridos entre as páginas – Eça de Queirós, Saramago, Agustina, Herberto Helder, E.M. Forster, James Baldwin, entre outros – e papelada indiscriminada. Um corpulento telefone sem fios repousa virado para cima, ao lado de duas chávenas de chá, já só com as folhas abandonadas, como que preparadas para leituras divinatórias. TÉO, um gato cor-de-laranja, passeia lentamente pela confusão.
Ao fundo, o rádio transmite um resumo diário.
O apontamento sonoro que se segue transita da cena anterior.
RADIALISTA (O.S.)
Feriado com céu limpo em toda
a ilha. A partida foi dada e os
ciclistas vão pedalar até Câmara
de Lobos. Duzentos participantes
pedalam contra a SIDA, para que
nos lembremos que ninguém está
livre de contrair o vírus.
A ocupação hoteleira para o fim do
ano está abaixo das expetativas,
ainda que se espere um acréscimo
em relação ao ano passado. As
festas da chegada do novo milénio
custaram mais de 1,2 milhões de
contos ao governo regional. Mais
à frente, conheça as propostas
para o aproveitamento do terreno
por baixo da nova pista do
aeroporto, que será transformado
num megaparque de lazer. Por
agora, fique com música até à
hora certa. Tenha um bom feriado.
A Un Minuto de Ti de Mikel Erentxún toca. Téo estaciona sobre a papelada.
O telefone toca. Paulo interrompe o transe e olha na direção da secretária. Ignora a chamada e retoma a observação da obra estagnada.
EXT. AVENIDA ARRIAGA – DIA
O relógio da Sé Catedral marca dez e meia da manhã.
Um CORO INFANTIL vestido a preceito ocupa o largo da estátua de Gonçalves Zarco. Sob o comando da MAESTRINA, entoam canções de Natal num tom agudo, afinado e enternecedor.
ADELAIDE, 75, e CATARINA, 52, estão sentadas na esplanada de um café, a poucos metros do coro. Numa cadeira desocupada, repousam sacos de compras e carteiras volumosas. Adelaide ostenta anéis e brincos vistosos e tem um penteado imaculado, sustentado por uma quantidade tóxica de laca. Catarina é uma versão atualizada da mãe, menos conservadora no estilo, sem fazer destoar o par. Sobre a mesa, estão duas largas chávenas de chá e um prato com uma torrada ensopada em manteiga.
Catarina tem um grossíssimo telemóvel colado ao ouvido que guarda na carteira ao fim de alguns segundos de silêncio. Ouve-se, muito ao longe, o alvoroço dos ciclistas.
O sotaque de ambas é carregado e acentuado pelas expressões idiomáticas e construções frásicas.
CATARINA
Paulinho não atende.
ADELAIDE
Ainda dorme.
CATARINA
Dorme cá agora. Deve estar a
aproveitar o silêncio das obras
para aviar trabalho.
ADELAIDE
Ora quem vai morar para
um sítio daqueles…
CATARINA
(tom jocoso, sotaque carregado)
Quis fugir da gente!
ADELAIDE
E a pequena?
CATARINA
Essa sim ainda dorme.
O voo foi atribulado, está cansada.
Lisboa cansa.
INSERT: LAURA, 26, tem nas mãos uma NIKON analógica topo de gama (F4 ou F5) com uma alça de cabedal. Está em frente a uma paisagem de Lisboa, estática e demasiado saturada, um postal em tamanho real. Faz soltar o obturador. Durante este insert, ouve-se trânsito e demais ruídos urbanos.
ADELAIDE
(autoritária)
Hoje vamos ver as luzes.
CATARINA
Só acendem de noite.
Até lá Laura e Paulinho
hão-de acordar.
ADELAIDE
Diz que o mundo
acaba no ano novo.
CATARINA
Não diga disparates.
ADELAIDE
E a gente tem sorte,
na Austrália acaba antes.
(Sem seriedade na voz)
É Deus nos castigando.
CATARINA
Nevou no Pico do Areeiro.
A serra está branquinha!
ADELAIDE
Havemos de tomar a
carreira e ir lá ver.
O coro termina. Adelaide e Catarina aplaudem sem interesse.
INT. APARTAMENTO DE PAULO – FIM DO DIA
Luz da tarde. Paulo está nu, deitado na cama, óculos pousados ao lado da almofada. Masturba-se lenta e desinteressadamente. Téo anda pelos lençóis. O rádio está ligado e transmite uma canção instrumental genérica.
O telefone toca. Paulo suspira e atende, interrompendo a ação mecânica do braço.
CATARINA (O.S.)
Olá! Já estava a ficar preocupada.
PAULO
Estou a preparar uns testes.
Estou concentrado.
CATARINA (O.S.)
Tua avó e eu queremos ver as
luzinhas. Acendem hoje. Queremos
muito que venhas com a gente.
PAULO
Eu vou.
CATARINA (O.S.)
Tens camionete?
Vem de táxi, a avó diz que paga.
PAULO
Não é preciso.
CATARINA (O.S.)
Tua irmã chegou ontem.
PAULO
Eu sei, não pude ir ao aeroporto.
Chegou bem?
CATARINA (O.S.)
A aterragem foi um tormento,
já se sabe.
PAULO
Pois.
CATARINA (O.S.)
Vem ansiosa para a exposição,
atarefada, numa azáfama,
ao jeito dela.
PAULO
Imagino.
CATARINA (O.S.)
A avó nem sabe o que lhe espera
(dá uma gargalhada) sei que há
gente nua nas fotografias.
PAULO
(sorri)
Dona Adelaide vai ficar
escandalizada.
CATARINA (O.S.)
Enfim, (suspira) modernices do
continente. Trabalha, filho.
Até logo.
PAULO
Um beijo.
Paulo pousa o telefone e espreguiça-se. Suspira e agarra em Téo a quem dá um abraço, como se de um peluche se tratasse. Levanta-se e sai de quadro.
EXT. RUA DO ALJUBE – NOITE
CÂMARA LENTA – Paulo tem o braço dado a Adelaide e Catarina. A proximidade entre os três é muito física, palpável. Laura acompanha-os com a câmara a tiracolo. Caminham sob as iluminações festivas da cidade.
Sorriem e desfrutam das vistas numa alegria quase naïf, como se fosse o primeiro Natal das suas vidas.
EXT. RUAS DO FUNCHAL – NOITE
Adelaide, Catarina, Paulo e Laura convivem no meio de uma multidão. Bebem poncha e comem sandes de carne, vinho e alhos, tradicionais durante a época natalícia. Ouvem-se canções de Natal genéricas e o mar ao longe.
ADELAIDE
Paulinho, já tens o fato?
PAULO
Sim. Mas só vou usá-lo no dia 31.
CATARINA
O 30 é uma tontice, ficou mais
importante que o 31.
ADELAIDE
O 30 é mais chique.
PAULO
Não há foguetes a 30.
ADELAIDE
Os foguetes… 30 é noite de
hotéis, de glamour. A 30 ainda
vais poder celebrar a meia-noite
sem a Terra explodir.
Paulo dá uma pequena gargalhada.
CATARINA
Já não se pode com essa conversa.
LAURA
Quero rolos no Natal, tenho
detestemunhar essas explosões
como deve ser.
PAULO
(para Laura)
Está tudo pronto?
LAURA
(por entre golos de bebida)
Tudo por fazer. (pausa)
São só vinte metros quadrados
e dez fotografias…
CATARINA
Já é bom!
Temos de começar por algum lado.
LAURA
(condescendente)
Nem é tanto pelo espaço…
ADELAIDE
(com ironia)
É a gente, que não
tem olho sofisticado.
LAURA
Palavras suas, eu não
disse nada disso.
Paulo troca um olhar com HOMEM 1 que passa pela multidão.
PAULO
(ensimesmado)
Vai correr bem, vai correr bem.
Catarina e Adelaide afastam-se.
LAURA
Não ia gostar nada de
passar a vida toda aqui.
PAULO
Não é assim tão mau.
LAURA
Como é que consegues?
PAULO
Paciência. E um revólver
na gaveta, sempre pronto.
Os dois riem.
INT. SALA DE AULA – DIA
Dia cinzento. As luzes do teto superam em intensidade a luz do exterior.
Silêncio. Paulo, com os óculos pousados na mesa, cabelo penteado e a roupa impecavelmente tratada – pullover de lã verde sobre uma camisa bege e calças pretas – manuseia um livro: A Relíquia de Eça de Queirós, enquanto a TURMA faz o teste. No quadro de ardósia atrás de si estão marcas de giz apagado, em desordenados traços expressionistas.
Paulo está desinteressado no livro e alheio aos alunos, que copiam sem grande discrição.
INT. AUTOCARRO – FIM DO DIA
Paulo, com a roupa da cena anterior, dorme com a cabeça encostada ao assento, na última fila do autocarro. A luz é escassa. Tem a seu lado uma MULHER, 50, carregada de sacos e com um semblante exausto.
O autocarro para, a mulher levanta-se com esforço e sorri para Paulo.
MULHER
Boas festas.
Paulo desperta e retribui.
PAULO
Boas festas.
A viagem prossegue.
EXT. OBRAS DO AEROPORTO – NOITE
Maquinaria parada. Silêncio da noite. Um avião cruza a escuridão.
INT. APARTAMENTO DE PAULO – NOITE
Paulo veste um pijama cinzento e come uma sandes à janela a olhar para as obras em pausa.
Regressa à sala, senta-se à secretária e afaga o corpo de Téo. O rádio está ligado, ouve-se uma música instrumental e anúncios de festas de ano novo.
RADIALISTA (O.S.)
Entre com o pé direito no ano
2000. Música, animação, amigos
e o nosso fogo inigualável.
As carícias a Téo tornam-se demoradas, lascivas.
Paulo pega no grosso telefone branco. Hesita. Marca um número e desiste.
RADIALISTA (O.S.)
Amanhã não se esqueça do chapéu
de chuva. Trovoada em toda a
costa sul e ventos de 40Km/h.
Paulo remarca o número e aguarda.
PAULO
Estou?
A janela está aberta.
EXT. MÚLTIPLOS LOCAIS – NOITE
SEQUÊNCIA DE MONTAGEM EM CÂMARA LENTA AO SOM DA SONATA 42 EM D MENOR DE DOMENICO CIMAROSA. VENTO E CHUVA.
Paulo e HOMEM 1 são duas silhuetas na confusão das obras adormecidas do aeroporto. Os corpos encontram-se numa sofreguidão reprimida, as roupas caem no chão e o sexo é clandestino e silencioso. Chove.
HOMEM 2 faz sexo oral a Paulo numa rua deserta, em frente a um muro onde está colado um cartaz do musical Amália de Filipe La Féria.
PAULO e HOMEM 3 masturbam-se mutuamente entre os arbustos do Jardim Municipal do Funchal.
PAULO e HOMEM 4 são vultos granulados e indiscerníveis que se tocam no frio da noite, num espaço sem identidade.
INT. APARTAMENTO DE PAULO – NOITE
Chuva e vento. As cortinas esvoaçam e chuva entra pela janela aberta. Paulo entra em casa, molhado e ofegante, e acende uma luz mortiça.
Despe o casaco e procura por Téo quando se apercebe da janela esquecida.
PAULO
Téo? Téo! Téo…
Dirige-se à janela e observa com horror a estrada.
Paulo grita. Silêncio.
INT. GALERIA – FIM DO DIA
Uma ampliação fotográfica a preto e branco de um corpo nu, em desfoque de movimento, num espaço abstrato.
A sala é minúscula e de um branco impoluto. Ouve-se uma canção eletrónica (chill out instrumental ou algo como Scratched de Étienne de Crécy). Alguns visitantes observam com curiosidade as fotografias em exibição, segurando copos de vinho branco ou tinto.
Laura, sofisticadamente maquilhada e vestida, exageradamente formal, examina as reações, apreensiva.
As fotografias são, na sua maioria, retratos abstratos de corpos em interiores íntimos ou locais públicos.
Adelaide esboça trejeitos de desconforto. Catarina, contente, orgulhosa, tem conversas indistintas com os convidados da vernissage.
Paulo está pálido, com olheiras carregadas, corpo cansado e o cabelo por pentear. Detém-se colado a uma das imagens: um retrato seu deitado numa cama com Téo ao seu lado. Laura junta-se ao irmão.
Paulo sorri e aperta a mão de Laura.
Os olhos de Téo encaram a câmara.
INT. SALA DE ADELAIDE – NOITE
Ceia de Natal. Comida abundante sobre a mesa. A sala é pequena e está excessivamente iluminada. Ainda ninguém está à mesa.
Laura e Paulo estão sentados num sofá com copos de vinho Madeira meio bebidos. Laura tem uma CRIANÇA ao colo.
Adelaide, Catarina, e RESTANTES FAMILIARES vagueiam pelo espaço. Conversas cruzadas e tilintar de copos e talheres misturam-se com jazz natalício, o som de uma televisão e gargalhadas contidas.
Sob a árvore de Natal demasiado cheia de adornos, há presentes de vários tamanhos e a tradicional lapinha. As conversas são fragmentadas e sobrepostas.
CATARINA
O milénio, o milénio, o
milénio… tudo serve para nos
venderem coisas. Em bom rigor o
novo milénio só começa em 2001!
Já dizia eu aos meus alunos…
Paulo volta-se para a criança, pensativo, triste, didático.
PAULO
Está no céu dos gatinhos.
E está a ser muito bem tratado,
come patê todos os dias e tem
uma grande variedade de fios
coloridos para brincar.
E dorme muito!
A Criança ouve com pasmo e preocupação.
CRIANÇA
Como é que tu sabes?
LAURA
E o que é que tu
pediste ao Pai Natal?
CRIANÇA
(muda espontaneamente de humor)
Um Furby. (Pronuncia fárbi).
LAURA
Um fárbi? Uma barbie?
CRIANÇA
(a rir)
Um Furby! (melhora a pronúncia)
Laura e Paulo entreolham-se em ignorância mútua.
FAMILIAR 1
…reservámos no Savoy.
É caro, claro. Mas compensa.
Vê-se o fogo que é uma maravilha.
FAMILIAR 2
Para mim não há melhor vista
que lá para cima, para o Monte.
Lindíssimo. Vê-se a marina, os
cruzeiros, a cidade toda cheia
de cor…
O ruído envolvente abafa o diálogo.
ADELAIDE
…sente-se uma pressa nas
atitudes. O tempo está escasso
para redenções. Falou-se muito de
renovação (lança um olhar fugaz
na direção de Paulo). Insistiu-se
nas cartas aos Coríntios, por
exemplo. E no Apocalipse, claro…
Os embrulhos descansam na ansiedade da chegada da meia-noite.
EXT. MAR – AMANHECER
Lusco-fusco. Paulo flutua, nu e de olhos fechados, em alto mar. Abre os olhos e começa a nadar com braçadas assertivas para fora de quadro.
INT. CASINO – NOITE
Laura fuma à varanda. Está mais informal do que na exposição. Tem glitter nas pálpebras e as unhas roxas. Ao fundo há barulho de festa. Aprecia a vista, apaga o cigarro e coloca duas pastilhas elásticas na boca.
Entra na sala onde pessoas jantam em mesas redondas, decoradas com motivos do ano 2000 e muitas flores. Todos vestem roupa de gala. Laura senta-se ao lado de Paulo que imediatamente sente o cheiro de tabaco e nada diz.
Sorriem. Adelaide, Catarina e os restantes familiares estão também à mesa, em trajes de gala.
Uma cantora sobe ao palco e entoa Barco Negro acompanhada apenas por percussão. Silêncio na sala.
EXT. TERRAÇO – NOITE
São 23:58. Os presentes encaram o céu na expetativa dos sinais do ano novo. Com passas e notas de escudo na mão, Adelaide e Catarina olham inquietas para os relógios de pulso.
Laura tem a câmara em punho.
CATARINA
Paulo! Está quase, vem!
(olha em volta)
Onde é que se meteu a criatura?
Laura fotografa o rosto ansioso da mãe, disparando um flash violento.
CATARINA
Dá-me um descansozinho
Laura e vai ver do teu irmão.
Paulo aparece.
PAULO
Está quase.
LAURA
Últimas palavras antes
do fim do mundo?
PAULO
(pondera)
Silêncio.
LAURA
(sorri)
Não há nada melhor.
ADELAIDE
É agora.
TODOS
DEZ! NOVE! OITO! SETE! SEIS!
CINCO! QUATRO! TRÊS! DOIS! UM!
CÂMARA LENTA – olhos arregalados, rostos arrepiados que refletem o brilho colorido do fogo-de-artifício. Som de explosões retumbantes, de um qualquer cenário de guerra ou desastre tecnológico. Paulo esboça um sorriso catártico.
INT. APARTAMENTO DE PAULO – DIA
O apartamento está vazio, tem apenas a mobília pesada e nenhum sinal de estar habitado. Uma aproximação gradual à janela mostra o céu cru de janeiro, cortado por um avião que parte.
FIM
HENRIQUE BRAZÃO
Nasceu em Coimbra em 1993 e cresceu no Funchal. Reside em Lisboa desde 2011.
Frequenta o Doutoramento em Estudos Artísticos – Arte e Mediações na FCSH-UNL.
Entre muitas outras coisas, escreveu e realizou três curtas-metragens: Em Junho (2019), Farol (2022) e Postais do Oceano Atlântico (2023).