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Luz Azul

um argumento de
Eduardo Brito
trilha sonora de
Leonardo Outeiro
ilustrado por
L Filipe dos Santos

Nem sempre o tempo presente é agora.

1. EXT. BARRAGEM – DIA
Uma barragem num dia de nevoeiro, semelhante a um controlo de fronteira ou a uma casamata numa zona militar.
O ruído do ambiente, mínimo e suave, é quebrado pelo som de passos em crescendo.
Ao longe, atrás dos passos, o barulho de um carro que chega e logo pára.
No intervalo entre o desligar do motor e o barulho seguinte, o ruído dos passos mantem-se firme.
Depois, ouve-se uma porta do carro a abrir e a bater, seguido do som de uma segunda passada num compasso distinto da primeira, em crescendo também.
Do nevoeiro sai um HOMEM de gabardine (45).
Caminha, preocupado.
Seguimo-lo.
Olha para trás.
Os passos que o perseguem aceleram.
O HOMEM percebe e acelera o caminhar, nervoso.
Planos da natureza do lugar alinham-se: a pedra, a água, a árvore, o céu, sempre sob o ruído dos passos que seguem e dos que são seguidos.
O HOMEM olha para trás, tenso e assustado.
Entra num carro e arranca.
Os passos perseguidores páram.

 

2. INT. SALA GABINETE PSICOTERAPIA – DIA
(Dia preferencialmente cinzento.)
A sala é um gabinete de psicoterapia.
A decoração é minimal: duas chaises ladeiam uma janela.
Entre as chaises, uma mesa de apoio de desenho simples, com pernas em fuso.
Junto à porta, uma secretária com um laptop desligado, um copo com água e um livro pousado intitulado LUZ AZUL.
Um relógio de parede circular.
Um cabide com uma gabardine e um casaco.
Uma taça de folhas de rosa cheia de pó.
Uma fotografia de uma mulher de costas na parede.
Uma janela que pela vista dá a enteder que o gabinete se situa num dos andares cimeiros de um prédio.
O HOMEM está sentado num cadeirão.
Olha em frente para a TERAPEUTA (40), sentada, com um bloco de notas e uma caneta.
(O HOMEM acabou de lhe explicar a cena anterior)

 

HOMEM
… E a seguir dou por mim aqui, a
contar-lhe exactamente isto.

 

A Terapeuta não estranha a resposta, nem mostra qualquer sinal de espanto.

 

TERAPEUTA
E o que acontece depois?

 

HOMEM
Você pergunta-me o que
acontece depois.

 

TERAPEUTA
E tem alguma explicação para isto?

 

O HOMEM sorri muito levemente, como se esperasse este desfecho.

 

3. INT./EXT. CARRO, DIA [BARRAGEM+ESTRADA+VISEU]
Pela janela do carro do HOMEM, vemos uma sucessão de planos subjectivos de continuidade: o HOMEM conduz na estrada da barragem, numa auto-estrada, até ao centro da cidade de Viseu.
Estaciona o carro em frente ao Edifício da Caixa (Arq. Luís Amoroso Lopes 1979-83) e entra.

 

4. INT. EDIFÍCIO DA CAIXA
O HOMEM sobre o elevador.
Atravessa o corredor até à porta fechada da sala-gabinete.

 

5. INT. SALA GABINETE PSICOTERAPIA – DIA 5
Uma mosca zumbe no vidro.
A terapeuta levanta-se calmamente, abre a janela, a mosca sai. Fecha a janela e senta-se.
A sessão continua, silenciosa.
A Terapeuta está pensativa. Detém-se um instante, procura as palavras certas.

 

TERAPEUTA
Sabe que a reversão das imagens nos
sonhos é mais antiga do que a
linguagem…

 

HOMEM
Reversão?

 

TERAPEUTA
Sim, o caçador caçado, a vítima que
se volta para o assassino, por aí
fora, estas ideias apareceram-nos
pela primeira vez em sonhos… E os
sonhos são lugares da desordem, dos
efeitos sem causas.

 

O HOMEM fica pensativo, não responde logo.

 

HOMEM
Para compreender o que vemos há que
considerar o que não vemos… é isso?

 

TERAPEUTA
Talvez. Há quem diga que os sonhos
são a única altura em que a nossa
percepção do tempo se aproxima da
sua não linearidade.

 

O HOMEM está introspectivo.
A Terapeuta não estranha, nem muda de expresão. Olha discretamente para o relógio.

 

TERAPEUTA
Por falar em tempo,
continuamos para a semana?

 

O HOMEM acena afirmativamente, levanta-se e veste a gabardine.
Avista o exemplar do livro LUZ AZUL, com um marcador a meio.
O HOMEM pega no livro. Detém-se um longo instante.
Observa-o.
A TERAPEUTA olha-o fixamente.

 

HOMEM
Está a ler isto?

 

TERAPEUTA
Sim, conhece?

 

HOMEM
(tímido, como que
envergonhado)
Sim, estou a lê-lo também.

 

A terapeuta sorri, indiferente.
O HOMEM estende-lhe o livro.

 

6. INT. EDIFÍCIO DA CAIXA
O HOMEM desce o elevador.
Atravessa o hall até à porta de saída do Edifício Caixa.
Entra no carro e arranca.

 

7. INT./EXT. CARRO, DIA [BARRAGEM+ESTRADA+VISEU]
Pela janela do carro do HOMEM, vemos uma sucessão de planos subjectivos de continuidade: do centro da cidade de Viseu até uma auto-estrada e de novo até à barragem.

 

8. INT. SALA GABINETE PSICOTERAPIA – DIA
A Terapeuta olha pela janela.
Tem o livro na mão.
Uma mosca bate no vidro do lado de fora.
A Terapeuta não se assusta com o barulho, como se a esperasse.

 

9. EXT. BARRAGEM, DIA
Plano idêntico ao primeiro.
O carro pára na barragem coberta de nevoeiro.
O Homem sai, bate a porta do carro.
Mais longe, ouve-se a passada correspondente à do homem que caminha na CENA 1, invertendo-se a lógica de proximidade.
O Homem caminha.
Ouve-se a sua passada, sobrepondo-se à que é audível mais ao longe.
O Homem acelera o passo, quase corre, desaparece no nevoeiro.

 

FIM