Produção short/age. © Todos os direitos Reservados.
Este autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

O Homem que Sumiu

um argumento de
Vicente Alves do Ó
trilha sonora de
Luís Antero
ilustrado por
Carolina Celas

Numa manhã igual a tantas outras, o esquecimento dum pequeno detalhe, faz com que todo o trajecto dum dia normal de trabalho se altere irremediavelmente.

1. INT. CASA DO SIMÃO – DIA
Um gato está dentro dum aquário vazio. Brinca com as pedras e os pequenos objectos marítimos que em tempos flutuaram nas águas que ali existiam. Peixes: nem vê-los. Ouve-se a voz de alguém, barafustando. Músicas de diferentes géneros tocam por breves instantes: trash metal, pop, clássica, independente. Esse alguém é SIMÃO, 24 anos, um rapaz moreno de cabelo espetado, que procura música no seu aparelho de hi-fi. O espaço envolvente parece um campo de batalha. Roupa espalhada por todos os lados. Objectos caídos. Livros, cartazes que pendem das paredes, cinzeiros cheios de beatas, uma tábua de passar a ferro, onde uma camisa branca está prestes a pegar fogo. Simão move-se pela casa, sem que possamos seguir por inteiro o seu corpo. Apenas nos é dada a percepção de mãos, pernas, braços e finalmente, na casa de banho, um rosto que penteia o cabelo. A sua imagem reflectida aparece-nos destroçada pela água que corre resultante do vapor do banho que Simão acabou de tomar. O rapaz percorre ainda a casa, come um pouco de pão, veste a camisa com um buraco nas costas, coloca o casaco e sai disparado de casa, deixando as luzes acesas, o gato no aquário e a música a tocar. A casa é uma mistura de mobiliário antigo e peças do IKEA, sem estilo ou grande decoração, mas onde sentimos o passado e o presente.

 

2. EXT. RUA DE VISEU – DIA
Simão sai da casa onde vive. Dirige-se para um carro que insiste, mas não consegue abrir. Uma MULHER aproxima-se.

 

MULHER
O que é que você está a fazer?

 

SIMÃO
Ora!

 

MULHER
Quer que chame a polícia?

 

SIMÃO
Homem, desampare-me a loja!
Já estou mais que atrasado!

 

MULHER
Ai é?
Então vá assaltar outro carro!

 

SIMÃO
(apercebe-se do erro)
Ups!…. Desculpa, não tinha reparado,
eu… enganei-me.

 

MULHER
Pois, pois, vá… saia!

 

Simão, constrangido com a situação, afasta-se, coça a cabeça, procura o seu carro. Não sabe onde o estacionou. A mulher arranca disparada e apita. Simão olha em volta. MARIANA, uma mulher de 50 anos, sai dum prédio e ao reparar que Simão está “perdido”, aproxima-se dele.

 

MARIANA
Bom dia, Simão.
Deixaste-o na rua detrás.

 

SIMÃO
Obrigado, Mariana!

 

MARIANA
Tal não foi a tosga
de ontem à noite!!! (ri)

 

Simão corre na direcção do carro.

 

3. EXT. CARRO DO SIMÃO – DIA
Simão entra no automóvel. Descobre que o seu carro foi roubado. Fios soltos dão sinal da ausência do auto-rádio.

 

SIMÃO
Só me faltava mais esta!

 

No lugar do morto, embalagens vazias de chocolate. Uma delas ainda tem uma metade dum Mars. Simão fica enraivecido, mas come o chocolate e põe o carro em funcionamento.

 

4. EXT. SÉ DE VISEU – DIA
Simão guia por uma rua da cidade. Vai cantarolando uma canção. Passa um sinal vermelho, fala ao telemóvel.

 

SIMÃO
… A gaja barrou a tanga de
chantilly e deu-me a lamber!
(ri) Claro que sim!
Achas? Boa, boa… um par de
mamas que faziam levitar qualquer..
(ri) Não sei, deve estar em casa.
Tenho que lhe telefonar mais logo.
Casar, eu? Só se fosse para
apanhar estas gajas nas despedidas
de solteiros! Ligo-te à noite para
irmos beber um copo. Ok. Abraços!

 

5. INT. TEATRO VIRIATO – DIA
Simão entra no teatro, olha o relógio e o chefe faz-lhe sinal com a cabeça em sinal de reprovação. A equipa do teatro está a montar um cenário grandioso para o novo espetáculo. Simão anda à procura da sua caixa de ferramentas. Um COLEGA aproxima-se.

 

COLEGA
A Marta passou por
aqui ontem à tarde.
(entrega-lhe um postal)

 

SIMÃO
O quê?

 

COLEGA
Parece que te esqueceste
dalguma coisa…
(e pisca-lhe o olho)

 

Simão esboça um sorriso a amarelo. Lê o postal. No verso está escrita a seguinte frase:
“ Amorzinho, não te esqueças que hoje é o meu ani… “
Estranhamente, a palavra não está completa, nem o postal assinado. Simão franze a sobrancelha.

 

6. EXT. TEATRO VIRIATO – DIA
Mais tarde. Simão bebe um café. Pega no telefone e marca o número. Uma VOZ de homem atende no outro lado.

 

VOZ
Sim…?

 

SIMÃO
(surpreendido)
Quem fala?

 

VOZ
Com quem deseja falar?

 

SIMÃO
Não é da casa da Marta?

 

VOZ
Não.

 

SIMÃO
Desculpe, foi engano.

 

Simão desliga o telefone. Fica surpreendido e interrogativo. Olha para o telefone. Faz redial e olha para o número que aparece no visor. Fica espantado.

 

SIMÃO
Não pode ser…
(espera que alguém atenda)

 

VOZ
Sim?

 

SIMÃO
Quem é você?!

 

VOZ
Como?

 

SIMÃO
Ou sai daí imediatamente,
ou chamo a polícia!

 

VOZ
Desculpe, mas deve haver algum engano.
Com quem deseja falar?

 

SIMÃO
Não fala do 21 678 45 93?

 

VOZ
Sim.

 

SIMÃO
Da casa do Simão Botelho?

 

VOZ
Sim. Porquê?

 

SIMÃO
EU sou o Simão Botelho!

 

VOZ
(ri) Engraçadinho. O Simão Botelho sou eu.
Com licença, tenho mais que fazer.
(e desliga)

 

7. EXT. CARRO EM MOVIMENTO. RUAS DE VISEU – DIA
Simão segue a toda a velocidade a caminho de casa. Ninguém atende a sua chamada. Simão liga para MARTA.

 

MARTA
Sim?

 

SIMÃO
Sou eu, Marta.

 

MARTA
Eu, quem?

 

SIMÃO
O Simão!

 

Marta desliga o telefone. Simão fica pendurado.

 

8. INT. CASA DO SIMÃO – DIA
Simão entra em casa. Despe o casaco. A marca do ferro gravada nas suas costas começa a desaparecer. O espaço está alterado por completo. O aquário tem peixes. Um cão rosna para ele. O gato desapareceu. A sala está impecavelmente arrumada. A roupa
dobrada em cima da cama. Flores e plantas pelo espaço. Na cozinha a máquina de lavar roupa está a trabalhar e a máquina de café ainda está quente. Simão entra no quarto e vê uma foto sua com Marta em cima da mesinha de cabeceira. Estão vestidos com roupa de ski.

 

SIMÃO
Que merda é esta?!

 

Simão dirige-se para fora do quarto e ao passar pelo espelho do armário, repara que a marca do ferro na camisa desapareceu. Assusta-se. Despe a camisa e joga-a para cima da cama. Pega numa t-shirt e sai do quarto a correr.

 

9. EXT. RUAS DE VISEU – DIA
Simão corre para o seu automóvel. Mariana dirige-se para a entrada do prédio onde vive com sacos de compras.

 

MARIANA
Isto hoje é um entra e sai!

 

SIMÃO
(confuso)
O quê?

 

MARIANA
Queres que vá passear
o cão esta tarde, ou não?

 

Simão, sem resposta, olha-a estupefacto, depois entra no automóvel e arranca.

 

10. INT. CARRO EM MOVIMENTO. PARQUE DA CIDADE – DIA
Simão guia a toda a velocidade e tenta falar ao telemóvel com Marta. Marta atende.

 

MARTA
O quê?

 

SIMÃO
Não desligues! Por favor!

 

MARTA
Porquê?

 

SIMÃO
Passa-se alguma coisa
comigo e não sei o que é!

 

MARTA
Não?!
Muito me admirava se soubesses!

 

SIMÃO
Está um homem a viver em
minha casa que diz que sou eu,
e…e….e o gato desapareceu
e eu nunca fiz ski!!!!

 

MARTA
E tu és um estúpido!
Nem te lembraste que
eu ontem fazia anos!

 

SIMÃO
Eu….eu… pá!
Só me deram o postal hoje!!!

 

MARTA
Chega!!! Chega, Simão Botelho!
Esquece! ESQUECE-ME!
Nunca mais te quero ver!

 

Marta desliga o telemóvel. Nesse instante Simão olha para o telemóvel e vê que a sua mão desapareceu. Simão dá um grito, trava a fundo, pára em cima do passeio.

 

11. EXT. RUA DE VISEU – DIA
Simão sai do carro. Olha para o espaço onde deveria estar a mão que desapareceu e repara que a outra também começa a desaparecer. Simão está em pânico. O telemóvel toca, mas Simão não o pode atender. Simão começa a correr pela rua.

 

12. EXT. PRAÇA. MUSEU N. GRÃO VASCO. ZONA HISTÓRICA – DIA
Simão corre. Continua em pânico. Os seus braços desapareceram. Uma miúda compra um gelado num vendedor de rua. Ambas ficam a olhar para ele. A miúda larga o gelado e corre na direcção oposta, gritando pela mãe.

 

13. EXT. CASA DA MARTA – DIA
Simão vê ao longe a casa de Marta. Um rés-do-chão num prédio castiço da zona histórica. Roupa estendida à janela numa corda. Simão espreita a casa, está escondido atrás duma esquina, olha em várias direções e quando não vê ninguém, começa a correr para a casa. Os seus pés começam a desaparecer. Simão chega à porta e usa a cabeça para bater. Aguarda. Marta abre a porta.

 

SIMÃO
Marta, não sei o que é que
se passa comigo! Olha para mim!!!!

 

MARTA
(altiva)
O que é que foi que eu te disse?

 

Simão vê o seu sósia na sala. O SIMÃO 2 tem um ramo de rosas na mão, uma caixa de bombons em forma de coração na outra e está muito bem vestido e penteado.

 

SIMÃO
Aquele… sou eu?!

 

MARTA
Não. Aquele é o que TU deverias ser!
Por isso, faz-me um favor: desaparece!

 

Marta fecha a porta e Simão desfaz-se no ar.

 

FIM