Novo Normal
um argumento de
Luís Campos
trilha sonora de
Bruno Pinto
ilustrado por
Susa Monteiro
No dia em que o gerente de uma centenária retrosaria se prepara para encerrar a loja de vez, eis que surge um telefonema com consequências inesperadas para o seu negócio e a sua vida.
Escutar com headphones
1. INT. RETROSARIA CENTENÁRIA, VISEU – DIA
Mãos alisam com precisão um tecido de linho.
O olho do GERENTE (72) enquanto tira medidas.
Uma tesoura desliza pelo tecido com um corte ao comprido.
O suave manusear de uma régua curva flexível; a delicadeza no tactear de uns botões.
CORTA PARA:
O GERENTE, junto à caixa registadora e com os óculos na ponta do nariz, apura os valores da encomenda.
Do lado oposto do balcão encontra-se o ENCENADOR (37), enquanto aguarda pelo total a pagamento.
A loja, antiga na estrutura, no aspecto, na madeira e nos vidros, encontra-se despida de adereços.
GERENTE
Apraz-me a alma ser um artista
da sua craveira o último dos
nossos clientes.
Aquela cordialidade que já não se encontra.
GERENTE (CONT’D)
Sabe que não é o sucumbir à era
digital que custa – e por mais
cruel e preocupante que a situação
seja -, mas sim a incapacidade de
preservar um bastião familiar de
resistência a mais de um século de
tiranias. — Veja bem quantas cabem
em 120 anos de história.
O GERENTE faz uma pequena pausa introspectiva.
GERENTE (CONT’D)
Para no final cair assim.
Redundante, antiquado, obsoleto,
quando nunca antes fomos
colectivamente assim tão selvagens.
O ENCENADOR expressa amargura pelo relato que lhe é feito.
GERENTE (CONT’D)
Enfim. Agora que vai deixar de
contar com as nossas gamas, que o
meu caro possa continuar a levar a
sua criatividade além-fronteiras é
tudo aquilo que mais desejo.
O GERENTE pega num lápis afiado e aponta um número numa folha de um bloco com capa em couro.
O ENCENADOR retira um maço de notas da carteira. Conta as notas e depois entrega-as ao GERENTE.
GERENTE (CONT’D)
Pedras que um dia fizeram castelos.
O GERENTE olha para as notas em silêncio.
GERENTE (CONT’D)
Pena que sirvam para tudo menos
para comprar valores.
O ENCENADOR está realmente triste. Pega num conjunto de rolos de tecido e encara o GERENTE uma última vez antes de se retirar.
ENCENADOR
Lamento. De verdade.
O GERENTE esforça-se para repor o ânimo.
GERENTE
Sei que sim, meu caro. Mas esta
porta fecha e amanhã o sol volta a
nascer. Tecidos há muitos.
ENCENADOR
Poucos como os seus.
O GERENTE agradece o elogio com um sorriso.
GERENTE
O mais importante dos tecidos é
aquele a que o senhor pertence.
No dia em que se descartar o seu
trabalho, aí sim, estaremos
condenados.
O ENCENADOR retribui o apreço com um sentido gesto. E retira-se da loja.
O GERENTE é deixado no vazio. Desliga a máquina registadora.
De forma lenta e mecânica, passa a mão pelo tampo do balcão uma última vez.
Lança um derradeiro olhar amargurado para o vazio do espaço, revivendo memórias de outrora.
Depois leva a mão ao interruptor e apaga a luz.
Ouve-se o som de um molho de chaves. Passos até à porta.
O escuro silêncio é interrompido pelo imponente tocar de um telefone. Som de passos que voltam até ao balcão.
Acende-se a luz, o telefone continua a tocar.
O GERENTE atende o telefone, confuso.
GERENTE
Retrosaria Centenária,
posso ajudar?
TELEFONISTA (O.S.)
Boa noite. Daqui fala o Presidente
do Conselho de Administração do
Centro Hospitalar.
O GERENTE estranha o propósito do telefonema.
GERENTE
Boa noite, caríssimo.
TELEFONISTA (O.S.)
Entro em contacto por desígnio do
governo. Estamos a solicitar a
colaboração das retrosarias da
região no contexto da pandemia que
aí vem.
O GERENTE está cada vez mais confuso.
GERENTE
Pandemia?
TELEFONISTA (O.S.)
Temos um fundo para criação de
máscaras de reserva para
operacionais de saúde.
GERENTE
Peço desculpa, o senhor apanhou-me
aqui no meio do encerramento
permanente de actividade.
TELEFONISTA (O.S.)
A urgência da situação requer
medidas excepcionais. O que precisa
da nossa parte para reverter esse
processo?
O GERENTE fica sem saber o que responder.
2. INT. RETROSARIA CENTENÁRIA, VISEU – DIA (DOIS MESES DEPOIS)
A retrosaria ganhou uma nova vida. Bancadas diversas voltaram a ocupar o espaço da loja. Vários FUNCIONÁRIOS, todos com máscara no rosto, movimentam-se pelo espaço em funções diversas.
Assiste-se a uma verdadeira engrenagem de produção. O GERENTE vai supervisionando, sem ter mãos a medir para tanto trabalho. Uma fila de pessoas aglomerada junto à porta da loja, atendidas à vez através de um postigo.
O GERENTE faz uma brevíssima pausa para desembaciar os óculos. Depois recolhe um conjunto de máscaras de uma das bancadas e aproxima-se do FUNCIONÁRIO que se encontra junto do postigo.
GERENTE
Saídas do forno.
O GERENTE espreita para o exterior. A fila à porta da sua loja é expressiva, mas em nada comparada com a muito mais extensa fila de pessoas precárias e sofridas alinhada na direcção de outra porta dali próxima.
GERENTE (CONT’D)
Multiplicam-se como larvas
no esterco.
O FUNCIONÁRIO que está junto de si olha para ele, não percebeu ao quê se dirigia o comentário.
O GERENTE, angustiado, acena na direcção da outra fila. O FUNCIONÁRIO agora entende. Faz ele próprio uma expressão de consentimento.
Depois o GERENTE pega num pequeno cofre que o FUNCIONÁRIO usa para fazer de caixa e retira de lá um volumoso maço de notas.
O GERENTE caminha até ao balcão da loja, contabilizando as notas que traz consigo.
Abre a caixa registadora, que está visivelmente abastada, e retira de lá mais um volumoso maço de notas. Dobra-as e coloca-as no bolso da sua camisa.
É notório que o negócio ganhou um novo fôlego. O GERENTE, embora não consiga disfarçar o entusiasmo com o progresso dos seus ganhos, está apreensivo.
Olha de novo para o exterior da loja. Não consegue ignorar a gigantesca fila que está formada no sentido da outra porta.
GERENTE (CONT’D)
Sôr Ramiro, entregue-me esse
próximo lote.
O RAMIRO (57) é um dos funcionários que está disposto pelo espaço de loja, compenetrado na confecção de máscaras de tecido.
RAMIRO
Está a sair, chefe.
O GERENTE aproxima-se dele, enquanto RAMIRO ultima a preparação dos elásticos de uma máscara. É visível a tatuagem de ex-presidiário junto do polegar de RAMIRO.
O GERENTE agarra numa pequena caixa.
RAMIRO (CONT’D)
Com esta faz duzentas.
RAMIRO coloca essa última máscara dentro da caixa. O GERENTE conforta-o com um gesto.
GERENTE
Abençoado indulto, meu caro.
RAMIRO agradece o apreço com um sorriso.
O GERENTE dirige-se com a caixa para o exterior da loja.
Caminha paralelamente à extensa fila que se avoluma nadirecção da outra porta.
O GERENTE chega a essa outra porta e constatamos que VOLUNTÁRIOS servem sopas que vão entregando à vez aos utentes da fila.
O GERENTE entrega a caixa a um dos VOLUNTÁRIOS.
GERENTE (CONT’D)
Usem-nas vocês próprios ou
distribuam-nas pelas pessoas…
Como acharem melhor.
Os VOLUNTÁRIOS agradecem o gesto.
O GERENTE está desorientado, não sabe muito bem lidar com o sofrimento expresso pelas pessoas que ali se concentram.
Quando vira o corpo para retomar caminho na direcção da sua loja…
…é surpreendido por encontrar o ENCENADOR na fila à espera que chegue a sua vez.
O GERENTE não quer acreditar naquilo que vê. Aproxima-se do ENCENADOR, que o recebe com uma expressão sofrida e envergonhada.
GERENTE (CONT’D)
Meu caro. Mas…
O GERENTE repara que ao lado do ENCENADOR estão 3 CRIANÇAS e 1 MULHER. Claramente a família dele.
GERENTE (CONT’D)
…Fazia-o longe daqui.
ENCENADOR
Fecharam as salas.
Apagaram as luzes.
O GERENTE engole em seco.
ENCENADOR (CONT’D)
Sem pedras nem castelos.
O GERENTE está visivelmente frustrado. O ENCENADOR aponta na direcção da retrosaria.
ENCENADOR (CONT’D)
Mas apraz-me o seu renascimento.
O GERENTE olha na direcção da sua loja. A linha de confecção e os mecanismos de transacção prosseguem de vento em popa.
Depois fixa o olhar no ENCENADOR. Observa-o em silêncio por uns instantes, não suporta vê-lo assim.
Até que decide retirar o maço de notas que tem no bolso. Oferece-o ao ENCENADOR sem pestanejar.
O ENCENADOR encara-o em silêncio. Não reage ao gesto. O GERENTE fica com a mão cheia de notas estendida no vazio.
ENCENADOR (CONT’D)
Obrigado, mas não posso aceitar.
GERENTE
Não seja idiota. Mesmo que não o
faça por si, aceite por eles.
O GERENTE refere-se à família do ENCENADOR, que hesita. Não sabe se deve agradecer ou sequer reagir ao gesto.
GERENTE (CONT’D)
As máscaras que eu crio permitem
chegar a um amanhã. Mas sem as
máscaras que o senhor cria, do que
nos vale lá chegar?
Os olhos humedecidos e emocionados do ENCENADOR sugerem que ele vai acabar por aceitar o dinheiro. Quando finalmente estica a mão para o receber…
…Eis que algumas pessoas da multidão se insurgem e atacam o GERENTE, apoderando-se do dinheiro. Como cães a um osso.
Os impotentes GERENTE e ENCENADOR, no olho do furacão, não conseguem contrariar tamanho injusto desfecho.
Sucumbem à lei dos mais fortes.
FIM