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O Vizinho

um argumento de
Wilson Silva
trilha sonora de
Leonardo Outeiro
ilustrado por
L Filipe dos Santos

Quem tem bom vizinho dorme sossegado.

1. INT. CASA – NOITE
Apenas uma parca luz entra pelos buracos das persianas corridas até ao fundo. As luzes estão apagadas. Rui tem cerca de 30 anos, é alto, um pouco gordo, com entradas avançadas na cabeça e uma barba cerrada por fazer. Tem vestidas umas calças de fato de treino e uma t-shirt. Move-se cautelosamente em direção à janela. Está descalço. Pisa um ladrilho solto, que range, o que o faz parar, sustendo a respiração durante alguns segundos. Respira fundo e retoma o caminho até à janela. Do seu ponto de vista, aproximamo-nos dos buracos da persiana num plano cada vez mais apertado, até podermos ver o lado de fora da casa. Escutamos apenas a respiração de Rui. Lá fora, a rua iluminada por um luar ténue. O olhar de Rui foca-se na casa do outro lado da rua, onde há uma divisão com uma luz acesa. Observa a estrada e as imediações da casa. Afasta-se da janela, caminha devagar, passa junto de uma pequena mesa onde está um gira-discos com um vinil encravado que se move para um lado e para o outro, produzindo um ligeiro som cíclico. Desliga-o. Senta-se no sofá. À sua frente, em cima da mesa, está um copo e uma garrafa de uísque quase vazia, um maço de cigarros amarrotado, um cinzeiro repleto de beatas. Verifica no telemóvel a queda pronunciada das ações de uma empresa. Olha para alguma coisa no chão, que fica fora do enquadramento.

 

2. INT. AUTOMÓVEL – DIA
Rui tem vestido um fato escuro e está perfeitamente barbeado. Ajeita a gravata, esticando muito o pescoço em direção ao espelho retrovisor. Aproxima as narinas do espelho e expira. Formam-se duas manchas embaciadas, parecem dois pulmões. Arranca.

 

3. INT. ESCRITÓRIO – DIA
Rui entra no escritório, onde já há algumas pessoas. Volta a ajeitar a gravata. Cumprimenta os colegas com acenos e sem sorrir, tira o casaco, pendura-o no bengaleiro e dirige-se à sua secretária. Senta-se. Aparece por trás de si uma rapariga, que lhe põe a mão no ombro. É ROSA, uma mulher na casa dos 30, que lhe fala num tom brincalhão, com um ligeiro flirt subentendido.

 

ROSA
Então o menino vem
almoçar connosco hoje?

 

Rui responde, fabricando um pequeno sorriso e virando um pouco o pescoço, mas sem chegar a olhar para a rapariga, que permanece atrás de si. Procura mimetizar o mesmo tom jocoso.

 

RUI
A menina não leva a mal,
mas hoje, com muita pena minha,
não vai ser possível.

 

Rosa arqueia as espessas sobrancelhas negras e exagera o franzir dos lábios.

 

ROSA
Hmmm… muito bem, não se
esqueça da festa mais logo.

 

Rui abre os olhos, parecendo, por um instante, ter sido surpreendido por uma informação desconhecida, mas Rosa não vê esse ar de surpresa.

 

RUI
Sim, sim, pois claro, lá estarei.

 

A rapariga afasta-se, e Rui deixa cair o meio sorriso artificial.

 

4. INT. GARAGEM – DIA
Rui sai do carro, com um saco de compras na mão. Está vestido com o mesmo fato das cenas anteriores.

 

5. INT. CASA – DIA
Rui entra em casa com o saco de compras, dirige-se ao sofá, senta-se, abre o nó da gravata, descalça os sapatos. Tira as compras do saco: uma garrafa de uísque por abrir (a mesma da CENA 1), duas embalagens de meia dúzia de latas de cerveja, duas pizas congeladas e um pacote de batatas fritas. Separa uma das cervejas, abre-a e bebe um gole, espreguiça-se. Levanta-se, dirige-se a uma estante, pega num disco de vinil e coloca-o no gira-discos. Poisa a agulha e o disco começa a tocar. Pega no telemóvel. Escreve uma mensagem:
“Tive de vir para casa, um imprevisto, provavelmente não irei à festa da empresa, voltamos a ver-nos na segunda-feira”.
Envia a mensagem.
Alguns segundos depois, surge uma resposta de ROSA:
“Oh k pena!! spero k n sja nd d grave…”.

 

Verifica as ações da mesma empresa que tinha visto na cena inicial. Visivelmente afetado, poisa o telemóvel, retira do bolso um maço de cigarros e, ao apalpá-lo, vê que só tem um. Bufa e cerra os punhos. Levanta-se, volta a calçar os sapatos, pega nas pizas congeladas e dirige-se a outra divisão da casa, de onde regressa segundos depois sem elas. Desliga o gira-discos e sai de casa.

 

6. EXT. RUA + INT. ENTRADA DE UMA TABACARIA – DIA
Com o fato um pouco amarrotado e o nó da gravata aberto, Rui aproxima-se da entrada da tabacaria. Lá dentro, de costas, está ARTUR, um homem baixo e robusto, arredondado, sem ser obeso. Quando o vê, Rui tenta voltar atrás, mas o homem vira-se e vê-o.

 

ARTUR
Eh, Rui.

 

Artur acena contente, enquanto tira um boletim do Totoloto.
Rui não tem outra solução: entra e cumprimenta o homem.

 

RUI
Olha, o senhor Artur.
Mudou de visual.

 

ARTUR
É verdade, eh eh, foi uma aposta
que fiz, se o Benfica ganhasse, cortava-o.

 

Artur leva o polegar e o indicador ao centro do lábio superior e corre-os, um para cada lado, no sítio onde agora não tem bigode.

 

ARTUR (CONT’D)
Isto parece que ando despido,
é a primeira vez que o corto
em mais de trinta anos.

 

RUI
Volta a crescer que é um ar.

 

Rui vê Artur com o boletim do Totoloto na mão e tira também um.

 

RUI
Já agora…
O prémio é bom esta semana?

 

ARTUR
É o cheque pote, eh eh.
Isto quem não arrisca… um dia
há de dar, meto sempre a mesma
chave, há mais de vinte anos, eh eh.

 

RUI
Ai sim? Olhe, eu cá é conforme
calha, não faz diferença nenhuma,
não é verdade?

 

Artur faz um aceno com o queixo e estica as beiças a pensar no caso.

 

RUI (CONT’D)
Se os estratagemas de cada
um funcionassem, aquilo
saía a quase toda a gente.

 

ARTUR
Pois, é verdade, é. (Pausa)
Que diabo, nem é tarde nem é cedo,
hoje vou meter assim uma chave à toa.
É assim mesmo, eh eh,
seja o que Deus quiser.

 

Acabam ambos de preencher o boletim.

 

ARTUR
Olhe, tem planos para mais logo?

 

Rui encolhe os ombros, emite um som hesitante.

 

RUI
Hoje, por acaso, tenho um…
hmm… um jantar… lá da empresa.

 

ARTUR
É pena, que você noutro dia
desenrascou-me com aquela malandra
da torneira que me arrebentou, eh eh…
ia lá a casa beber umas minis e
ver o jogo… Olhe, então para a
semana é que tem mesmo de ser.

 

Rui acena pouco convicto.
Artur responde-lhe num tom mais baixo.

 

ARTUR
Olhe, feche bem as portas,
que andou aí outra vez gatunagem
no bairro, soube?

 

RUI
Por acaso, não soube.

 

ARTUR
Foi, foi. Foram à casa dos Pachecos,
de noite, os que estão para a Suíça.

 

RUI
São casas desocupadas…
Hão de ser apanhados.

 

ARTUR
É até se lembrarem de ir às
outras também. Nunca fiando.

 

RUI
Pois, é preciso ter cuidado.

 

7. INT. CASA – DIA
Rui entra em casa, põe um maço de cigarros novo e o boletim do Totoloto em cima da mesa, descalça-se, respira fundo e olha para um bastão de beisebol que tem poisado junto à entrada.

 

RUI
(murmurando)
Nunca fiando…

 

Pega no telemóvel, tem algumas mensagens não lidas da Rosa. Ignora. Abre o Google. Não se vê o que está a pesquisar. Poisa o telemóvel na mesa virado para baixo e leva as mãos à cara num desespero contido. Acaba a cerveja que tinha aberta, abre outra e volta a pôr o disco a tocar. Regressa ao sofá e acende um cigarro.

 

8. INT. CASA – NOITE
Rui veste a mesma roupa da CENA 1. Está deitado no sofá, adormecido, a garrafa de uísque meia, o cinzeiro com meia dúzia de beatas, várias latas de cerveja vazias no chão, um pacote de batatas amarrotado e um prato com um resto de piza. O gira-discos, encravado na parte interior do vinil, produz um leve ruído cíclico. O telemóvel, poisado na mesa com o ecrã virado para baixo, acende uma luz, mas não emite som. Escuta-se algo a bater do lado de fora. Rui desperta, abre os olhos, levanta o pescoço por uns instantes e volta a deitar a cabeça. Outro som de pancadas. Desta vez, levanta-se sem fazer barulho e fica atento. Olha para o bastão.

 

9. EXT. RUA DA CASA DE RUI – DIA
Rui está a estacionar o carro junto à entrada. Uma mulher idosa aproxima-se. Rui sai do carro. Está barbeado e vestido com um fato diferente do das cenas anteriores. Há dois carros de polícia estacionados na estrada.

 

MARIA
(aflita, a voz tensa)
Boa tarde, menino Rui, então
não sabe a desgraça que aconteceu?

 

Rui fica tenso também. Não diz nada, mas abana a cabeça, sinalizando que não sabe de que se trata.

 

MARIA
O senhor Artur, menino, apareceu
morto em casa esta manhã, ainda não
se sabe, mas dizem que foram esses
bandidos, valha-me Deus, nem quero
imaginar uma coisa destas. Parece
que me quer sair o coração pela
boca fora. A polícia não diz nada,
não se sabe nada. Ele não vivia
aqui há muito tempo, mas
conhecia-o, não conhecia?

 

Rui olha em redor, a sua expressão é de choque.

 

RUI
Ó dona Maria, nem sei que
diga… conhecia-o… de dizer
bom dia e boa tarde.

 

MARIA
Era só para lhe dizer, menino,
como o vi chegar… Que tenha cuidado.

 

10. INT. CASA – DIA
Rui entra em casa. Respira ruidosa e profundamente. Tranca a porta. Senta-se no sofá, olha para a carpete, levanta-se e ajoelha-se, observando o chão. Esfrega a carpete com a unha.

 

11. INT. CASA – NOITE
Rui está parado a olhar para o bastão de beisebol. Escuta-se uma pancada do lado de fora. Embriagado, tenso e assustado, pega no bastão e caminha silencioso em direção à porta. Do lado de fora, uma voz.

 

ARTUR
Ó Rui, chegue cá, ó Rui.

 

Rui abre a porta, e o senhor Artur entra. Confuso com a situação, Rui dá um passo atrás, mas o homem volta a avançar em direção a ele. Contudo, ao vê-lo com o bastão na mão, recua, escorrega num tapete, bate com a cabeça na esquina de um móvel e cai no chão inanimado. Rui fica sem reação por uns instantes. Depois, baixa-se.

 

RUI
(preocupado)
Senhor Artur.

 

Nenhuma resposta.
Leva-lhe a mão ao pescoço. Respira, mas está inconsciente. Vai buscar uma toalha, põe-lha debaixo da cabeça, pega no telemóvel e liga 112. Enquanto o telefone chama, repara que junto da mão do senhor Artur está um boletim de Totoloto. Pega-lhe, desdobra-o e verifica que todas as cruzes marcadas estão assinaladas com um círculo a lápis.

 

VOZ DO OUTRO LADO DA LINHA
Emergência médica, boa noite.

 

Rui tem os olhos muito abertos, engole em seco, levanta-se devagar, fecha a porta.

 

VOZ DO OUTRO LADO DA LINHA
Emergência médica,
com quem estou a falar?

 

Rui desliga a chamada, abre uma página do Google e pesquisa “resultados Totoloto”. Olha para o ecrã e compara o que vê com o boletim que tem na mão. Senta-se no sofá, olha para o senhor Artur inerte no chão, engole em seco mais uma vez. Levanta-se e dirige-se pé ante pé à janela. Espreita pelos buracos da persiana.

 

FIM