Produção short/age. © Todos os direitos Reservados.
Este autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

Bem-aventurança

um argumento de
Ana Seia de Matos
trilha sonora de
Ricardo Santos Rocha
ilustrado por
Susa Monteiro

Com a velhice, Filomena aprendeu a ser curta nas palavras. Há pouco tempo a perder ou poucas razões para fingir. A sua ríspida honestidade desencadeia várias situações caricatas, no dia em que celebra o seu aniversário.

1. EXT. JARDIM PARTICULAR – DIA

É a festa de aniversário de uma menina que faz 8 anos. Ouve-se a canção de aniversário “para a menina Filomena, uma salva de palmas…”. A menina apaga as velas e tem pessoas à sua volta, balões e fitas. É um ambiente colorido.

 

2. INT. CASA – DIA

FILOMENA (85), tem um queque com uma vela à sua frente e sopra. Está sozinha em casa. Uma casa decorada com móveis antigos, decoração de estilo clássico. Ambiente um pouco soturno, pesado.

 

FILOMENA
(com um ar enfadado)
Já chega, estás contente?

 

Reparamos que está um smartphone à sua frente e que está numa videochamada com TIAGO, um homem de cerca de 40 anos.

 

TIAGO
Ó tia, caramba, que mau feitio.

 

FILOMENA
Sabes perfeitamente que não gosto
de celebrar o meu aniversário.
Sempre foi assim, não é agora aos 85 que vai ser diferente.

 

TIAGO
(suspirando)
Sim, sim, já sei.

 

FILOMENA
Se faço isto é para tu te sentires melhor
e eu me sentir mais moderna com
esta maquineta à minha frente.
Olha, sempre vens cá jantar?

 

TIAGO
Sim tia, falei com a Íris
e ela diz que não lhe faz diferença.

 

FILOMENA
(de forma jocosa)
Não sei donde é que veio esta mania
de dar nomes de partes da anatomia às pessoas.

 

Ouve-se uma voz de mulher ao fundo a responder qualquer coisa.

 

TIAGO
A Íris diz para ir à merda.

 

FILOMENA
(ri-se)
Ela que não fique muito chateada,
mas já não tenho forças para cozinhar
para tanta gente, ainda por cima contrariada.

 

TIAGO
Não se preocupe tia, ela diz que
amanhã também podemos
comemorar todos juntos cá em casa.

 

FILOMENA
Ora bolas, já bem basta ter de comemorar
no próprio dia ainda me acrescentam mais um.
Raios vos partam.

 

Juntam-se mais a ÍRIS e duas crianças (entre os 8 e os 12 anos) à videochamada muito sorridentes.

 

TIAGO
Também gostamos muito de si tia. Até logo!

 

ÍRIS E FILHOS
Até amanhã!

 

FILOMENA
(sorridente e a acenar com a mão)
Adeus, adeus. Ai!
Agora como é que se desliga esta porcaria…
já está.

 

Levanta-se e vai até uma mesinha de apoio que tem umas fotografias antigas, outras mais recentes do sobrinho e da família dele, com uma imagem de Cristo (não crucificado). Pega numa das molduras com a fotografia antiga a preto e branco de um homem novo.

 

FILOMENA
Espero que te tenhas conservado
assim viçoso lá no céu, senão
vai ser uma eternidade muito enfadonha.

 

Olha para a imagem de Cristo.

 

FILOMENA (CONT’D)
Espero que estejas a tratar bem dele.
O que ele fez na guerra foi obrigado
e porque não tinha outro remédio.

 

Pousando a moldura na mesita.

 

FILOMENA (CONT’D)
Escolheste uma espécie muito
ingrata para salvar, é só o que
te tenho a dizer. (pausa)
Mas obrigada.

 

E sorri.

 

FILOMENA (CONT’D)
(falando sozinha enquanto anda resoluta pela casa)
Bem, tenho muito que fazer e a
Dulce que ainda cá vem às quatro.
Será que ainda dá para ir ao Sr. Alberto?
Também gostava de dar uma saltada à capela.

 

E vai juntando o casaco, a mala, guarda-chuva, etc.

 

3. INT. CASA – DIA

Já à entrada, com a chave na fechadura pronta para sair, repara que a vizinha da frente também está de saída, é CRISTINA, uma senhora de 70 anos.

 

FILOMENA
(em voz baixa)
Ora bolas e agora esta chata.
(alto e para a vizinha)
Olá Dona Cristina, está benzinha?

 

CRISTINA abre a sua porta. Está com roupa de casa, não vai sair.

 

CRISTINA
Oh! Dona Mena, já lhe disse
que me pode tratar por Tininha.

 

FILOMENA
(um bocado irritada)
Pois eu preferia que me
tratasse por Filomena, se faz favor.

 

CRISTINA
(com ar um pouco contrafeito)
Pronto, não queria ofender.

 

FILOMENA
É que eu cá gosto que me tratem
pelo meu nome, não sei se está a ver.

 

CRISTINA
Pronto, ia dar-lhe os parabéns,
mas já vi que acordou com
os pés para fora da cama.

 

FILOMENA
(respirando fundo)
Desculpe-me, mas estou com muita pressa.
Hoje vem cá o Tiago jantar.

 

CRISTINA
(subitamente interessada)
Ai vem?
Então e a Íris e os pequenos?

 

FILOMENA
Estão bem, muito obrigada.

 

CRISTINA
Pois sim. Parece que ali os do
3.º B também se vão separar.

 

FILOMENA
(incrédula)
Ouça lá, mas onde é que isso já vai?!
Amanhã estou com o resto da família,
são é muitos para ter cá em casa, fico enervada.

 

CRISTINA
Então e aquela menina que
cá vem três vezes por semana?

 

FILOMENA
Está muito informada!
Agora se não se importa,
tenho muito que fazer.
Boa tarde.

 

CRISTINA
(entredentes)
Boa tarde.
(murmurando)
Pensas que me enganas.

 

4. EXT. RUA/BAIRRO – DIA

FILOMENA segue vagarosamente pela rua e chega à farmácia.

 

5. INT. FARMÁCIA – DIA

Entra na farmácia, põe o guarda-chuva no suporte e tira uma senha.
Estão algumas pessoas à espera para serem atendidas. A farmacêutica, CARLA (30) apercebe-se da presença de FILOMENA, acaba de atender um cliente e dirige-se-lhe.

 

CARLA
Olá bom dia D. Filomena.
A Dulce disse que passava cá hoje ao início
da tarde para levantar os seus medicamentos!

 

FILOMENA
Bom dia D. Carla.
Obrigada, mas aproveitei que tenho de
tratar de outros assuntos para tratar deste também.

 

CARLA olha para os restantes clientes, todos mais novos que FILOMENA.

 

CARLA
Se não se importam, atendia esta
senhora que já tem uma certa idade.
É rápido.

 

Há uns encolheres de ombros, alguém diz “concerteza”, há um homem que resmunga em voz baixa qualquer coisa como “claro, já cá faltava”, mas ninguém se opõe. FILOMENA dirige-se para o balcão.

 

FILOMENA
Muito obrigada, senhores.
Por muito que me custe admitir,
a verdade é que estas pernas já me suportam mal.

 

FILOMENA chega ao balcão. CARLA reúne as caixas de medicamentos.

 

FILOMENA (CONT’D)
Aqui a D. Carla já sabe o que é, não demora nada.
E para o resmungão (não olha para ele),
daqui a uns anos quero ver como se suporta.
Se calhar já o faz com dificuldade…

 

Uns rizinhos baixinhos e o homem que resmungou encolhe os ombros. Faz-se de desentendido.

 

CARLA
Aqui tem D. Filomena.
Eu ligo à Dulce a dizer que
não tem de cá passar, não se preocupe.

 

FILOMENA
Muito obrigada, é muito atenciosa.
(para todos) Obrigada e um resto de bom dia para todos!

 

PESSOAS NA FARMÁCIA (menos o resmungão)
Bom dia!

 

6. EXT. RUA/ BAIRRO – DIA

FILOMENA segue pela rua e pouco depois chega a uma mercearia de bairro, pequena.

 

7. INT. MERCEARIA – DIA

Está um homem sozinho, SR. ALBERTO (60) a marcar embalagens dentro da mercearia. Apercebe-se da chegada de FILOMENA.

 

FILOMENA
Bom dia Sr. Alberto, como está?

 

SR. ALBERTO
Ora muitos bons dias
D. Filomena e parabéns!

 

FILOMENA dirige-se ao balcão, apoia-se. Encolhe os ombros.

 

FILOMENA
Oh, obrigada. A mim só me está a dar mais trabalho.

 

SR. ALBERTO
Não diga isso D. Filomena,
é o seu dia!

 

FILOMENA
O meu e o de não sei mais quantas
pessoas que fazem anos hoje neste planeta!

 

SR. ALBERTO
(rindo)
Pronto, já percebi que pertence
aquele grupo que não gosta de celebrar.

 

FILOMENA
Realmente não gosto de celebrar o envelhecimento,
sobretudo no que ao corpo diz respeito
(olha para si mesma num reflexo)
Sinto-me bem o suficiente nos restantes
dias em que estou mais alheia a estas metamorfoses.

 

SR. ALBERTO
Não devia ser tão pessimista,
D. Filomena.

 

FILOMENA
Ouça, vivo melhor assim, está bem?
(sorri conciliadoramente) Tem cá o tofu?

 

SR. ALBERTO
Tenho sim, senhora.
Vai ter cá o seu sobrinho com a D. Íris?

 

FILOMENA
Não, hoje é só ele.
Vou fazer tofu e alho francês à brás.
Fizeram-me uma vez e estava muito bom,
então vou tentar reproduzir.

 

SR. ALBERTO
É importante aprender a fazer coisas novas.
E dizem que é mais saudável…

 

FILOMENA
Isso já não sei e sinceramente
não me interessa. Mas eles gostam.

 

SR. ALBERTO
(rindo-se)
Concerteza. Separo-lhe já aqui o alho francês também.
Vai precisar de batata palha?

 

FILOMENA
Sim, se faz favor.
E a D. Miriam, por onde anda?

 

SR. ALBERTO vai buscar os produtos.

 

SR. ALBERTO
Estava um pouco indisposta hoje de manhã,
então ficou a descansar.  Acho que abusou
ontem no cozido à portuguesa.
(rindo-se por antecedência da própria piada)
Olhe, se fosse cozido de tofu, já não acontecia!

 

FILOMENA
Isso diz o senhor!
Acho que aí o desgosto seria outro.
A comida também alimenta
a alma e às vezes há que correr riscos.

 

Olha com um ar divertido para o SR. ALBERTO que se ri de volta.

 

8. INT. CAPELA – DIA
Na capela estão algumas pessoas. Umas ajoelhadas, outras sentadas simplesmente nos bancos, dispersas.
FILOMENA está também sentada num dos bancos, com os sacos das últimas compras ao seu lado e mãos no regaço. Olha para o altar, tem um ar calmo.
Ouve-se movimento ao fundo da capela, junto ao altar. É o PADRE MIGUEL (30) que se aproxima.
O diálogo que se segue é dito em voz baixa.

 

PADRE MIGUEL
Olá D. Filomena, bom dia.

 

O PADRE MIGUEL aproxima-se e senta-se ao lado de FILOMENA.

 

PADRE MIGUEL (CONT’D)
Disseram-me que hoje faz anos.Parabéns.

 

FILOMENA
(olhando para ele)
Obrigada, Padre Miguel.
Como se está a adaptar aqui à nova paróquia?
Muito perseguido por velhotas beatas ou nem por isso?

 

PADRE MIGUEL
(sorri)
É muito dura para com as suas vizinhas, D. Filomena.

 

FILOMENA volta a dirigir o olhar para o altar.

 

FILOMENA
Isso vindo de quem não as tem,
não me serve de muito.

 

PADRE MIGUEL
Sim, tem razão. Se bem que no seminário
de vez em quando também há tensões.

 

FILOMENA
Presumo que principalmente sexuais.

 

O PADRE MIGUEL parece surpreendido, mas divertido.

 

FILOMENA
(séria e calmamente)
Ouça lá, quando é que se deixam disso do celibato?
Essa obsessão com o sexo não é nada saudável.

 

Há uma senhora que está mais perto que olha para eles com ar escandalizado.

 

FILOMENA
Podia ser opcional, por exemplo.

 

PADRE MIGUEL
A D. Filomena sempre com
as questões complicadas.

 

FILOMENA
(calmamente)
Vocês é que complicam.
Essa mania de ir em busca de
sofrimento desnecessário confunde-me,
sinceramente.

 

PADRE MIGUEL
(refletindo)
Serve para nos aproximarmos
mais do divino.

 

FILOMENA
Ai é essa a receita?
Pois eu acho que isso são desculpas.
Divina só a Santíssima Trindade.

 

PADRE MIGUEL sorri. FILOMENA tem os olhos pousados no altar.

 

PADRE MIGUEL
Tem razão.

 

Suspira e ficam ambos a olhar na mesma direcção.

 

9. INT. CASA – DIA

DULCE (50) está na cozinha, a acabar de limpar o lava-loiças. A FILOMENA está sentada na mesa da cozinha e conversam.

 

DULCE
Pronto D. Mena, assim…
(de repente apercebe-se do erro e corrige)
D. Fi-lo-me-na.

 

A FILOMENA sorri-lhe.

 

DULCE (CONT’D)
Desculpe, há utentes que gostam.

 

FILOMENA
Ah, é isso que nós somos?

 

DULCE
(atrapalhada)
Sim, quer dizer, não, quer dizer…

 

FILOMENA
Pode-se referir a mim como velha ou velhota,
se estiver para aí virada.

 

DULCE ri-se.

 

DULCE
Hoje fartou-se de passear.
Tem a certeza que não quer ajuda para fazer o jantar?

 

FILOMENA
A Dulce é muito simpática e uma grande ajuda.
Mas aquilo que ainda conseguir fazer,
prefiro fazê-lo sozinha, se não se importa.

 

DULCE
Claro que não, D. Filomena.
Mas não é vergonha nenhuma pedir ajuda!

 

FILOMENA
E também ainda não perdi essa capacidade.
Confie em mim, se faz favor.

 

DULCE
(sorri)
Sim, sim, confio.

 

FILOMENA levanta-se e vai até à mesa.

 

FILOMENA
E peço-lhe o favor de só me tratar como
uma criança pequena quando estiver demente.
Até lá estamos em pé de igualdade mental, está bem?
Esta carcaça tem é mais anos em cima e isso é uma casualidade.

 

DULCE
Sim D. Filomena, claro.

 

DULCE pega na mala, preparando-se para sair.

 

DULCE (CONT’D)
Não tenho outra ut…
velhota como a senhora, isso garanto-lhe.

 

FILOMENA
Isso que diz sossega-me.

 

DULCE
Porquê?

 

FILOMENA
(sorri)
Porque sim.

 

10. INT. PRÉDIO/HALL DO ANDAR DE FILOMENA – NOITE

TIAGO sobe as escadas do interior do prédio e chega ao andar da tia. Bate à porta e apercebe-se que a porta da vizinha da frente se está a abrir lentamente.

 

TIAGO
Boa noite D. Tina, como está?

 

CRISTINA abre a porta de rompante, mas é apanhada desprevenida

 

CRISTINA
Ah, pensava que era a
minha Paulinha.

 

TIAGO
E está tudo bem consigo?

 

Entretanto FILOMENA, reconhecendo a voz do sobrinho, abre a porta.

 

CRISTINA
Está sim, obrigada e consigo?

 

FILOMENA
(vê a vizinha)
Olá, boa noite.
(olha para Tiago)
Então, vamos jantar?

 

TIAGO
Está tudo bem, obrigada.
Depois apareça para uma fatia de bolo.

 

FILOMENA olha para TIAGO com ar contrafeito. CRISTINA parece entusiasmada com o convite.

 

CRISTINA
Ah, muito obrigada!
Aparecemos daqui a bocadinho.

 

FILOMENA
Boa noite.

 

TIAGO entra em casa. FILOMENA fecha a porta.

 

11. INT. HALL DE ENTRADA – NOITE

FILOMENA algo contrariada, fala num tom baixo para TIAGO.

 

FILOMENA
Ouve lá, mas o que é que foste fazer?
Agora também tenho de aturar
a chata da vizinha em minha casa?

 

TIAGO
Desculpe tia, fiquei sem saber
o que dizer.

 

FILOMENA
Para a próxima se a queres convidar,
fá-lo para tua casa. Raios partam.

 

FILOMENA resmunga enquanto segue para a cozinha.

 

12. INT. SALA DE JANTAR – NOITE

FILOMENA e TIAGO estão sentados à mesa de jantar, claramente no fim da refeição.

 

FILOMENA
Bem, vou buscar o bolo.

 

TIAGO
Não é melhor esperar pela D. Tina?

 

FILOMENA
(enquanto se levanta da mesa)
Tu não me enerves.

 

TIAGO
Espere, eu posso ir buscar.

 

FILOMENA
Deixa-te estar.
São só três passos até à cozinha.

 

Tocam à porta. FILOMENA olha para TIAGO com má cara. TIAGO sorri enquanto encolhe os ombros e levanta-se em direção à entrada.

 

12. INT. SALA DE JANTAR – NOITE

Estão todos sentados à mesa de jantar, com o bolo já partido e distribuído. Parecem estar a acabar de comer. Cristina está acompanhada da filha, PAULA (40).

 

CRISTINA
…e quando todos olharam, quem é que
estava a ajudar a senhora a levantar-se da passadeira?
A minha Paulinha! Ela é assim, muito amiga de toda a gente,
sempre pronta a ajudar.

 

PAULA está constrangida, olha para a mãe antes de se dirigir a FILOMENA.

 

PAULA
Pronto mãe, já chega.
Então e a D. Filomena, como tem andado?

 

FILOMENA
Posso diz…

 

É interrompida por CRISTINA.

 

CRISTINA
Então e o Tiago? Está tudo bem consigo?
Está com muito bom aspeto.

 

TIAGO
Muito obrigado D. Cristina.
Sim, está tudo bem lá em cas…

 

CRISTINA interrompe novamente.

 

CRISTINA
Já sei que a menina Íris não pôde vir.
É uma pena, mas já se sabe como são as mulheres
hoje em dia, não se pode contar com elas.

 

TIAGO parece confuso.

 

FILOMENA
D. Cristina, ponha os travões se faz f…

 

CRISTINA (CONT’D)
Pois a minha Paulinha sabe bem
como é apoiar alguém, pode-se contar
sempre com ela, é verdade.

 

PAULA
Mãe, o que é que está para aí a dizer?

 

CRISTINA
Nada, é só porque é uma pena estares sozinha
e o menino Tiago enfim, podia estar melhor servido.

 

TIAGO está incomodado. Começa a protestar.

 

TIAGO
Oiça, não sei o que…

 

PAULA
Mãe, sinceramente. Esta conversa outra vez?

 

Pelo tom de PAULA, esta é uma situação regular. Dirige-se para TIAGO.

 

PAULA
Sem ofensa, mas não faz muito
o meu género que é mais… feminino.

 

CRISTINA
(alterada, enervada)
Tu não sabes o que estás para aí a dizer!
Sempre metida com essa gente do teatro,
já te deram foi a volta à cabeça!

 

PAULA
Honestamente mãe,
ainda nem há dois minutos
era a Madre Teresa de Calcutá!

 

CRISTINA
Tu lava-me a boca antes de falares dessa santa!

 

PAULA levanta-se, preparando-se para sair.

 

PAULA
D. Filomena, desculpe-nos esta maçada.
Se soubesse que era para isto que cá vínhamos,
tinha-lhe dados os parabéns de outra forma.

 

FILOMENA sorri e faz sinal com a cabeça que não faz mal.

 

PAULA
(para todos)
Boa noite.

 

TIAGO
(confuso)
Boa noite.

 

PAULA sai da sala em direção à porta de entrada.

CRISTINA olha para os dois um pouco envergonhada, sem saber bem o que fazer.

 

CRISTINA
Já não sei que lhe faça.

 

FILOMENA
(conciliatória)
Se calhar é melhor aceitar.
Olhe que não é o fim do mundo.

 

CRISTINA
Pois isso é muito fácil para si de dizer.
Este já tem filhos e tudo! E a minha Paulinha?

 

FILOMENA
Não se preocupe, se ela quiser
ter filhos também pode, D. Cristina.

 

CRISTINA
Mas já não vai para nova e
não é natural D. Mena, é pecado!

 

FILOMENA
Deixe-se de disparates.
Se é amor que mal é que tem?

 

CRISTINA choraminga.

 

CRISTINA
Ai!… o que diria o meu Sérgito.

 

CRISTINA recomeça a choramingar mais alto.

FILOMENA tentar consolar CRISTINA. TIAGO está muito quieto a observar a cena, sem saber bem o que fazer.

 

13. INT. SALA DE ESTAR – NOITE

TIAGO e FILOMENA estão cada um sentado no seu cadeirão, descontraídos.

 

TIAGO
Devo dizer que esta noite foi bem
mais animada do que estava a contar!

 

FILOMENA
É o que dá pores-te para aí a
fazer convites para casas alheias.

 

TIAGO
E a D. Tina, acha que fica bem?

 

FILOMENA
Vai andar a evitar-me durante uns dias,
que até agradeço, e depois finge que
nada aconteceu, não te preocupes.
Já tentou fazer o mesmo com o Vítor
do 1.º andar. Não aceita que a filha
não gosta de homens e depois dá nisto.

 

TIAGO olha divertido para FILOMENA.

 

TIAGO
E a tia, o que é que acha disso?

 

FILOMENA
Do quê?

 

TIAGO
Da Paulinha gostar de mulheres.

 

FILOMENA
Ó Tiago, mas tu sabes que idade é que eu tenho?
Já vi muita coisa e cheguei à conclusão que
a vida privada é mesmo isso, privada.

 

TIAGO
(provocando)
Então e o seu Deus, não castiga?

 

FILOMENA olha para TIAGO pelo canto do olho, impaciente.

 

FILOMENA
Isso depende do Deus em que se acredita.
O meu está mais preocupado com outras coisas.

 

TIAGO ajeita-se no cadeirão.

 

TIAGO
Bom, eu não acredito em Deus.

 

FILOMENA
Sim, já sei, tu é mais a natureza e os animais.
Para mim vai dar tudo ao mesmo.

 

TIAGO
(rindo)
Sim, se calhar vai.

 

TIAGO tira o telemóvel do bolso para ver as horas.

 

TIAGO (CONT’D)
Tia, acho que vou andando.

 

FILOMENA
Está bem, Tiago.
Liga-me quando chegares a casa
se faz favor.

 

TIAGO
Está bem.

 

TIAGO levanta-se e dá um beijo na testa de FILOMENA.

 

TIAGO (CONT’D)
Até amanhã.
Não se esqueça que o
almoço é às duas!

 

FILOMENA
Sim, eu sei.

14. INT. QUARTO – NOITE

FILOMENA está sentada na cama, de camisa de dormir. Na mesa de cabeceira está um candeeiro, uma imagem de Cristo, uma fotografia mais recente do marido, um livro que estará a ler e um rádio despertador.
FILOMENA olha para a imagem e a fotografia, sem lhes pegar.

 

FILOMENA
Bem, foi isto o meu dia.
Suponho que podia ter sido pior.

 

Deita-se e desliga a luz. Fica tudo escuro.

 

FILOMENA
(irritada)
Raios me partam, esqueci-me do guarda-chuva na farmácia!

 

FIM