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Mare Nostrum

um argumento de
Tiago Matos
ilustrado por
Mariana Rio

Após um incidente de inesperada violência, quatro jovens fugitivas veem a amizade que as une posta à prova e em risco de assumir uma natureza mais sinistra.

FADE IN:

EXT. PRAIA – MAR – FIM DE TARDE
CLÁUDIA (20) flutua tranquilamente no mar, embalada pelas ondas. De olhos fechados e sorriso estampado no rosto, parece perfeitamente relaxada na sua solidão marítima.
As cores do céu denunciam o breve intervalo que separa o dia da noite. Cláudia examina-as, perdida nos seus pensamentos, enquanto desliza as mãos sobre a água.
Respira fundo. Uma e outra vez. Com a convicção de quem se encontra num paraíso só dela.
Mas não é bem assim.
Quando giramos sobre Cláudia, notamos ao longe, no areal da praia, TRÊS FIGURAS de pé. Os sons do mar abafam as suas vozes, mas os movimentos exagerados que exibem parecem indicar que discutem de forma acalorada.
Cláudia também repara nelas. Mas permanece despreocupada no seu banho privado.
Até que, por fim, lá se decide a sair da água.
Acompanhamo-la de perto.

 

EXT. PRAIA – BEIRA-MAR – CONTÍNUO
À medida que Cláudia se aproxima do areal, percebemos que as figuras são, na verdade, três raparigas mais ou menos com a mesma idade que ela: LUCY, PATRÍCIA e AMORIM.
Patrícia e Amorim TROCAM INSULTOS desgarrados. Parecem prestes a pegar-se à pancada.
Assim que coloca um pé sobre a areia molhada, Cláudia vê-se interpelada por uma queixosa e quase suplicante Amorim.
À exceção das quatro jovens, a praia encontra-se deserta.

 

AMORIM
Ó, Cláudia, tu vê lá mas
é se controlas a tua miúda que
ela ‘tá-se a passar!

 

PATRÍCIA
(para Amorim)
Não tinhas de o fazer!

 

AMORIM
(para Patrícia)
Não. Ficava à tua espera, se calhar.

 

PATRÍCIA
Não tinhas! Mas és sempre a
mesma desembestada de merda.
Não tens nada nessa cabeça.

 

AMORIM
(para Cláudia)
Foda-se, mas eu tenho mesmo
de ‘tar aqui a aturar estas cenas?

 

Cláudia solta uma pequena risada na direção da amiga e continua o seu caminho.
Ultrapassa-as num passo lento, com uma segurança corporal invejável, agindo como se discussões violentas como aquela fizessem parte da sua rotina.

 

PATRÍCIA
Põe-te a andar, então!
Também já estragaste o que
tinhas a estragar…

 

AMORIM
Miúda, se tu não me calas essa boca…

 

PATRÍCIA
Vais fazer o quê?
Hum? Vais fazer o quê?

 

Lucy, estrategicamente colocada entre elas, faz o seu melhor para apaziguar a situação. No entanto, ao ver Cláudia afastar-se, acena-lhe, nervosa.

 

LUCY
(para Cláudia)
…Uma ajudinha?

 

Cláudia nem chega a abrandar.
Solta uma nova gargalhada, mais para ela própria do que para as companheiras, enquanto se dirige até uma PILHA DE QUATRO MOCHILAS, atiradas ao acaso pelo chão numa zona diferente da praia.

 

EXT. PRAIA – JUNTO ÀS MOCHILAS – CONTÍNUO
Cláudia abre uma das mochilas. Retira do seu interior uma TOALHA e põe-se a secar o corpo e o cabelo.
Lucy apressa-se a ir ter com ela.

 

LUCY
Tens de fazer qualquer coisa.

 

Cláudia volta a vasculhar a mala, desta vez até encontrar um MAÇO DE CIGARROS e um ISQUEIRO.

 

CLÁUDIA
Está maravilhosa.

 

Lucy encara-a, confusa.

 

CLÁUDIA
A água. Maravilhosa.
Acho que nunca a apanhámos tão boa.

 

LUCY
Cláudia, elas vão-se pegar!

 

Cláudia acende o cigarro e prende-o entre os lábios.
Repousa a mão no ombro da amiga.

 

CLÁUDIA
Relaxa. Está tudo bem.

 

LUCY
Não estás a perceber.

 

CLÁUDIA
Elas entendem-se.

 

LUCY
Não. Isto vai correr mal…

 

Então…
Do outro lado, o volume da discussão entre Patrícia e Amorim SOBE DE TOM, captando-lhes a atenção.
Quando giramos para as encontrar, percebemos que as duas jovens se enlearam num atabalhoado CONFRONTO FÍSICO. Mais um emaranhado de cabelos do que uma batalha violenta.
Cláudia precipita-se para elas, ainda de cigarro na boca, com Lucy, ansiosa, no seu encalço.

 

CLÁUDIA
Eh! Então? Que é isso?

 

EXT. PRAIA – BEIRA-MAR – CONTÍNUO
Cláudia concentra-se em Patrícia. Lucy em Amorim.
Acabam por as conseguir afastar uma da outra.

 

CLÁUDIA
Mas está tudo maluco, é?
Vamos lá ter calma e
portar-nos como deve ser.
(para Lucy)
Ficas aqui com a Amorim
que eu e a Patrícia vamos
conversar um bocadinho
para aquele lado, OK?

 

Lucy acena, de braços envoltos sobre Amorim.
É com estas duas que permanecemos.

 

AMORIM
Larga-me, porra.

 

Amorim liberta-se bruscamente de Lucy.

 

LUCY
Amorim…

 

AMORIM
Achas q’eu vou fazer alguma coisa?
Foi ela que se atirou a mim.
Eu não fiz nada.

 

Toca no nariz. Só então percebe que está a SANGRAR.

 

AMORIM
Foda-se.

 

LUCY
Estás bem?

 

AMORIM
Eu ‘tou. Aquela gaja é que…
‘tá completamente passada
daquela cabeça!

 

LUCY
Queres que te vá buscar um lenço?

 

Amorim esfrega o nariz, esborratando no rosto o pouco sangue que lhe sai da narina.

 

AMORIM
Não.

 

LUCY
Então anda sentar-te aqui.
A Cláudia já está a falar com ela.

 

Lucy senta-se a uns passos de distância, sobre a areia, virada para o mar.
Amorim permanece imóvel.
Ajeita a roupa, amassada pela inesperada luta.
Olha na direção de Cláudia e Patrícia, que se estabeleceram perto da pilha de mochilas. Parece PREOCUPADA.
Aos poucos, com a respiração mais controlada e a adrenalina a esvair-se, decide enfim juntar-se a Lucy.
Ficam as duas a observar o mar, de caras fechadas.

 

LUCY
Isto é mesmo bonito.

 

AMORIM
(pouco convencida)
Sim.

 

LUCY
Como é que foi tudo por água abaixo?
Tão depressa?

 

Amorim encara-a, subitamente sensibilizada, como se acabasse de ser alvo de uma cruel acusação.

 

AMORIM
Lucy… Eu não fiz de propósito!

 

LUCY
Hum?

 

AMORIM
Sabes q’eu não fiz de propósito.
Não sabes?

 

LUCY
Amorim…

 

AMORIM
O gajo tinha uma arma!

 

LUCY
O gajo tinha um canivete. Minúsculo.

 

AMORIM
E então? Era suposto eu saber isso?
Vi-o a sacar d’uma cena.
Sabia lá o que era.

 

Silêncio.

 

AMORIM
E s’ele tivesse tentado
alguma coisa?
Ficava só ali a ver?

 

LUCY
Nós tínhamos a situação controlada.

 

AMORIM
Sei lá eu se tinham.

 

LUCY
Não somos assassinas, Amorim.

 

AMORIM
Eu sei.

 

Silêncio desconfortável.

 

AMORIM
Mas, também, agora já não
há nada a fazer. Ou há?
O q’é que querem q’eu diga?
Não há volta a dar.

 

LUCY
Eu sei.

 

AMORIM
Achas q’alguém o vai descobrir?

 

Lucy encolhe os ombros, sempre de olhos postos nas ondas.

 

AMORIM
Porra, nem fui eu que tive
a ideia de nos pormos pr’aqui
a roubar estes espanhóis todos…

 

LUCY
Tu concordaste. Concordámos todas.

 

AMORIM
‘Tá bem, mas a ideia
não foi minha.
(pausa)
Tínhamos de arranjar
dinheiro d’alguma forma, né?

 

Amorim leva a mão ao nariz e percebe que está outra vez a deitar sangue.

 

AMORIM
Porra.

 

LUCY
Espera.
Vou buscar-te um lenço.

 

Lucy levanta-se e caminha em direção à pilha de mochilas.Acompanhamo-la, deixando para trás Amorim.

 

EXT. PRAIA – JUNTO ÀS MOCHILAS – CONTÍNUO
Antes de chegar ao seu destino, Lucy passa por Cláudia e Patrícia. As duas conversam de frente uma para a outra, ajoelhadas na areia. Patrícia está a chorar.
É com elas que ficamos.

 

PATRÍCIA
É que… não era isto que
eu imaginava, Cláudia.
Não era suposto ser assim.

 

CLÁUDIA
Estás só nervosa.
Foi um dia agitado.
Quando descansares um bocado,
vais ver que…

 

PATRÍCIA
(interrompendo)
Ela matou-o.

 

Cláudia não responde.

 

PATRÍCIA
Matou-o, Cláudia.
Matámos uma pessoa.
Não percebes isso?

 

CLÁUDIA
Foi um acidente.

 

PATRÍCIA
Mas era inevitável! Não era?
Temo-nos posto a jeito.

 

Silêncio.

 

PATRÍCIA
Cláudia, o que fazemos
não é normal.
Nada disto é normal.
Foi para isso que viemos para aqui?
Para andar a assaltar gente?

 

CLÁUDIA
Já falámos disto.
Sabíamos que os primeiros
tempos haviam de ser mais
complicados. Mas somos uma família.
E uma família…

 

Cláudia interrompe-se quando repara em Lucy a passar outra vez perto delas, já com os lenços de papel nas mãos.

 

CLÁUDIA
(para Lucy)
O que aconteceu?

 

LUCY
Nada.

 

CLÁUDIA
(para Lucy)
Como é que ela está?

 

LUCY
Mais calma.

 

CLÁUDIA
(para Lucy)
OK. Boa. Já vamos ter convosco.

 

Lucy segue o seu caminho.

 

CLÁUDIA
(novamente para Patrícia)
O que estamos a fazer
aqui é importante,
Patrícia. Tu sabes isso.
Tu compreendes.
É maior do que tu e eu e
aquelas duas miúdas ali em baixo.
É uma revolução.

 

PATRÍCIA
As coisas mudaram.

 

CLÁUDIA
Nada mudou.

 

PATRÍCIA
Mudou, sim. E eu não…
Eu já nem sei bem
porque é que estamos aqui.
(temerosa)
Porque é que não
voltamos para casa?
E tentamos refazer as coisas?

 

Cláudia recebe esta sugestão com uma expressão incomodada, quase opressiva. Mas mantém a serenidade na voz.

 

CLÁUDIA
Patrícia, vais fazer o seguinte:
vais parar um bocadinho, respirar
fundo e olhar à tua volta.
Mas olhar a sério,
com olhos de ver.

 

Pouco convencida, Patrícia obedece.

 

CLÁUDIA
Estamos no paraíso, miúda.
Isto é o paraíso.
O que sempre quisemos.
Não é? Em que outro lugar teríamos
este mar, este céu, esta liberdade
tão… plena? Não foi isso que
sonhámos durante tanto tempo?
Ou será que já te esqueceste
de como andavas no início do ano?
Vazia. Deprimida. Sem perspetivas.
Dia após dia atrelada às vontades
de gente que nem seria capaz de
te mijar para cima se estivesses
a arder. Já não te lembras, é?

 

Cláudia aponta com a cabeça na direção de Amorim, que, ao longe, as vai espreitando ocasionalmente pelo canto do olho.

 

CLÁUDIA
Aquela miúda com quem te
puseste a gritar há bocado,
a que não para de olhar para
nós com medo do que tenhamos
para lhe dizer a seguir…
Lembras-te de onde vivia?
E do que o padrasto lhe fazia?
Achas mesmo que ela quer voltar?
Achas que pode voltar?
A casa dela agora é
aqui. Connosco.

 

PATRÍCIA
Ela matou-o, Cláudia.
O homem está morto.
Isso não vai desaparecer.
E tu… nem te importas.
(pausa)
Não te sentes… culpada?

 

Cláudia adota um tom condescendente. É uma alma velha a explicar a uma jovem ingénua como o mundo realmente funciona.

 

CLÁUDIA
Eles não são como nós.

 

PATRÍCIA
…O quê?

 

CLÁUDIA
Homens que andam pelas ruas,
à noite, à procura de meninas
mais novas para foder.
Não são como nós.
São parte do problema.

 

PATRÍCIA
Nós não sabemos se…

 

CLÁUDIA
(interrompendo)
Mas sabemos, sim. Sabemos.
Estamos fartas de saber.
Estes homens são quem fazem
do mundo a merda que é.
Isso está provado. Por isso, não,
não temos nada que nos sentir
culpadas pelo que lhes acontece.
Porque haveríamos? Para mim,
tudo o que fizemos esta noite
foi limpar este lugar de mais
um potencial manipulador.
Um violador. Um assassino.
Somos as más da fita por ripostar
contra isto? Por nos protegermos?
As extremistas? Não, Patrícia.
Eles, todos eles, são o problema.
Nós somos a solução.

 

Patrícia olha para a amiga como se a estivesse a ver pela primeira vez.
Depois, abana a cabeça, cada vez mais nervosa.

 

PATRÍCIA
Não. Eu não… Não era isto que
queríamos. Nunca foi assim. Eu…

 

CLÁUDIA
(severa)
Tu prometeste.
As quatro contra o mundo.
Lembras-te?

 

PATRÍCIA
Mas nunca achei que…
Não consigo ser como tu.
Nem é de agora. Tenho pensado
e… Tenho de…

 

CLÁUDIA
Tens de…?

 

PATRÍCIA
…voltar.

 

Cláudia enfrenta-a com o olhar. Uma expressão fulminante no rosto. Uma ameaçadora desilusão.

 

CLÁUDIA
Sabes, há pessoas que passam
vidas inteiras a sonhar com
o que poderia ser. Frustradas
e insatisfeitas e feridas por
uma lâmina qualquer que não
são capazes de ver. O mais
engraçado é que se, por
acaso, um dia alguém as ajuda
a remover a lâmina, são capazes
de estranhar. Tiveram-na
trespassada tanto tempo que já
não se conseguem habituar a
estar sem ela. Tornaram-se
viciadas no sofrimento.
Convenceram-se de que a dor faz
parte da vida. Sem ela, o que
lhes resta? Percebes o que estou
a dizer, não percebes?
(pausa)
E, ainda assim, tens mesmo a
certeza que nos queres deixar?

 

PATRÍCIA
Eu…

 

CLÁUDIA
Sim ou não?

 

PATRÍCIA
Eu não vos quero
deixar, é só que…

 

CLÁUDIA
(mais severa)
Sim ou não?

 

PATRÍCIA
…Sim.

 

Cláudia brinda-a com um sorriso inesperado, artificial.

 

CLÁUDIA
Está bem.

 

PATRÍCIA
Hum?

 

CLÁUDIA
Se queres voltar para casa,
é claro que és livre de o fazer.

 

PATRÍCIA
…A sério?

 

CLÁUDIA
Aqui somos todas livres, Patrícia.
Tu sabes isso. O que menos queremos
é ver-te contrariada ou infeliz.

 

Cláudia levanta-se e estende-lhe a mão para a ajudar a levantar-se também.

 

PATRÍCIA
Eu não estou a dizer que…

 

CLÁUDIA
(interrompendo)
Eu percebi. Não te preocupes.

 

Aproveita o contacto para a puxar para mais perto.

 

CLÁUDIA
Mas preciso de uma
coisa antes de ires.

 

Patrícia encara-a, receosa.

 

CLÁUDIA
Preciso que entendas que deixaremos
de ser responsáveis por ti.

 

PATRÍCIA
O que…
O que é que isso quer dizer?

 

CLÁUDIA
Este mundo pode ser muito
solitário quando não fazemos
parte de uma comunidade.
Preciso que entendas isso.
E que o aceites.
Aceitas que passarás a ser a única
responsável pela tua vida
a partir de agora?

 

Patrícia demora a responder.
Mas lá acaba por acenar nervosamente com a cabeça.
Um grande sorriso invade a cara de Cláudia.

 

CLÁUDIA
Então está decidido.

 

Aponta para uma das mochilas no chão.

 

CLÁUDIA
É esta a tua, não é?

 

Cláudia entrega-lha. Depois, dá-lhe um abraço. E um beijo no rosto.

 

CLÁUDIA
Temos muita pena de te ver partir.
És mais do que uma amiga.
És uma aliada.
Desejamos-te muita sorte.

 

PATRÍCIA
Eu… tenho de me despedir delas.

 

CLÁUDIA
Delas? Não, não. Noutra altura.
Esta noite está tudo muito nervoso.
É melhor não lhes provocarmos
mais… ansiedade. Não achas?

 

PATRÍCIA
Mas eu…

 

CLÁUDIA
(interrompendo)
Eu explico o que aconteceu.
Não te preocupes.

 

Patrícia apercebe-se, enfim, que não está verdadeiramente a sair pelo próprio pé. Está a ser expulsa.
De mochila ao ombro, encaminha-se, relutante, para fora da praia, sem nunca deixar de ir olhando para trás, na direção das restantes companheiras à beira-mar.
Cláudia faz-lhe adeus com a mão. Depois, aparentemente esquecida do que acabou de acontecer, deixa-se ficar por uns segundos a admirar, deslumbrada, as cores do céu.
A seguir, encaminha-se na direção de Lucy e Amorim.

 

EXT. PRAIA – BEIRA-MAR – CONTÍNUO
Lucy e Amorim erguem-se de imediato perante a chegada de Cláudia. Pressentem que algo se passou.

 

CLÁUDIA
Meninas, tudo para a água.
Vamos aproveitar esta noite incrível!

 

AMORIM
O que aconteceu?

 

LUCY
A Patrícia?

 

CLÁUDIA
Foi dar uma volta.

 

AMORIM
Uma volta?

 

LUCY
Sozinha?

 

AMORIM
Cláudia, eu não queria…
Foi ela que… E ele tinha…

 

CLÁUDIA
(para Amorim)
Eu sei, eu sei, não te
preocupes mais com isso.
Está tudo bem.

 

LUCY
Ela não devia andar
sozinha a esta hora.
Eu vou com ela.
Para onde é que ela foi?

 

Cláudia interrompe-lhe os movimentos.

 

CLÁUDIA
Não te preocupes. Ela já volta.

 

LUCY
Ela já…? Quando?

 

CLÁUDIA
Quando quiser, ora. Deixa-a estar
sossegada. Não sejas tão colas.

 

LUCY
Mas ela… Ela…

 

CLÁUDIA
O quê?

 

LUCY
Eu acho que ela nos quer deixar.

 

Amorim fica alarmada.

 

AMORIM
Deixar? Tipo… deixar?

 

LUCY
Ela tem dito umas coisas…

 

AMORIM
Cláudia, ela não pode ir embora.

 

CLÁUDIA
Ela não nos vai deixar.

 

LUCY
Não estás a perceber…

 

AMORIM (CONT’D)
Ela sabe.

 

CLÁUDIA
Ainda não foram à água,
pois não? Venham comigo.
Precisam de relaxar um bocado.

 

LUCY
Cláudia! A Patrícia deixou-nos,
não é hora para mergulhos.
Eu vou falar com ela.
Para onde é que ela foi?

 

Cláudia envolve Lucy com os braços, impedindo-a fisicamente de sair, e olha-a nos olhos.

 

CLÁUDIA
(para Lucy)
Conhecem a parábola das ondas?

 

LUCY
Hum?

 

CLÁUDIA
Dizem os orientais que há
dois tipos de pessoas no mundo:
as que aprendem a navegar as
ondas e as que são esmagadas
por elas. As primeiras vão
inevitavelmente procurar ondas
cada vez maiores, que lhes permitam
novas experiências e aventuras.
Mas, para as segundas, as ondas são
um grande problema e o ideal é que
o mar se mantenha calmo sempre
que possível.
(pausa)
O que eu quero saber é:
que tipo de pessoas são vocês?

 

Lucy e Amorim entreolham-se, ligeiramente assustadas.
Cláudia mantém o controlo físico sobre Lucy.

 

AMORIM
(temerosa)
As que navegam as ondas?

 

CLÁUDIA
Errado. Nós somos as ondas.
E podem crer que vamos fazer
o que tiver de ser feito
para impedir que nos continuem
a usar ou a reprimir.
Estamos entendidas?

 

Amorim acena, muito séria.
Lucy também acena, nervosa. Cláudia solta-a.

 

CLÁUDIA
Muito bem.
Então, já que estamos todas
de acordo, vamos lá tirar
essas roupas sujas e aproveitar
esta noite fantástica!

 

Cláudia avança para a água.
Amorim sorri, finalmente descansada ao perceber que nada lhe vai acontecer, e apressa-se a obedecer e a seguir a amiga.
Lucy também se vai colocando em fato de banho, mas mais lentamente, com uma expressão preocupada no rosto.
Olha para trás, para a zona das mochilas, por onde Patrícia terá saído. Pensa nas suas opções.
Eventualmente, lá se junta às companheiras na água.

 

EXT. PRAIA – MAR – CONTÍNUO
Envolvidas pelas águas deste paraíso privado, as três amigas flutuam, lado a lado.
Cláudia lança a Lucy um sorriso de aprovação.

 

CLÁUDIA
Olhem-me bem para isto, meninas.
Não é incrível? O mar é nosso!

 

Mas Lucy tem gravado no rosto o terror de que, na sua liberdade, o mar lhe encerra uma prisão muito particular.
FADE OUT.

 

FIM

TIAGO MATOS

Tiago Matos nasceu em 1986, é natural de Almada e descreve-se como um apaixonado por filmes, livros e histórias no geral. Formado em Marketing, trabalha há vários anos como editor, redator e revisor, tendo desenvolvido revistas, blogues e outras publicações, várias das quais premiadas, para clientes como FNAC, CUF ou Zurich. O seu primeiro guião, uma longa-metragem de terror psicológico intitulada “Trauma”, foi o vencedor do Prémio MotelX Guiões 2023. No mesmo ano, com o conto “A Estranha Criatura que Invadiu a Casa do Sr. Xavier”, foi distinguido com o Prémio Maria Rosa Colaço na modalidade de Literatura Infantil.

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