França
um argumento de
Luís Costa
trilha sonora de
Leonardo Outeiro
ilustrado por
L Filipe dos Santos
Numa vila do interior, um adolescente rebelde vai aterrorizando a população. Revoltado, Carlos tenta fazer justiça ao ensinar-lhe uma lição.
Escutar com headphones
EXT. VILA – NOITE
Desde o topo de uma encosta, uma plano geral de uma pequena vila no interior. Não há ninguém na rua. As gotas da chuva dançam em queda livre por entre a escuridão, criando poças apenas visíveis sob o amarelo adoentado dos candeeiros. Ao longe, uma barragem cujo som grave e contínuo ecoa pela paisagem. Algumas casas rasas e dispersas. As luzes dos seus interiores são como pequenas lareiras. Um zoom in lento revela um café nos limites da vila. Três carros estacionados à porta, junto a uma paragem de autocarros velha e vandalizada. A chaminé vai libertando um fumo escuro e denso.
Um cão abriga-se, aninhado na entrada. Escutam-se VOZES vindas do interior do estabelecimento.
INT. CAFÉ DA VILA – NOITE
Ao centro do balcão do café está sentado um AGENTE (67) da GNR, com o olhar fixo e grave na parede em frente. É um homem forte, cuja presença carrega um peso silencioso. As suas olheiras revelam um cansaço prolongado. Bebe uma aguardente em pequenos tragos. À sua direita, dois COMERCIANTES ocupam o final do balcão, cada um com a sua cerveja. Estão atentos ao agente, como se esperassem as suas primeiras palavras. A quietude é interrompida pelo som da GARRAFA quase vazia que SERAFIM (59), dono do estabelecimento, despeja no copo do agente.
SERAFIM
Esta é minha.
O agente olha-o em sinal de agradecimento. Serafim dá a garrafa ao seu filho, DAVID (33), que vai limpando a loiça.
Encosta-se em pé, em frente ao agente. Os comerciantes olham-no atentos, mas ainda assim são surpreendidos pela sua explosão.
AGENTE
Foda-se, pá!
As vozes que preenchem o café silenciam-se, dando lugar ao som da televisão, à qual um velho ALCOÓLICO assiste sozinho.
Os três JOVENS que jogam bilhar interrompem a partida, fingindo ponderar a próxima jogada. Os quatro VELHOS que jogam à sueca aproveitam para baralhar as cartas e fazer um balanço do encontro. CARLOS (44), homem de estatura média, algo musculado e magro, está sentado à lareira. Levanta os seus olhos pela primeira vez. Todos os presentes parecem esperar as palavras do agente, como se já soubessem do que se trata.
AGENTE (CONT’D)
Outra vez…
SERAFIM
Mas o que é que ele fez desta vez?
AGENTE
(interrompendo)
Surreal! É impossível! Não é que
ontem à noite pegou num taxi e
andou a parar de café em café aqui
nas vilas ao lado, a assaltá-las
uma a uma?
SERAFIM
Mas como assim?
A assaltar como?
AGENTE
Entrava, abria a máquina de tabaco
lá com uma chave qualquer, e levava
os maços e as moedas que conseguia.
SERAFIM
E ninguém fez nada?
AGENTE
Disseram-me que veio de
“borboleta” na mão. Ninguém
se queria chegar perto.
SERAFIM
Havia de ser aqui…
DAVID
Era igual! Ou achas o quê…
SERAFIM
(indignado)
Era igual??
Um dos comerciantes interrompe a breve discussão, apenas atento à narração do agente.
COMERCIANTE 1
Mas e então o taxista?
AGENTE
O taxista agradeceu!
COMERCIANTE 2
Não o roubou?
AGENTE
Qual roubar, qual quê.
Quanto muito devia vir passar uns dias
à esquadra por ter sido cúmplice.
Sempre que parava, o miúdo pagava-lhe
a parte dele. 120 euros! Em moedas!
Imaginem o que eles não andaram!
Todos os presentes parecem unir-se num suspiro indignado.
COMERCIANTE 1
Então vá lá e prenda o gajo!
AGENTE
Pois, mas pelo quê?
Por fazer o trabalho dele?
VELHO 1
(gesticulando com o
baralho na mão)
O moço, caralho!
AGENTE
Não posso! Enquanto não fizer 16…
Já foi à correção, já voltou,
e é sempre o mesmo.
VELHO 2
(rindo-se com desprezo)
16? Estão a brincar comigo.
Então com quantos é que está?
AGENTE
14 ou assim…
JOVEM 1
(tímido)
15…
O Velho 2 parece olhar o jovem ainda com mais desprezo.
VELHO 2
E vocês nada??
Bela mocidade que para aqui vai.
Na vossa idade…
VELHO 1
(distribuindo finalmente as cartas)
Era de enxada.
O agente bebe a aguardente de uma vez, obrigando Serafim a abrir uma nova garrafa. Carlos olha a lareira com uma expressão séria e nervosa.
VELHO 3
Mas afinal ele chama-se
mesmo França?
AGENTE
Não… veio de lá
com o pai e ficou…
VELHO 3
E a mãe?
AGENTE
Não há mãe.
VELHO 1
Gostava de ver o que vai naquela casa.
AGENTE
Era quem lhe acertasse o passo,
a ver se aprendia…
Carlos parece contrair-se no lugar.
DAVID
Quando ele se virar aqui para a vila é que eu quero ver.
AGENTE
Então e não se virou já?
Ainda há dias o Carlos o apanhou
lá a espreitar a oficina,
não foi oh Carlos?
Ainda que em silêncio, entende-se a confirmação de Carlos.
SERAFIM
(acenando com a cabeça na
direção do jovem mais novo)
E acho que se andou a meter
ali com o moço.
AGENTE
Contigo? Que te fez?
O Jovem, ainda sentado à espera do seu jogo, retrai-se com timidez.
VELHO 2
(insistindo)
Que te fez, caralho?
JOVEM 2
Foram só umas moedas…
O agente vira-se na cadeira, como que a discursar para os presentes.
AGENTE
Ai, só umas moedas… Sabem onde
é que eu vou amanhã? À escola!
À porta da escola a ver se ele se
atreve a aparecer. E porquê?
Os olhares silenciosos suspendem-se na sua figura.
AGENTE (CONT’D)
Disse que esfaqueava a Leninha!
VELHO 1
A menina do Alexandre?
Ai c’um caralho…
Carlos levanta a cabeça na direção do agente. O olhar parece transformado, como se a ameaça fosse dirigida à sua própria família. No desconforto geral do café, um jovem parece restabelecer a ordem natural das coisas com o som de uma TACADA.
EXT. RUA DA CASA DE CARLOS – NOITE
Carlos caminha com as mãos nos bolsos do casaco. Avança, olhar pensativo. Tem os pés encharcados. Ao longe, as luzes e o som grave da BARRAGEM. Olha para trás, inseguro.
INT. CORREDOR, CASA DE CARLOS – NOITE
Carlos abre a porta do quarto do filho com cuidado. Olha-o com carinho e preocupação. Fecha a porta.
INT. SALA, CASA DE CARLOS – NOITE
Sente-se a luz intermitente da televisão muda. No sofá, Carlos não consegue adormecer. Fita o teto. Ouve-se a TEMPESTADE no exterior.
INT. OFICINA – MANHÃ
Carlos está deitado numa prancha, a trabalhar debaixo de um carro. Pouco depois, baixa as ferramentas e fecha os olhos.
Sente-se uma inquietação. Uma gota de óleo cai-lhe no nariz e escorrega-lhe pela face, despertando-o.
CARLOS
(deslizando para fora do carro)
Luís! Chega-me aí um pano!
O trabalhador atira-lhe um pano. Carlos limpa-se lentamente e levanta-se. Os olhos cansados revelam a noite mal passada.
EXT. ENTRADA DA ESCOLA – FIM DE TARDE
Estacionado perto da escola, Carlos espera que o seu filho saia. Do lugar onde está consegue ver a extensão completa da escola. Observa o Agente encostado ao capot do seu carro de patrulha a fumar lentamente, perto da entrada. Ao longe, vê um grupo de jovens a trepar a grade para o recinto escolar.
São exímios nos movimentos, lançando as mochilas primeiro e saltando depois. Apenas um rapaz fica de fora, despedindo-se dos colegas. Parece ser FRANÇA (15), o que suscita o interesse de Carlos.
INT. CARRO DE CARLOS – FIM DE TARDE
Já no carro, com o filho no banco de trás, Carlos percorre as ruas junto à escola em busca de França.
FILHO
(cabisbaixo)
Podemos ir para casa?
CARLOS
(distraído)
Sim, filho, já vamos…
Carlos continua a conduzir lentamente à procura de França. O filho apercebe-se da sua distração.
FILHO
Estás a procura de quê?
Nesse preciso momento, Carlos vê França ao longe, a fumar debaixo de um telheiro. França parece reparar em Carlos, rodando a cabeça na direção do carro. Ao virar para outra rua, Carlos perde-o de vista.
FILHO (CONT’D)
(receoso)
Conheces?
Carlos apercebe-se da fragilidade da sua voz.
CARLOS
Não. E tu?
FILHO
Sim. Quer dizer, não…
Carlos não responde mas está atento, espreitando o filho pelo retrovisor, que se apercebe e sente obrigado a continuar.
FILHO (CONT’D)
Chama-se França. Anda na escola…
Mas quase nunca aparece.
CARLOS
É do teu ano?
FILHO
Não, é do quinto.
Já repetiu muitas vezes.
CARLOS
E ninguém o castiga?
FILHO
Não sei…
O filho de Carlos alterna a sua atenção entre a paisagem e o reflexo do pai no retrovisor.
FILHO (CONT’D)
(ganhando coragem)
A professora também tem medo dele.
Há uns dias riscou-lhe o carro
com uma faca.
CARLOS
(murmurando, irritado)
Foda-se.
O filho fica espantado com a reação do pai, retraindo-se ainda mais no seu lugar.
INT. ESCRITÓRIO, OFICINA – NOITE
Sozinho no escritório, Carlos está sentado à secretária em silêncio a rever alguns papéis. Levanta-se. Através do vidro tosco da porta que dá para o interior da oficina, observa uma mota restaurada por si. Pega no maço de tabaco e sai.
I/E. OFICINA – NOITE
Carlos abre o portão pesado da oficina. O som intenso afugenta dois vultos que circundavam o seu carro. Carlos ainda os segue em passo acelerado, mas desiste rapidamente, fixando a camisola vermelha de um deles a desaparecer na escuridão. Olha a estrada deserta sem saber o que fazer.
I/E. CARRO DE CARLOS, ESTRADAS DA VILA – NOITE
Carlos conduz lentamente pela vila procurando França. As ruas estão desertas. As escovas deslizam, incansáveis, enquanto Carlos vai limpando o vidro embaciado com um pano. Passa pelo cemitério, pela igreja, a escola, mas não vê ninguém.
Recordando-se do telheiro, conduz até lá. Pára o carro ao longe. Vê um grupo de jovens abrigados, fumando e divertindo-se ao som de uma COLUNA portátil. No centro deles está França, vestido com uma camisola vermelha. Carlos enerva-se, apertando o volante. À distância, a chuva não permite uma leitura clara entre os extremos, mas o grupo apercebe-se da sua chegada. França arranca de imediato na direção do carro com um passo ameaçador.
FRANÇA
(ao longe)
Que queres caralho???
Carlos arranca. Pelo retrovisor ainda vê França a atirar pedras na sua direção.
EXT. CAFÉ DA VILA – FIM DE TARDE
Carlos está à porta do café. Bate duas vezes no vidro e faz um sinal para dentro. Debaixo do toldo, abriga-se da chuva que não cessa. Dá pequenas voltas sobre si próprio enquanto espera. Pouco depois, o agente sai do estabelecimento e acende um cigarro ao seu lado.
AGENTE
Então, Carlos?
Que me queres?
Carlos esboça um sorriso, hesitando em confessar-se. Mete um cigarro à boca. Está nervoso. Procura o isqueiro em vários bolsos, mas é interrompido pela chama que o agente lhe oferece. Carlos inclina-se e acende o cigarro, acenando em agradecimento.
AGENTE (CONT’D)
Então, homem?
CARLOS
Estive a pensar. E acho que sei
o que é que podíamos fazer…
Eu… Eu podia fazer.
Carlos dá uma passa no cigarro excessivamente longa.
CARLOS (CONT’D)
(voz nasalada, expelindo o fumo)
Com o França.
AGENTE
(atento)
Como assim?
CARLOS
Está a precisar de uma lição.
AGENTE
E és tu que a vais dar?
CARLOS
Imagina. Pegava nele,
atravessava a fronteira.
Mas sem ele desconfiar de nada…
O agente solta um sorriso, desconsiderando a ideia de Carlos.
CARLOS (CONT’D)
(entusiasmando-se)
Não, espera. Pensa.
Pegava na moto, aquela que ele
andou a picar, sabes? Pegava na
moto, e fazia-me de amigo dele.
Convidava-o a ir dar uma volta.
Ele é parvo o suficiente para alinhar…
AGENTE
E depois, quê?
CARLOS
Ia com ele para o lado de lá, e…
O agente desvia o seu olhar para a estrada acenando em reprovação.
CARLOS (CONT’D)
(entusiasmado)
Não! Não vou fazer-lhe nada.
É mesmo isso. Não vou fazer-lhe
absolutamente nada! Vou com ele
e volto. Sem ele. Deixo-o lá.
AGENTE
Para o outro lado?
A fazer o quê pá?
CARLOS
Nada! É isso mesmo. Duvido que
lhe possa acontecer alguma coisa
de mal. Quanto muito fica perdido
umas horas. Ou mais.
Também é maneira de ver se é tão
forte como diz. E nós livramo-nos
dele por um bocado…
Confuso mas curioso, o Agente demora-se enquanto reflete.
AGENTE
Bem, não sei. Se te fizer feliz…
Não vejo onde está o crime.
Carlos esboça um sorriso cúmplice. Olha as nuvens carregadas por cima de si. O agente acaba de fumar, atirando o cigarro para a estrada. Antes de entrar, bate-lhe no ombro e sorri.
AGENTE (CONT’D)
Sabes onde ele mora?
EXT. ESTRADA, VILA – TARDE
Carlos passeia-se com a sua motorizada pela vila. A estrada está finalmente seca. As rotações do motor atravessam a rua como uma canção rouca. Ouvem-se as BADALADAS do sino da igreja.
EXT. CASA DE FRANÇA – TARDE
Carlos chega à morada que lhe fora indicada pelo Agente. É uma casa pobre, numa zona mais afastada da vila. O jardim é uma mistura de lixo e natureza. Carlos coloca a mota no descanso sem a desligar. Tira o capacete e pousa-o no banco.
Dá uns passos em volta. Acende um cigarro, olha para a casa de França e regressa à mota com um sorriso arrogante. Faz um ratere e espera. Ninguém. Outro ratere, seguido de um terceiro e de um quarto.
INT. CASA DE FRANÇA – TARDE
Escondido atrás de uma cortina na penumbra do seu quarto, França, apreensivo e confuso, observa Carlos. A sua respiração é cada vez mais audível, fundindo-se com o som incessante da motorizada. Afasta-se da janela. Decide sair e enfrentar a visita.
EXT. CASA DE FRANÇA – TARDE
Com uma expressão ameaçadora e peito erguido, França sai ao encontro de Carlos, que sorri enquanto acelera.
FRANÇA
Cala-te!!! Ei!!!
Estás a ouvir??
Parto-te a mota toda, cabrão!
Carlos levanta as mãos e sorri, troçando a sua própria rendição.
CARLOS
Calma, moço!
Estás nervoso porquê?
FRANÇA
Nervoso o quê pá?
Baza daqui antes que…
Carlos desliga a mota, e silêncio súbito interrompe França.
Carlos avança.
CARLOS
(sério)
Mas vais acalmar-te ou vou
ter que fazer alguma coisa?
França hesita por momentos, confuso com a mudança súbita do comportamento de Carlos.
CARLOS (CONT’D)
‘Tás com medo é?
Não precisas. Para quem já andou
a rondar esta mota há uns tempos…
FRANÇA
(desarmado)
Quem… eu?
CARLOS
Vês aqui mais alguém?
França baixa o olhar para a moto, tentando encontrar nela alguma resposta para o encontro inusitado.
CARLOS (CONT’D)
Moço… está tudo bem.
Até te agradeço, sabes. É por tua causa
que hoje até me sinto livre. Já não pegava
nela há uns tempos. E, sinceramente, não
sei se lhe ia voltar a pegar. Mas depois
da tua visita ontem… apeteceu-me.
FRANÇA
Eu não…
CARLOS
Deixa-te de merdas, confia. Sabes andar?
FRANÇA
(desconfiado)
Claro.
CARLOS
Quantos anos tens?
França parece irritar-se com a pergunta.
CARLOS (CONT’D)
Não é pela mota…
Se souberes, por mim podes pegar nela.
Estou a perguntar porque quero saber.
FRANÇA
E porquê?
CARLOS
Têm falado de ti no café… E no que tu fazes.
França não esconde um sorriso orgulhoso.
CARLOS (CONT’D)
(olhando em volta)
Não é fácil. A vida não é fácil,
e um puto da tua idade não
devia passar por algumas coisas.
FRANÇA
Tenho tudo o que quero.
Carlos olha França escondendo o desprezo pelo que acaba de ouvir. Acaba de fumar. Lança o cigarro ao chão, pisa-o, e sobe para a mota.
CARLOS
(dando o seu capacete a França)
Anda, bora.
FRANÇA
Bora onde?
CARLOS
Galgar monte. Anda lá.
Apesar de desconfiado, França age de forma destemida e sobe para a mota, rejeitando o capacete.
CARLOS (CONT’D)
(colocando ele próprio capacete)
Tu é que sabes.
Carlos liga a mota. Depois de duas acelerações em falso, arranca num curto cavalo, obrigando França a agarrar-se a si com todas as suas forças.
EXT. BARRAGEM – TARDE
Atravessam a barragem que serve de fronteira. De braços agarrados ao corpo de Carlos, França sente o vento a bater-lhe na cara, fechando os olhos de contentamento e pura adrenalina. Carlos carrega um olhar sério e um sorriso discreto.
EXT. ESTRADA NACIONAL – TARDE
Passam campos e vales, florestas e pequenas vilas de casas perdidas por entre a solidão. De um momento para outro, entram em terra batida, numa espécie de rally à descoberta do caminho certo por entre os vários trilhos já calcados. França está em êxtase.
CARLOS
(para o passageiro)
Anda bem ou não?!
Em esforço para se agarrar, França não responde, mas esboça um sorriso puro e infantil.
EXT. MONTE – FIM DE TARDE
Sentados num penedo no topo da colina, uma espécie de miradouro secreto, olham a paisagem que lhes inunda os pés.
Há um silêncio a toda a volta. A mota está estacionada um pouco mais abaixo.
CARLOS
Na volta conduzes tu.
Enquanto enrola um cigarro, França acena afirmativamente, sorrindo com vontade. Carlos observa o horizonte. O silêncio da natureza parece finalmente trazer uma cumplicidade silenciosa entre os dois.
FRANÇA
Já conhecias isto aqui?
CARLOS
Um amigo do meu pai trouxe-me cá, uma vez…
Se não fosse ele, se calhar não estava aqui hoje.
FRANÇA
(intrigado)
Porquê?
CARLOS
(esboçando um sorriso)
Porque não tinha
tudo o que queria.
França não responde, fingindo não perceber a nota de Carlos.
Acende o cigarro.
CARLOS (CONT’D)
Fazes-me um?
FRANÇA
Ya.
França começa a enrolar outro cigarro. Carlos observa-o em silêncio durante alguns segundos. Levanta-se.
CARLOS
(pousando a mão no ombro de França)
Vou mijar.
Carlos afasta-se em direção ao mato. França continua a enrolar o cigarro e a olhar a paisagem. Nisto, ouve o som da MOTA a ligar. Levanta-se rapidamente, vendo Carlos a desaparecer por entre a vegetação.
FRANÇA
(correndo atrás da mota)
EI!!! EI!!!!
França ainda corre alguns metros, mas acaba por tropeçar, caindo com estrondo e perdendo a mota de vista.
EXT. MONTE – NOITE
É de noite. França caminha lentamente, perdido. Está exausto.
Deixa-se cair junto de uma árvore. Ao ver que o tabaco está a acabar, despeja os restos numa mortalha e faz um último cigarro. O isqueiro teima em não acender, o que provoca nele um súbito desespero. Quando a chama surge e lhe ilumina o rosto, percebemos as lágrimas que começam a correr.
EXT. ABRIGO NO MONTE – NOITE
Debaixo de uma chuva intensa, França encontra um pequeno sulco sob uma rocha, suficiente para se abrigar, aninhado.
Está a tremer de frio e de fome. Ouve-se o bater dos DENTES.
Desesperado, acende o isqueiro, como se encontrasse nele um fogo que o aquecesse.
Pouco depois, a chama queima-lhe a ponta do dedo. Apaga-se a luz, e, com isso, escuta-se um novo CHORO.
CUT TO:
EXT. ABRIGO NO MONTE – NOITE
Na escuridão, distinguem-se apenas os contornos da mata molhada. Já não chove. França olha o infinito. Num tremor contido, a sua expressão parece agora mais calma. De repente, ao longe, uma luz branca e difusa surge no horizonte.
Inseguro da sua própria lucidez, França não se move, admirando a luz em silêncio. Cada vez mais próxima, a luz dá lugar a um corpo. É uma MULHER (30), com um vestido azul celestial, corpo harmonioso e de feições belas e puras.
França não se move. O seu olhar rendido acompanha a aproximação da Mulher que, pouco depois, se ajoelha junto de si. Toca-lhe na cara de forma carinhosa. França suspira, num misto de alívio e prazer.
MULHER
(sorrindo)
Estás perdido?
França não responde, completamente siderado com a visão.
Cresce um desejo de tocar a pele imaculada da mulher. A mulher senta-se junto a ele.
MULHER (CONT’D)
(tocando-lhe no cabelo)
Deita-te aqui. No meu colo.
França acompanha o movimento da mão da mulher, obedecendo.
Encosta a cabeça ao peito da Mulher. Aconchegado, encolhe as pernas num sinal de conforto. Aperta-o para junto de si.
MULHER (CONT’D)
Isso. Respira, descansa. Ouve-me.
Ouve o meu coração.
França abraça-lhe pela cintura. Aperta-a com força. A mulher sorri de forma maternal. França acena afirmativamente contra o seu corpo.
INT. CARRO – DIA
França acorda no banco de trás de um carro em movimento.
Confuso, observa ZACARÍAS (77), homem curvado mas robusto, com um aspeto severo. Entre a confusão e o medo, França ganha consciência de si próprio. Está sujo e exausto.
Zacarías repara nele e olha-o brevemente por cima do ombro.
França cruza olhares com o condutor, mas não consegue dizer uma palavra. Zacarías olha em frente novamente.
ZACARÍAS
Tes fame?
Ao ouvir o homem galego, o medo dá lugar a uma estranheza.
Sem responder, França senta-se direito no banco, e tenta lembrar-se do seu percurso até ali enquanto analisa a paisagem. Zacarías vira-se para trás e insiste.
ZACARÍAS (CONT’D)
(assertivo)
Eh! Tes fame ou non?
Intimidado pela voz forte e dura de Zacarías, França não consegue dizer uma palavra. Zacarías abana a cabeça em reprovação. Chega ao destino, e estaciona o carro. Sem sequer olhar para o seu passageiro, sai e dirige-se ao café onde, sentados numa mesa no exterior, dois homens fumam um cigarro em silêncio. Cumprimentam-se e trocam algumas palavras. Ao ouvir as palavras de Zacarías, os homens espreitam França no interior do carro. Zacarías entra no café.
EXT. CAFÉ ESPANHOL – DIA
França sai do carro e recompõe-se como pode. Esforça-se por adotar uma postura séria. Caminhando num pequeno círculo, analisa o café, a rua e as casas em volta. Repara na paragem de autocarro em frente ao café e nas suas semelhanças com a da sua vila. Ao ver que os homens à porta do café o olhavam com alguma curiosidade, decide abordá-los.
FRANÇA
(gesticulando)
Arranjam-me um?
Os homens entreolham-se, desconfiados. Um deles tira um maço vermelho do bolso e dá-lhe um cigarro. França acende-o sem uma única expressão de agradecimento. Nesse momento, Zacarías sai do café com um copo de água e um prato com pão e algumas entradas que pousa na mesa. Ao vê-lo a fumar, Zacarías dá-lhe um estalo na mão, atirando o cigarro ao chão. Sente-se um instinto de revolta do França, mas que é imediatamente interrompido por um segundo estalo na nuca.
ZACARÍAS
(falando para os presentes,
sem tirar os olhos de França)
Debe pensar que é
xente grande, este.
A atitude de França muda subitamente, num misto de respeito e submissão. Cabisbaixo, repara com atenção no prato de comida e apercebe-se da fome que sente.
ZACARÍAS (CONT’D)
Come.
França senta-se e devora a refeição. Os homens sentados esboçam um sorriso na direção de Zacarías, que solta um suspiro de reprovação enquanto observa o jovem português.
ZACARÍAS (CONT’D)
Veña, que é tarde.
Os homens levantam-se e entram no carro de Zacarías. Ainda junto de França, o homem abre a carteira e retira 30 euros enquanto aponta para a paragem de autocarro.
ZACARÍAS (CONT’D)
Non falta moito.
Zacarías pousa as notas na mesa e dirige-se para o carro sem olhar para França. O rapaz parece querer dizer alguma coisa, mas tudo o que consegue é esboçar um sorriso confuso e algo melancólico. Zacarías liga o carro desaparece com os colegas sem qualquer tipo de despedida.
INT. AUTOCARRO – FIM DA MANHÃ
No interior de um autocarro humilde e com poucos passageiros silenciosos, França dorme com a cabeça pousada na janela. Uma luz dourada aquece o seu rosto jovem e transformado.
EXT. PRAÇA CENTRAL, VILA – TARDE
No exterior do café, Carlos e alguns habitantes da vila bebem cerveja e fumam, animados. Parecem aliviados e felizes, contrastando com a preocupação de algumas noites atrás. O autocarro chega e, com ele, Carlos levanta-se como se essa fosse a hora de sair. Despede-se e dirige-se à sua mota. Do outro lado da estrada, França sai do autocarro. Admira a paragem, que agora se apresenta restaurada e colorida, e solta um sorriso. Quando o autocarro se afasta, França repara em Carlos sentado na sua mota momentos antes de por o capacete. Carlos olha-o de volta. Os sorrisos de cada um abatem-se subitamente. Em silêncio, não desviam o olhar. A tensão é sublime. Apenas o ruído da BARRAGEM no fundo. França olha Carlos. Carlos olha França.
FIM