Produção short/age. © Todos os direitos reservados.
Dr. Lobizombie
um argumento de
L Filipe dos Santos
trilha sonora de
Luís Antero
ilustrado por
Carolina Celas
A digressão do comboio fantasma de Bastos trá-lo à Feira de S. Mateus. Aí, em Viseu, conhece Joana, não imaginando como iria terminar a noite. Ou será que já sabia?
Escutar com headphones
1. EXT. AUTOESTRADA (A25) – DIA
Cena panorâmica da autoestrada com toda a sua paisagem envolvente. É um dia quente de verão. Ao fundo, atrás da encosta, a típica coluna de fumo de um incêndio. Um enorme camião, que circula em direção a Viseu, destaca-se dos restantes elementos. A cabine pintada com vibrantes chamas, um semirreboque e um enorme reboque, ambos, caixotes coloridos e preenchidos nas laterais com as palavras “DR. LOBIZOMBIE”.
2. INT. CABINE DO CAMIÃO – DIA
O condutor baixa a pala de sol: em letras grandes e maiúsculas, uma placa com o nome BASTOS.
A cabine repleta de um denso fumo do cigarro. Bastos fuma enquanto conduz. Dele apenas se distingue um vulto, uma silhueta cintilando naquela atmosfera de sombras e raios de sol e nuvens de fumo. O autorrádio toca algo cheio de energia, um tema de verão. À volta das janelas e do parabrisas, decorações agitam-se constantemente, com pequenas contas e brilhantes e medalhas e cristais, etc. Bastos abre o portaluvas para tirar os óculos de sol, deixando que se veja fugazmente uma série de fotos, cada uma um retrato frontal em grande plano de pessoas com os olhos fechados. Bastos põe os óculos e dá mais um bafo no cigarro. De súbito, põe-se a procurar outra estação de rádio, ansioso, progressivamente agressivo. Desliga o rádio. Dá-lhe um valente murro, como que para concluir a sua raiva e frustração, fazendo o portaluvas abrir-se e, de novo, as fotos, agora em silêncio.
3. EXT. RECINTO DA FEIRA DE SÃO MATEUS – DIA
Sequencia em montage e/ou timelapse desde o início da tarde até ao sol pôr-se. Bastos a montar o camião – que se trata de um “comboio fantasma”, a típica atração de feira de diversões.
BASTOS, um sujeito charmoso, entre os 45 e os 50 anos de idade, trajando um fato elegante, apresenta-se agora de forma clara no ecrã. Tira o casaco e arregaça as mangas da camisa. Começa por largar o enorme atrelado no recinto e vai estacionar o semirreboque (leia-se “autocaravana”) no parque da feira semanal, perto de outros camiões e caravanas que já lá se encontram. Continua, agora montando o comboio propriamente dito, juntando os carris, abrindo os toldos e subindo os taipais. No cimo de uma escada, a fixar os letreiros luminosos, a testar as luzes, a testar uma série de mecanismos. Finalmente, termina. Bastos está exausto. Sujo de pó e a suar por todos os poros. Respiração arfejante, curvado, segurando-se com uma mão na parede do comboio fantasma.
Percebe-se que sofreu uma pequena quebra de tensão ou alguma outra fraqueza do género.
4. INT. AUTOCARAVANA – FINAL DO DIA
O interior da autocaravana é perfeitamente vulgar. No entanto, a um canto, sobre uma mesa encontram-se um par de pernas e de braços articulados, em tamanho real. Possivelmente alguma nova marionete que Bastos andaria a construir para o seu comboio fantasma.
Bastos abre o frigorífico. Vazio. Bebe um copo de água. As mãos tremem. Abre armários, encontra uma ou outra caixa, tudo vazio. Senta-se, acende um cigarro. Fecha os olhos e pousa a cabeça sobre a mesa.
5. EXT. FEIRA DE SÃO MATEUS – NOITE/AMANHECER
CLOSE OUT a partir do letreiro luminoso “DR. LOBIZOMBIE” até toda a fachada da atração caber no plano. O típico visual de uma atração de feira, nomeadamente, o comboio fantasma: muitas pinturas e luzes coloridas, os carris desde a porta do lado esquerdo até à porta do lado direito, algumas personagens de terror com movimentos mecanizados espalhadas pela parede.
Há uma lentidão patente em toda a cena, um vagar palpável. Os únicos movimentos são os de Bastos a fumar e os dos elementos da natureza.
Bastos está de pé, encostado à parede, ao lado da porta esquerda. Um pé apoiado na parede. Fuma.
A iluminação noturna começa a mudar, a desaparecer para dar lugar ao dia. Um plano geral, afastando-se, mostra o dia a nascer e o local onde se encontra: um campo com aspeto descuidado, mato e ervas altas, lama, pedras, pequenos charcos, neblina matinal movimenta-se suavemente. Além do comboio fantasma, encontram-se também as outras atrações da Feira de S. Mateus, espalhadas pelo terreno, todas paradas, mas com as coloridas iluminações ligadas.
Começa a chover. Bastos volta o olhar para cima, para o céu.
6. INT. AUTOCARAVANA – NOITE
Bastos acorda sobressaltado. O copo de água entornado sobre a mesa. Levanta-se. Troca de camisa. Lava a cara. Pega nas chaves e carteira, veste o casaco e sai.
7. INT. MERCEARIA
Visão geral da mercearia, quase vazia. Uma CLIENTE mais velha ao fundo, tirando algum artigo da prateleira e Bastos, charmoso, trajando o seu fato elegante, dirige-se à caixa de pagamento, onde se encontra JOANA, que aparenta ter uns 30 anos, sorridente, simpática.
Bastos tira as compras do carrinho de plástico e coloca-as no tapete da caixa. Entre os diversos artigos encontra-se um par de garrafas de vinho e, no final, um pão de forma muito amassado. Bastos puxa as pontas da embalagem, dá algumas palmadas no pão, aperta aqui e ali, tentando recuperar a sua forma original.
JOANA
(olhando para o pão
com um sorriso de pena)
Coitadinho
BASTOS
Não me lembrei que estava
no fundo do carrinho…
não faz mal, paciência.
JOANA
Vai querer saco?
Joana começa a fazer o registo das compras
BASTOS
Hum, sim. Dê-me um
desses mais fortes.
Joana passa o pão pela caixa registadora
JOANA
Agora veja lá, não o
ponha no fundo do saco,
que o pão deforma.
Bastos dá uma pequena gargalhada. Agradavelmente surpreendido.
JOANA
Sabe que isto, chegando a esta hora,
só com boa disposição é que uma
pessoa se aguenta. Ora, vinte e
quatro euros e seis cêntimos.
Bastos responde enquanto passa o cartão de débito no terminal multibanco.
BASTOS
Pois, acredito.
Deixe lá, que também está
quase a fechar, não está?
JOANA
Mais uma minutitos… contribuinte?
BASTOS
Nã…
JOANA
Mas até sair, ainda fico aqui mais
uma meia hora a arrumar depois de fechar.
BASTOS
(virando-se para sair)
Não há de ser fácil.
Bom, é domingo à noite, mas
mesmo assim, bom fim de semana!
JOANA
E olhe que acertou mesmo!
Ainda vou gozar o fim de semana sim,
que a seguir a isto vou à feira,
que ainda não pus lá os pés este ano.
BASTOS
Ai sim?!
Por acaso não aprecia o comboio fantasma?
JOANA
Vou-lhe ser sincera, eu vou
lá é mais pelas bifanas.
Bastos leva a mão ao bolso e tira um pequeno bloco, arranca duas folhas e estende-as a Joana.
BASTOS
É que quando você sair do trabalho hei de
estar eu a entrar para o meu. Ofereço-lhe, para
depois das bifanas. Se ainda tiver boa disposição.
GRANDE PLANO das folhas ao passarem de mãos. Torna-se evidente que se trata de um par de bilhetes. Consegue-se ainda ler “DR. LOBIZOMBIE – o comboio do horror”.
CORTE BRUSCO PARA (EVIDENTE MUDANÇA DE TOM)
CLIENTE SEGUINTE
Então mas como é que é?
Vão atender-me hoje ou quê, carago?
JOANA
Calma minha senhora, não é preci…
CLIENTE
(exaltada)
Calma? Calma o carago!
Uma pessoa a fazer as compras à
pressa porque a menina vai fechar,
chega-se aqui à caixa e é isto?!
BASTOS
Tranquila minha senhora, saio já…
JOANA
Deixe estar que também não vai perder o comboio.
CLIENTE
E ainda responde?!
(furiosa)
Sinceramente! Não fico calma nada,
como é que fico calma? Sempre igual,
uma pouca vergonha!
JOANA
A senhora acalme-se
que já é a sua vez.
CLIENTE
Pois, mas já devia era
ter sido, lambona dum raio!
(aos berros)
Lambona! Lambona!
JOANA
(falando entre dentes)
Lambona será a tua tia…
BASTOS
Alto, não vamos começar com insul…
CLIENTE
Ó sua cabra!
A cliente lança-se sobre Joana, atacando-a com murros, puxando-lhe os cabelos.
Imediatamente, Bastos esforça-se por deter a luta. Tenta separar as duas mulheres, acabando por ser ele vitimado por um golpe mais forte com algum objeto na nuca, que o faz perder os sentidos.
O caos da situação desfoca-se progressivamente, Bastos cai no chão, desmaiado.
8. EXT. FEIRA DE SÃO MATEUS – NOITE/AMANHECER
CLOSE OUT a partir do letreiro luminoso “DR. LOBIZOMBIE” até toda a fachada da atração caber no plano. O típico visual de uma atração de feira, nomeadamente, o comboio fantasma: muitas pinturas e luzes coloridas, os carris desde a porta do lado esquerdo até à porta do lado direito, algumas personagens de terror com movimentos mecanizados espalhadas pela parede.
Há uma lentidão patente em toda a cena, um vagar palpável. Os únicos movimentos são os de Bastos e Joana a comer e os dos elementos da natureza.
Bastos está de pé, encostado à parede, ao lado da porta esquerda. Uma sandes de pão de forma na mão, tosca e deformada. Joana, sentada a uma pequena mesa, ao lado da porta do lado direito, come uma bifana.
A iluminação noturna começa a mudar, a desaparecer para dar lugar ao dia. Um plano geral, afastando-se, mostra o dia a nascer e o local onde se encontram: um campo com aspeto descuidado, mato e ervas altas, lama, pedras, pequenos charcos, neblina matinal movimenta-se suavemente. Além do comboio fantasma, encontram-se também as outras atrações da Feira de S. Mateus, espalhadas pelo terreno, todas paradas, mas com as coloridas iluminações ligadas. Centenas de pessoas (típicos visitantes da Feira – famílias, grupos de jovens, etc.) encontram-se paradas, retas e verticais, em formação, todas voltadas para Bastos e Joana.
Começa a chover. Bastos volta o olhar para cima, para o céu.
9. INT. SALA DE ARRUMOS/MERCEARIA
Bastos está sentado numa cadeira, recupera agora os sentidos. Começa a abrir os olhos enquanto Joana lhe humedece a testa com uma toalha molhada.
JOANA
Ah, finalmente, aí vem ele…
Bastos murmura algo incompreensível, notoriamente ainda abalado.
JOANA
Deixe-se estar senhor, não se
levante que levou uma grande pancada.
BASTOS
A mulher, onde…
a outra mulher onde é que…
o que se passou? Você está bem?
JOANA
Não se preocupe, não se passou nada.
Já não é a primeira que me acontece.
O pior é ter sobrado para o senhor.
BASTOS
Eu, deixe estar, eu já estou bem.
Bastos levanta-se, algo cambaleante.
BASTOS (CONT’D)
Onde é que a maluca se meteu?
JOANA
Onde é que se meteu?
Chamei a polícia, teve de ser,
que a velha estava completamente passada!
BASTOS
Eh pá! E que horas são isto?
JOANA
Pois deixe-se estar, que o
que tinha de fazer já lá vai.
Devem ser para aí umas onze.
BASTOS
Porra! Hoje aquilo estava
por minha conta e falhei…
JOANA
O carrossel? Deixe lá isso agor…
BASTOS
Comboio fantasma.
10. EXT. ESTRADA DA CIRCUNVALAÇÃO (VISEU) – NOITE
Bastos e Joana caminham lado a lado. Ele carrega o seu saco de compras, ela leva uma mochila ao ombro.
JOANA
Eu sei, eu sei que não precisa
que o acompanhe até ao camião,
mas o senhor levou uma grande pancada.
O melhor, para mim, até era ir às urgências.
BASTOS
Não, não, não.
A sério que me sinto bem.
JOANA
Com estas coisas não se brinca.
Se lhe desse alguma coisa
no caminho…
BASTOS
Vai lá agora dar-me uma coisa!
Sério, já passou.
(pausa)
Mas obrigado.
JOANA
Ora essa!
BASTOS
Pelo menos para mim
já valeu a pena, que vou
aqui em boa companhia.
JOANA
(em tom de brincadeira)
Ainda me fica a dever
é um jantar na feira.
BASTOS
Bifanas?
JOANA
Ora vê como você sabe?
Até já sabe do que eu gosto!
Entretanto, ambos chegam ao recinto da feira semanal.
Muitas pessoas e carros na habitual confusão dos estacionamentos para a Feira de São Mateus.
11. EXT. ESTACIONAMENTO, À PORTA DA AUTOCARAVANA DE BASTOS – NOITE
Bastos e Joana param em frente da autocaravana.
BASTOS
É esta.
(vasculhando nos bolsos)
Faltava agora ter perdido as chaves.
JOANA
Entregue então.
Tem a certeza que fica bem?
BASTOS
Fico bem, obrigado.
Não se preocupe.
JOANA
De qualquer modo já sabe,
apontou o meu número.
Qualquer coisa…
BASTOS
Mas já agora, desculpe lá,
que horas é que são?
Ainda não é assim tão tarde…
JOANA
Uma meia noite e meia.
BASTOS
E nenhum de nós jantou,
nós aqui sem jantar.
JOANA
Ui se está a pensar nas bifanas,
pense noutro dia, que isso a esta
hora duvido que lhas façam.
BASTOS
Não, não, mas se aceitar ofereço-lhe
umas sandes em pão de forma.
JOANA
(sorrindo, com a mão no queixo)
Olha…
12. EXT. ESTACIONAMENTO, À PORTA DA AUTOCARAVANA DE BASTOS – NOITE
Vislumbram-se as sombras de Bastos e de Joana no interior da autocaravana, através das cortinas. Conversam. Joana senta-se. Bastos prepara as sandes.
13. EXT. FEIRA DE SÃO MATEUS, EM FRENTE AO COMBOIO FANTASMA – NOITE
JOANA
Estou super nervosa.
Uma coisa é dar uma volta com uma
amiga durante o dia, ou assim, agora ir
no comboio fantasma de madrugada:
res-pect!
BASTOS
Vais ver, vá,
não há nada que ter medo.
JOANA
E vamos com isto tudo apagado?
Cruzes!
BASTOS
Lá dentro depois acendem-se
luzes, aqui não, senão o segurança…
Bastos sobe para o carrinho, senta-se ao lado de Joana. Prime um grande botão vermelho num comando e começam a andar. Entram pela porta do comboio fantasma.
FADE PARA NEGRO
14. EXT. FEIRA DE SÃO MATEUS – NOITE/AMANHECER
CLOSE OUT a partir do letreiro luminoso “DR. LOBIZOMBIE” até toda a fachada da atração caber no plano. O típico visual de uma atração de feira, nomeadamente, o comboio fantasma: muitas pinturas e luzes coloridas, os carris desde a porta do lado esquerdo até à porta do lado direito, algumas personagens de terror com movimentos mecanizados espalhadas pela parede.
Há uma lentidão patente em toda a cena, um vagar palpável. Os únicos movimentos são os de Joana a correr e os dos elementos da natureza.
Bastos está de pé, encostado à parede, ao lado da porta esquerda. Os olhos em branco, vazios, ar de zombie. As mãos são garras enormes, escorrendo sangue pelas unhas. Ao lado da porta do lado direito, uma pequena mesa, uma cadeira vazia.
A iluminação noturna começa a mudar, a desaparecer para dar lugar ao dia. Um plano geral, afastando-se, mostra o dia a nascer e o local onde se encontra: um campo com aspeto descuidado, mato e ervas altas, lama, pedras, pequenos charcos, neblina matinal movimenta-se suavemente. Além do comboio fantasma, encontram-se também as outras atrações da Feira de S. Mateus, espalhadas pelo terreno, todas paradas, mas com as coloridas iluminações ligadas. Dezenas de pessoas (típicos visitantes da Feira – famílias, grupos de jovens, etc.) encontram-se paradas, retas e verticais, em formação, todas voltadas para Bastos. Todas com os olhos em branco, como cadáveres.
Subitamente, Joana sai a correr pela porta direita. Ferida, ensanguentada, roupa rasgada, tropeçante, assustada. Acaba por cair no meio de algumas pessoas, que não reagem. Fica caída. Morta.
Começa a surgir um raio de luz matinal, ilumina a cara de Bastos. Bastos volta o olhar para cima, para o céu.
15. EXT. AUTO ESTRADA / INT. CABINE DO CAMIÃO – DIA
Bastos a conduzir. Liga o autorrádio. Não tarda a encontrar um animado tema de verão, que prontamente se põe a acompanhar, cantando de forma muito animada. Abre o porta luvas para tirar um cigarro. No interior, além das fotos espalhadas que já antes se tinham visto, está agora também, por cima de todas, a foto de Joana.
16. INT. AUTOCARAVANA – DIA
O interior da autocaravana é perfeitamente vulgar. No entanto, a um canto, sobre uma mesa encontram-se um par de pernas e de braços articulados, em tamanho real. Encontra-se também um torso e uma cabeça. A cara é a de Joana.
FIM