Produção short/age. © Todos os direitos Reservados.
O Rei do Baile
um argumento de
R. M. Ribeiro
trilha sonora de
Dennis Xavier
ilustrado por
Susa Monteiro
Uma entrevista – a primeira entrevista – ao “Rei do Baile” e o caminho que ele trilhou até se tornar a máscara que esconde o Homem.
Escutar com headphones
INT. SALA – DIA
Uma sala indistinta. Identifica-se uma pessoa em contraluz. Não se reconhecem feições, apenas que se trata de um homem (40/45), sentado. Trata-se do REI DO BAILE. Está vestido de forma casual; com casaco largo de meia-estação. (CÂMARA FIXA).
Ouve-se uma voz, de alguém que não está visível (30/35).
ENTREVISTADOR
Podemos começar?
REI DO BAILE
(voz desinteressada)
Força…
ENTREVISTADOR
Falta o som.
Só uns segundos, desculpe.
REI DO BAILE
…
Falta mais uma coisa.
Para lá do som.
ENTREVISTADOR
Sim. Claro. Desculpe.
O ENTREVISTADOR levanta-se e entrega um embrulho ao REI DO BAILE. É a primeira vez que se observa o ENTREVISTADOR. Este veste-se de modo mais formal que o REI DO BAILE, mas sem fato ou gravata.
REI DO BAILE
Vou só confirmar, está bem?
Somos amigos e não me levam a mal. Certo?
ENTREVISTADOR
… Está como combinado?
REI DO BAILE
Sim.
ENTREVISTADOR
OK. Pronto.
Antes de começarmos:
podemos apresentá-lo como
“O Último Rei da Música Ligeira”?
REI DO BAILE
(furioso)
Ligeira é a tia!
Semi-levanta-se da cadeira. Pára a meio do gesto e volta a recostar-se.
REI DO BAILE (CONT’D)
De resto podem dizer o que quiserem.
São vocês a pagar.
ENTREVISTADOR
Desculpe.
Então… sugere algo melhor?
REI DO BAILE
(irónico)
Assim de repente,
o meu nome era capaz de funcionar!
Então rapaz? Não é suficiente?
ENTREVISTADOR
…
REI DO BAILE
(suspirando)
O que quiseres…
O ENTREVISTADOR faz um gesto com a mão para iniciar a gravação.
ENTREVISTADOR
Estamos aqui – não podemos dizer onde,
por motivos que são do conhecimento de
todos – com o denominado “Rei do Baile”.
Obrigado. Há mesmo quem diga
que é o “Último Rei do Baile”…
REI DO BAILE
(Sorriso rasgado. Voz
exageradamente simpática)
Eu é que agradeço. Não é fácil…
não é fácil fazer o que faço.
Muitos desistiram, outros… bem…
outros foram “cantar” para as paredes.
ENTREVISTADOR
Isso é um pouco frio da sua parte.
REI DO BAILE
Rapaz. Chamo todos os meus amigos
de rapaz, não é falta de respeito, certo
rapaz?! Somos amigos ou não, rapaz?
Reforço exagerado da palavra e tom irónico ao pronunciar “rapaz”.
REI DO BAILE (CONT’D)
Dizia, rapaz, quando 90% – ou mais –
dos cantores de baile, são aprisionados ou
desaparecem, estamos a brincar a quê?
Tenho a certeza de que não sou o último,
mas fico-me por aqui.
ENTREVISTADOR
Tem a certeza?
REI DO BAILE
Tenho.
ENTREVISTADOR
Mas não há banda, cantor, artista…
ninguém, que se saiba, que (…)
REI DO BAILE
Que se saiba? Rapaz… sabe-se
muito pouco. Por exemplo, “sabe-se”
(gesticula fazendo aspas no ar,
com os dedos; voz de falsete)
que não se pode organizar uma festa,
um baile – ninguém pode dançar,
em encontros “para o efeito”
(repete o anterior: gesticula fazendo
aspas no ar, com os dedos; voz de falsete),
certo? Mas alguém te proíbe de cantar?
E alguém te proíbe de dançar
onde estejas? Alguém?!?
ENTREVISTADOR
Não… presumo que… bem…
REI DO BAILE
Então rapaz?
Rapazes aí atrás das
tecnologias!… E vocês?
Pois. Sabe-se muito pouco.
ENTREVISTADOR
Quando aprovaram a Lei do Baile,
o que passou para a população
foi o fim de tudo isso!
REI DO BAILE
Tu leste a Lei?
ENTREVISTADOR
…
REI DO BAILE
Oh amigo! Chamo amigo
a todos os meus amigos, não é
falta de respeito, rapaz!
Pausa breve, como se considerasse algo.
REI DO BAILE (CONT’D)
A Lei não existe.
E se te disser isso?
ENTREVISTADOR
Que a Lei do Baile não existe?
REI DO BAILE
É por aí rapaz.
A Lei do Baile não existe!
Ponto!
ENTREVISTADOR
E os policiamentos?
REI DO BAILE
Quais? Tens algum gravado?
Tens algum Senhor Agente a fiscalizar
um bailarico? Um menear de ancas
com o menino ou menina?
Mesmo se em público?
Alguém pediu documentos a alguém?
“Chamem a Polícia do Baile”???
Ouviste isso em algum lugar?
Os bailes são o que sempre
foram e como sempre foram.
Agora… há outras coisas que não
têm que ver com os bailes.
ENTREVISTADOR
Podia explicar um pouco melhor?
REI DO BAILE
Deixa-me ver. Um exemplo.
Têm as imagens do meu último concerto?
ENTREVISTADOR
Aquelas que partilhou na REDE?
REI DO BAILE
Isso. Têm?
O ENTREVISTADOR olha em volta da sala. Recebe a confirmação positiva do PRODUTOR (30/35).
REI DO BAILE
Podem mostrar isso,
ou pelo menos ver vocês?
O PRODUTOR entrega um telemóvel ao ENTREVISTADOR. O ENTREVISTADOR segura-o e começa a ver o vídeo no pequeno ecrã. No vídeo vemos uma típica festa de aldeia, no entanto, não existem decorações.
Vê-se um cantor que nos parece ser o REI DO BAILE sobre o patamar superior da base de um cruzeiro ou pelourinho. Canta uma “morna” denominada “Terra e Adubo”.
O REI DO BAILE tem uma máscara que não permite que se lhe veja o rosto. Vêem-se algumas outras pessoas, rodeando o cruzeiro ou pelourinho, batendo palmas; algumas entoam parte da canção.
Algum tempo depois ouvem-se gritos; há confusão e as pessoas correm, afastando-se do local. O REI DO BAILE não sai de onde se encontra e parece avaliar cautelosamente o que se passa, pouco depois afasta-se da imagem e vai em direção ao barulho inicial. Ouvem-se tiros. A imagem – manteve-se sempre com o mesmo enquadramento – permite ver o REI DO BAILE a regressar e a distribuir algo por alguns dos populares próximos do enquadramento; trocam-se palavras que não se entendem; os populares agradecem com uma aparente semi-vénia.
Finalmente o REI DO BAILE remove a câmara do que parece ser num tripé e desliga-a.
O ENTREVISTADOR entrega o telemóvel de volta ao PRODUTOR.
REI DO BAILE
Viram?
ENTREVISTADOR
Vimos?
REI DO BAILE
O que se passou? Viram?
ENTREVISTADOR
Vimos alguém a cantar.
Vimo-lo a si! Ouvimos tiros.
Ouvimos barulho.
Ouvimos e vimos confusão.
REI DO BAILE
Sim, mas viram-no?
ENTREVISTADOR
A quem?
REI DO BAILE
Quando eu regresso à imagem,
quase no fim. Aquele homem que
fala comigo. Viram quem
estava atrás dele?
ENTREVISTADOR
Não se identifica. É um homem…
Já agora, o que é que deu às pessoas?
O que é que lhes estava
a entregar?
REI DO BAILE
Não importa. Isso é o menos.
É comigo e com elas.
Mas o homem não!
ENTREVISTADOR
Certo… e quem é… o homem?
REI DO BAILE
Eu só o reconheci depois,
quando divulguei o vídeo…
ENTREVISTADOR
… na REDE?
REI DO BAILE
Sim, na REDE. Só o reconheci aí.
Rapaz: Tu não o conheces?
ENTREVISTADOR
Não. É um homem… desfocado!
Podia ser qualquer um de nós!
REI DO BAILE
(tom acusador)
…
Podia, não podia?
ENTREVISTADOR
Pode ser qualquer pessoa.
Quer dizer. Não sei.
REI DO BAILE
Eu digo-te, rapaz.
É o responsável pela INFORMAÇÃO.
ENTREVISTADOR
Pela informação?
REI DO BAILE
Não, pela INFORMAÇÃO reforçando “In”!
Dizes que se sabe que a Lei do Baile proíbe
bailes e o que mais. Eu digo-te que isso
é INFORMAÇÃO. Só INFORMAÇÃO.
E há um homem responsável pela
NFORMAÇÃO que depois surge
nas informações a que todos ligam…
ENTREVISTADOR
E este é o homem?
Aquele que nós vimos?
REI DO BAILE
Nem mais, rapaz!
Agora já entendes?
ENTREVISTADOR
Eu queria dizer que sim…
Eu gostava de dizer que sim, claro.
Mas não. Desculpe. Não…
REI DO BAILE
…
ENTREVISTADOR
Podemos, se calhar,
voltar ao início da nossa conversa?
REI DO BAILE
…
ENTREVISTADOR
As pessoas que nos vêem
talvez não saibam…
REI DO BAILE
… nem vocês, ninguém sabe…
ENTREVISTADOR
…talvez não saibam como
começou neste caminho.
Como se tornou o “Rei do Baile”?
REI DO BAILE
Sim. Pelo início.
Eu… eu era um cantor. Um artista,
mais do que um cantor; logo desde
o princípio. Tinha seis ou sete anos
quando um tio me levou ao primeiro
bailarico. Parece que o estou a ver.
Era um arraial daqueles bons.
Daqueles que se faziam como
deve de ser. Tinha o palco, as luzes,
umas bandeirolas e as barracas.
Arraial com barracas
Nem pensam estes rapazes
em como era um arraial com barracas!
Ajudei a montar muitas!
Atrás das barracas era o mundo inteiro,
para quem tinha aquela idade.
ENTREVISTADOR
(Pequena tosse fingida)
O seu tio?
Ele também era “artista”?
REI DO BAILE
Não, não. Não era. Só me levou.
Da primeira vez que fui.
Ele era torneiro, mas isso não
vem ao caso. Na família ninguém
gostava dos artistas.
Gostavam todos dos bailaricos,
mas de artistas nem por isso.
A mim ainda ameaçaram expulsar
de casa, quando comecei. Depois
vieram os primeiros trocos e a coisa
dava para disfarçar.
Era mais um trabalho…
pronto, ficou a ser aquilo.
PRODUTOR (O. S.)
O seu tio torneiro. O Sr. José?
REI DO BAILE
Hã? O Sr. …? Sim o meu tio torneiro,
só tinha um tio que era torneiro.
Sim, José. Zé. O tio Zé. Tinha um chapéu
– o Tio Zé – que um dia me ofereceu.
Aquele mesmo que usei mais tarde naquela
fotografia que vocês têm. De mim. Pequeno.
Aquela de quando estava em palco…
ENTREVISTADOR
No seu primeiro concerto?
REI DO BAILE
Sim, sim. É isso, aquela do
primeiro concerto. Tinha um chapéu
grande, de abas. Era do Tio Zé.
Sim, do Tio Zé. Era isso – o chapéu –
e uma pandeireta. Mas naquela altura
não eram bem concertos embora sejam
concertos. Naquela altura era um miúdo
que divertia os mais velhos.
ENTREVISTADOR
E quando foi o primeiro concerto,
mesmo a sério, se preferir dizer assim?
REI DO BAILE
Isso… isso começou em miúdo, mas não
quando era miúdo. Um daqueles programas
antigos que havia era o do Robin dos Bosques.
Havia uma série do Robin dos Bosques,
a preto e branco. Antiga que sei lá.
A série tinha uma música que dava na
apresentação. Eu sabia da série porque
ouvia a música e ia a correr ver. Gostava
daquilo e nas brincadeiras era sempre o Robin.
Um meu vizinho era o João Pequeno
e havia outro que era o Mascarilha.
ENTREVISTADOR
O Mascarilha?
Mas isso é outra série…
REI DO BAILE
Sim, o Mascarilha! Oh rapaz:
somos miúdos uma vez na vida!
Que te incomoda que o Robin dos
Bosques andasse nas explorações
com o Mascarilha? Camandro, homem!
Fosga-se que me deixas maldisposto.
Irra! Então não iam os dois
salvar o mundo e coiso?
ENTREVISTADOR
Desculpe… foi sem intenção!
Dizia que brincavam ao
Robin dos Bosques…
REI DO BAILE
Quê? Ah. Sim, eu, o meu vizinho
e o outro vizinho mais pequeno.
Um bocado manhoso esse mais pequeno.
Queria sempre ser o Robin, mas eu
dizia-lhe como era! Assim, estávamos nós
naquilo de gostar do Robin dos Bosques e
havia aquilo da música da série, certo?
E então fiz uma música da série, mas
com outra letra! Foi assim mesmo, sem mais.
ENTREVISTADOR
A famosa “Rapaz da Mota”?
REI DO BAILE
Isso. Quando faço o “Rapaz da Mota” a coisa
pega e davam-me uns copos de vinho com
água para eu cantar mais alto! Aquilo é que
eram coisas. Vinho com água aos miúdos!
Um dia, mais tarde, mesmo mais tarde,
parece que alguém tinha gravado e alguém
ouviu e mais alguém gostou… De repente
tenho uma carreira mesmo com tudo e
convites para os arraiais. Até me ofereciam
as bifanas e o bar aberto. Houve uma em que
até tinha uma caravana para descansar!
Aparecia o meu nome nos cartazes
(ainda guardei alguns) como
“O Rapaz do Rapaz da Mota”!
ENTREVISTADOR
Essa música não foi a
única a ficar famosa? Viral?
REI DO BAILE
Não! Houve tantas!
Essa foi a primeira…
ENTREVISTADOR
E é por isso que ainda hoje alguns
lhe chamam o “Robin dos Arraiais”?
REI DO BAILE
Sim… acho que sim.
Quando isto tudo de agora se
passou ou começou a passar, as pessoas
queriam a festa do costume. Já se viu
uma aldeia sem festa, rapaz? Quando
se disse que vinha a Lei do Baile eu
fiquei-me. Não sabia o que era.
Ninguém sabia. Mas houve um dia,
ali para os lados de…
PRODUTOR (O.S.)
Póvoa das Arrecuas?
REI DO BAILE
Hã? Como…? Isso.
Foi aí. É mesmo essa.
Pausa de alguns segundos.
REI DO BAILE (CONT’D)
Um dia ia a passar e vi o cartaz com a
festa cancelada. Não havia mais festas
em lado nenhum, muito menos o baile
com o arraial das barracas. Só havia
cartazes com os cancelamentos. Quando
havia; às vezes nem isso. E foi aí mesmo
que eu disse que tinha de acabar. Fui para
o Largo e atirei-me ao “Rapaz da Mota”.
Parecia um tolo. Sem luzes nem som.
Nem chapéu! Estava na música quando
alguém vem à janela e eu “Já vou levar no bucho”,
mas nada e comecei a ouvir o “Rapaz da Mota”
das janelas e das casas. Foi até uma coisa de
arrepiar quando vem um som mais gravado.
Era uma gravação que estava na REDE ou algo.
E estamos ali todos no “Rapaz da Mota” e
repetimos umas quantas vezes, até que
alguém corre para mim e me dá a máscara…
ENTREVISTADOR
A máscara que agora usa sempre?
REI DO BAILE
Sim. Esta que uso.
Tira a máscara de um bolso do casaco.
REI DO BAILE (CONT’D)
Foi daí que veio. Foi ter comigo como a
pandeireta e o chapéu de em miúdo! Há coisas!
ENTREVISTADOR
Deram-lhe a máscara e…?
REI DO BAILE
E eu sem saber nada!!!
Estava ali sem saber de mais nada…
Só pensava na música e nas pessoas a
cantar comigo. Então diz-me uma senhora,
– gritou mesmo – “olha que vêm aí!!”, foge!
E eu fugi! Máscara na cabeça e lá vou até ao
carro e depois aos ziguezagues para fora da
aldeia, por uns caminhos que mais eram
estradões! Fiquei parado umas horas
agarrado ao volante.
ENTREVISTADOR
Ninguém veio ter consigo?
REI DO BAILE
Se alguém veio atrás mim? Não!
Estava ali sentado – até me tinha
esquecido da máscara – e olho para
o retrovisor! Dei um salto que me ia
matando, de tanta força com que acertei
no tejadilho. Foi um daqueles momentos
como na igreja, certo rapaz? Estás a ver
quando sabes a coisa? Quando sabes o
que é mesmo? Aquilo que tem de ser?
Foi assim…
ENTREVISTADOR
Tornou-se o “Rei do Baile”?
REI DO BAILE
Não, mas decidi que ia fazer os bailes
todos onde me apetecesse e onde as
pessoas precisassem. Depois de uns anos
disto, então sim, o “Rei do Baile”! Eu cantava
e fazia com que todos cantassem – se
quisessem – e dançassem – se quisessem.
Não havia cá Lei que me fosse parar!
ENTREVISTADOR
Mas no início da nossa conversa
disse que não havia Lei do Baile…
REI DO BAILE
E não há! Isso não há, rapaz. Confia!
Mas as pessoas acham que há e ninguém
desmente. Onde vês tu que há? Só que eu,
primeiro também não sabia, só sabia que
não havia bailaricos nem arraiais. E se não
havia era porque não deixavam.
Interessa o resto?
ENTREVISTADOR
Aparentemente…
REI DO BAILE
Não interessa, homem!
Se uns não fazem porque
acham que não podem e se outros
não deixam porque acham que
ninguém deve, qual é a diferença?
Não há, não se faz. Nada!
Vais tu? Eu fui…!
ENTREVISTADOR
E continuou a ir? Aos sítios?
A cantar e a criar mais músicas?
REI DO BAILE
Sim. Ia onde me apetecia
e fazia as músicas que achava por
bem. A “Sopa de Calor”, por
exemplo, foi num Julho em que
ninguém aguentava e eu achei que era
preciso qualquer coisa para agitar!
Só um bocadinho, assim uma
mais à antiga, sabem rapazes?
ENTREVISTADOR
E a “Tem Verdinhos no Quintal”
ou a “Olhó Tractor”?
REI DO BAILE
Isso vem do mesmo. Mais ninguém
faz para o público, para as gentes.
Faltam coisas que nos animem a todos
e que as pessoas possam dizer
que sabem, quase como segredo.
Um segredo que não se conta mas
que todos conhecem. Sabem?
ENTREVISTADOR
E começou a gravar?
REI DO BAILE
Não, nem fui eu.
O primeiro foi um moço
– já nem sei onde – que gravou e me
disse que ia disponibilizar na REDE.
Eu nem disse nada, mas pronto, deixei-o ir.
Na vez seguinte pediam que cantasse
as músicas da vez anterior e sabiam
partes de cor. Algumas quase inteiras;
das músicas… Foi a partir daí que gravei eu.
Aprendi!
ENTREVISTADOR
E as pessoas voltaram a
cantar nas aldeias?
REI DO BAILE
Nas aldeias e nos outros lugares.
Rapazes há mais uma coisa que não
devem ter ideia: já não há aldeias…
Isso das aldeias é coisa antiga.
Agora há colónias. As terras
“deprimidas” são colonizadas e a
rapaziada não sabe nada dos
arraiais e dos bailaricos.
É isso a Lei do Baile.
A Lei do Baile quer esconder que
não há música e festa porque não há
gente que se conheça; não querem
que a gente saiba que há mais mundo!
Não querem que se saiba que
ninguém pode sair dali!
A Lei do Baile chama-se outra coisa:
Lei da Densificação Territorial –
é lá que vem que não pode haver
“organização de eventos para o
efeito de convívio entre povoações [colónias]”.
INFORMAÇÃO e mais nada.
Só podem ver o que a INFORMAÇÃO quer,
em casa e quietos.
ENTREVISTADOR
E está a conseguir mudar alguma coisa?
Se diz que nem as pessoas sabem que
não há Lei do Baile?!
REI DO BAILE
Alguma coisa? Não estou aqui?
Vocês não queriam falar comigo?
Gravar o que digo? As minhas palavras,
as minhas músicas, a minha história?
E agora todos vão saber… isto vai para a REDE,
certo rapaz?
ENTREVISTADOR
Sim.
REI DO BAILE
É assim que muda!
ENTREVISTADOR
Só uma dúvida: o que é
que estava a dar às pessoas? O que
é que lhes entregou, no vídeo do início?
E os tiros?
REI DO BAILE
Rapaz… eu dei às pessoas o que elas
precisavam; elas dão-me o que eu preciso.
Os tiros são parte da vida. Há sempre alguém
à espreita, com documentos. Alguém que pensa
que ter documentos permite que alguém vá
embora. Vá para casa ou para outro lado.
A Lei da Densificação não te deixa sair
de onde estás, de para onde foste levado…
ENTREVISTADOR
Os documentos de quem
pode circular?
REI DO BAILE
Sim, os documentos são o
novo ouro, rapaz. Não sabias disso?
Tu tens documentos, parece-me.
Nunca pensaste que os documentos dão jeito?
Nunca pensaste que há quem não tenha
documentos de circulação?
ENTREVISTADOR
…
REI DO BAILE
Pois, sabe-se muito pouco
não é rapazes?
ENTREVISTADOR
E o que ganha com fazer o que faz,
para lá de ajudar as pessoas a
sentirem-se “melhor”?
REI DO BAILE
Eu? Nada! Tenho acesso a coisas, tenho
acesso a tudo, mas não quero nada para
mim. O que tenho é para distribuir…
ENTREVISTADOR
… há uma percentagem
que fica consigo, certo?
REI DO BAILE
… Tenho de pagar a gota.
Tenho de mudar de casas,
de equipamento. Isto tem
custos rapaz!
ENTREVISTADOR
Há quem diga que é um dos
homens mais ricos dos Territórios…
REI DO BAILE
Pois! Olha, talvez seja, mas não vou
comer os documentos, pois não?
E não ia dar esta entrevista se
não quisesse mudar as coisas, não era?
PRODUTOR (O.S.)
Há quem diga. Eu digo…
digo que ao fazeres conhecer a
Lei da Densificação estás a aumentar
o valor dos documentos. Agora todos
vão querer sair. Agora sim, vai haver
policiamento. Agora tudo vai valer
menos: exceto os documentos!
REI DO BAILE
Quem está sempre a dizer essas coisas?
Essas perguntas aí escondidas?
Quem pensas que és, oh rapaz,
para me tratar por tu?
PRODUTOR (O.S.)
Há quem diga e eu digo que essa máscara,
que é do “Rei do Baile”, pertence ao original.
Ao original “Rei do Baile”. Não a ti…
Digo que o “Rei do Baile” original foi
encostado com uns balázios nas costas.
Que o “Rei do Baile” agora é a máscara.
Que o dinheiro agora é do “Rei do Baile”,
mas que ele é mais do que uma pessoa.
Agora – contigo – é várias pessoas: é um bando,
uma quadrilha, o que for. Não “roubas para dar
aos pobres”… roubas para ti e para os que
andam como tu e contigo!
REI DO BAILE
(dirigindo-se ao PRODUTOR)
Sim? E provas disso?
Falando diretamente para o ENTREVISTADOR.
REI DO BAILE (CONT’D)
Oh rapaz, então deixas que te
tirem a entrevista? Assim falas sozinho!
Ou pões ordem nisto e apagas o que
ele disse ou acabo com isto tudo
e com o moço ali atrás!!!
O ENTREVISTADOR aponta uma arma ao REI DO BAILE.
ENTREVISTADOR
A máscara…
REI DO BAILE
A máscara?
ENTREVISTADOR
A máscara…
O REI DO BAILE prepara-se para lhe entregar a máscara que se encontra no colo. Assim que a remove, fixa o ENTREVISTADOR. Ouvem-se três disparos. O REI DO BAILE desaparece do enquadramento.
O ENTREVISTADOR volta-se para o PRODUTOR, que continua sem estar visível. A sua voz está agitada; assustado e quase suplicante por uma orientação do PRODUTOR.
ENTREVISTADOR
E agora? E agora?
Ouvem-se mais disparos na sequência 1, 2, 1, 1.
Já não é visível o ENTREVISTADOR. O PRODUTOR parece procurar algo nos corpos caídos. Só se vê parte das costas e da cabeça do PRODUTOR. Coloca a máscara do REI DO BAILE – nunca permite que se lhe vejam as feições.
PRODUTOR
(fala com confiança)
Amigos! Estes rapazes são uma dor de cabeça!
Vocês conhecem-me e sabem, os que
sabem, que o meu Tio se chamava Licínio.
Não era Zé! E sabem que a primeira terra,
aquela primeirinha de todas, em que recebi
esta máscara, foi Vila Chã. Vocês sabem disso!
Estes rapazes, todos, é que sabem muito pouco,
imitem quem quiserem! Tenho as costas rijas!
Toca quatro vezes nas costas, em lenta sucessão.
PRODUTOR (CONT’D)
Não há menino que me chegue…
porque estou cá para vocês!
E vocês para mim…
Começa a cantar “Cansadoquestoy”, enquanto se levanta com calma, se dirige para a câmara e a desliga.
FIM