Produção short/age. © Todos os direitos Reservados.
Este autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
A Promoção
um argumento de
Valério Romão
trilha sonora de
Luís Antero
ilustrado por
Carolina Celas
Convidada para jantar, Amélia espera receber uma promoção do seu chefe, mas uma divergência de preferências tem consequências inesperadas.
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1. INT. PRÉDIO/ESCADAS – NOITE
Amélia e Rogério estão de frente para uma porta, nas escadas de um edifício, e antes de tocarem à porta conversam entre eles, ajeitam a roupa, o cabelo, aprontam-se.
AMÉLIA
(a pentear o cabelo)
Achas mesmo que isto vale a pena?
ROGÉRIO
E eu é que sei? Tu é que
estavas toda entusiasmada
quando ele te convidou.
AMÉLIA
Bom, havia – e espero eu, há – razões para isso.
Como tu sabes, ele não convida…
ROGÉRIO
(interrompe e completa a frase)
…não convida qualquer um
para jantar, já sei, já sei…
AMÉLIA
Pronto. E quando o faz,
sso normalmente quer dizer…
ROGÉRIO
(interrompe novamente)
…quer dizer que está a pensar
promover o dito cujo.
AMÉLIA
Estamos juntos há demasiado tempo.
ROGÉRIO
Eu sei que tu gostas de pensar que a
coisa do jantar-barra-promoção é uma
espécie de lei universal da vossa empresa…
AMÉLIA
E é.
Achas que estava aqui se não fosse?
ROGÉRIO
Provavelmente. É o teu chefe.
Quando o chefe convida para jantar
– sobretudo em casa dele – tem que
se estar. Mas não é esse o meu ponto.
AMÉLIA
Qual é então o teu ponto?
ROGÉRIO
O Quico.
AMÉLIA
Que tem o Quico?
ROGÉRIO
Foi convidado para vir cá jantar e…
AMÉLIA
E o quê?
ROGÉRIO
E não foi promovido.
AMÉLIA
Estás a brincar?
O Quico é director do departamento
dele. Não pode subir mais.
Não pode ser promovido!
ROGÉRIO
Podia ter sido promovido
a sub-director-geral.
Ou vice-presidente.
Ou uma coisa assim.
AMÉLIA
Esses postos nem sequer existem!
ROGÉRIO
Podiam ter sido criados. Para ele.
AMÉLIA
Valha-me Nossa Senhora.
ROGÉRIO
Então se à partida ele já não podia
ser promovido, como é que explicar
que tenha sido convidado.
E como é que encaixa a variável
«Quico» na tua lei universal
de alpinismo empresarial?
AMÉLIA
É uma excepção.
As excepções confirmam as leis.
ROGÉRIO
Errrrr… A regra.
«A excepção confirma a regra».
E acho que não é bem assim que funciona.
AMÉLIA
(levanta o braço para tocar à campainha)
Se estás assim tão curioso,
tens bom remédio. Pergunta-lhe.
(toca à campainha. Ouvem-se passos e latidos)
Oh, merda. Têm cães.
ROGÉRIO
(põe o indicador sobre os lábios. Sussurra)
Mais baixo. E se te ouvem?
AMÉLIA
(sussurra, mas menos)
Ele é meio surdo.
ROGÉRIO
(ainda sussurrando)
E a mulher dele?
AMÉLIA
Para o bem dela, espero que também.
A porta abre. Do outro lado, uma mulher, segurando a maçaneta, de braços e boca abertos. Exibe uma espécie de sorriso constrangido.
AMÉLIA
(titubeando)
Boa noite…
ROGÉRIO
Boa noite…
A mulher deixa-se estar, confusa, faz alguns gestos com a mão como se procurasse o que dizer.
AMÉLIA
Sou a Amélia e este é
o meu namorado, o Rogé…
FÁTIMA
(interrompendo)
Amélia! É isso!
Nem por nada que me
lembrava do seu nome agora!
Ah ah ah!
Riem nervosamente em conjunto.
AMÉLIA
É perfeitamente normal!
FÁTIMA
Querida, alturas houve em que não o era.
Eu tinha uma memória fantástica.
Fátima inclina-se para segredar ao ouvido de Amélia
FÁTIMA (CONT’D)
Aliás, ao contrário do Fernando,
que nunca sabia onde tinha posto as
chaves ou a carteira ou a escova do cabelo
– isto quando ainda tinha cabelo, claro está!
Mais risos nervosos.
FÁTIMA (CONT’D)
Agora estou como ele. Talvez pior.
Vamos ficando cada vez mais parecidos
um com o outro com a idade!
Mais risos nervosos.
FÁTIMA (CONT’D)
Mas entrem, entrem. Está frio aqui.
Ele está à vossa espera na sala.
2. INT. CASA/CORREDORES – NOITE
Amélia e Rogério seguem Fátima. A casa não é muito grande ou abastada. É uma casa de casal de classe média-alta e, sem ser espectacular, é provavelmente maior e mais bem apetrechada do que a deles – pela forma como olham para tudo. Fátima vai falando sobre como já há dois anos que planeiam pintar as paredes e mudar o chão, mas que com o trabalho Fernando, pouco tempo têm para mais do que uma semana de férias no estrangeiro (nos anos bons) ou no Algarve (quando a coisa não corre tão bem).
3. INT CASA/SALA – NOITE
A sala tem uma mesa de jantar disposta com quatro lugares. No centro, uma terrina. À volta da terrina, diversos acepipes. O serviço é luxuoso e contrasta de certo modo com a decoração do resto da casa, algo mais modesta. Fernando está sentado numa poltrona, num canto, e levanta-se assim que eles entram.
FÁTIMA
Nandinho, cuidado com as costas.
Levanta-te mais devagar e faz força com
as pernas e não com as costas, como
o médico ensinou na última consulta.
FERNANDO
(estende a mão para Amélia)
Hão-de perdoar a minha esposa,
mas de há uns anos para cá eu
tornei-me o filho que nunca tivemos.
Risos.
AMÉLIA
(aperta a mão a Fernando)
Boa noite, Fernando.
Cumprimentam-se todos com apertos de mão, sequencialmente.
FERNANDO
Foi difícil dar com isto? Às vezes o GPS
manda-nos para uma rua sem saída mesmo
aqui atrás, a dois quarteirões apenas de distância.
É que aqui na aldeia – como eu gosto de lhe chamar –
há duas ruas com quase o mesmo nome.
Numa localidade tão pequena, vejam lá!
Eu dou a morada às pessoas, estas pensam
que estão a ir na direcção certa e de repente estão
numa rua sem saída no meio de um bairro social.
Naturalmente dão logo conta do equívoco
e telefonam-me e a coisa resolve-se.
Mas mesmo assim, é vexante.
Décadas de poder local socialista,
sem alternativa nem oposição, dá nisto.
FÁTIMA
(dirigindo-se principalmente a Amélia)
Já sabe como ele é: sempre a apontar
defeitos a tudo, sempre a querer corrigir
tudo, sempre à procura da perfeição!
Por ele, as ruas eram todas varridas
a números e letras, como em Nova
Iorque, e acabava-se logo a confusão.
FERNANDO
Simples e eficiente!
AMÉLIA
Como o Fernando gosta!
FERNANDO
Ah ah ah.
Dir-se-ia que trabalha comigo…
AMÉLIA
Consigo não, para si.
FERNANDO
Ora, ora. É a mesma coisa.
Amélia baixa os olhos em jeito de agradecimento e tira da mala de mão uma garrafa de vinho, que oferece a Fernando.
FERNANDO (CONT’D)
Ah, escusava de se ter dado ao trabalho!
O que não falta nunca nesta casa é vinho.
FÁTIMA
E contas para pagar!
Riem-se todos.
FERNANDO
Enquanto for dando para o vinho e
para as contas, menos mal, menos mal…
Riem-se novamente.
FERNANDO (CONT’D)
Bom, vamos sentar? Trazem fome?
A Fátima não é a maior especialista
culinária que conheço, mas faz um
ensopado que é único!
AMÉLIA
Não comemos há dois dias
a pensar neste jantar!
FERNANDO
Ah ah ah!
Boa tentativa, mas se há alguma
fama que os jantares aqui têm,
não há-de ser essa!
AMÉLIA
(dirigindo-se a Fátima)
Se me pudesse indicar a casa
de banho, por favor…
Precisava de lavar as mãos…
FÁTIMA
Claro querida, venha comigo!
4. INT CASA/CASA DE BANHO – NOITE
Fátima acende a luz da casa de banho sem lá entrar. Abre apenas ligeiramente a porta como cortesia. Amélia agradece e entra. Fecha a porta atrás de si com as costas, e encostando-se, respira fundo. A casa de banho é bastante grande em comparação com a casa. Amélia toma um momento para olhar em redor, a casa de banho parece ter sido renovada há pouco tempo. O mobiliário e louças têm um ar mais moderno do que o resto da casa. Amélia abre o armário da casa de banho e vai vendo o que lá encontra, corta-unhas, caixas e boiões de medicamentos, pensos rápidos, etc.
Na parede por detrás dela e pelo espelho vê a porta divisória que limita o acesso ao duche. Lava as mãos, fecha a torneira, vira-se e dirige-se para o duche. Com os dedos faz correr a porta. A cabine é bastante grande. Para além do duche e daquilo que se espera encontrar numa cabine de duche, há cerca de uma dúzia de quadros relativamente pequenos na parede oposta ao chuveiro. Amélia aproxima-se para os observar. São fotografias de cães. De um cão, observando com mais atenção. É um cão muito, muito pequeno, em várias poses, em algumas das fotografias está vestido com fatinhos. Parecem roupas de bonecas. Observando melhor, Amélia percebe que em todas as fotos o cão é o mesmo e que em todas as fotos o cão está com uma erecção. A expressão no rosto de Amélia muda. Afaste-se
e aproxima-se das fotos. Olha para todas detalhadamente. Finalmente, afasta-se, corre a porta do duche com cuidado e volta para o lavatório. Lava o rosto com abundância, leva a toalha ao rosto e retoca o batom. Fica a olhar para o espelho.
5. INT CASA/SALA – NOITE
Sentam-se para comer. Fernando de frente para Amélia, que se remexe na cadeira e ajeita as almofadas. Não parece imediatamente confortável. Rogério de frente para Fátima, que fica mais perto da porta, para facilitar o acesso à cozinha.
FERNANDO
Então Amélia, como se vê
daqui a uns anos, na empresa?
Se é que se vê na empresa, é claro.
Amélia parece ter dificuldades em responder.
ROGÉRIO
Que eu saiba, a Amélia está muito
entusiasmada por estar com vocês.
Em casa não fala de outra coisa.
Às vezes até me aborreço com ela.
Ah ah ah…
FÁTIMA
Como eu o percebo.
O Fernando às vezes anda aqui
por casa que parece um zumbi.
Eu bem lhe tento chamar a atenção.
(finge que está a chamá-lo)
«Nandinho, rega por favor as plantas que
está tudo a morrer, há dias que te peço
para o fazeres.» E ele: «hum hum».
Eu sei que ele não está a ouvir.
Está concentrado lá nas coisas dele,
nos negócios, nos números, nas vendas.
Ele vive para aquilo…
FERNANDO
Bom, «aquilo» ainda vai dando para
as contas e para o vinho, não é?
Falando nisso, belo vinho
que vocês trouxeram. Conheço
o produtor mas desconhecia este.
Não deve ter sido barato…
ROGÉRIO
Bom, não foi proibitivo.
É só nos habituarmos à ideia de comer
atum o resto do mês…
FERNANDO
Felizmente já não falta muito
pró fim do mês!
Riem-se todos. Amélia parece desconfortável. Remexe-se sobre a cadeira.
AMÉLIA
Eu gosto muito do que faço.
Um silêncio breve. A mesa parece esperar que Amélia desenvolva a conversa mas esta não o faz.
FERNANDO
E é muito boa no que faz.
É o que toda a gente diz.
Temos muita sorte em tê-la connosco.
ROGÉRIO
Bem, se pudesse propor um
brinde a esta relação profissional…
É muito difícil encontrar um sítio onde
nos sintamos bem e sejamos valorizados.
E este parece ser o caso. Pelo que…
FERNANDO
Bem dito. Ao trabalho!
Ao bom trabalho
Erguem-se da cadeira para brindar. Fátima interrompe quando os copos estão prestes a tilintar uns nos outros.
FÁTIMA
Esperem, esperem!
Tenho de ir buscar o Fofi.
Ele adora estes momentos!
FERNANDO
Ah, que boa ideia.
(virando-se para Amélia)
O Fofi é assim, a bem dizer,
uma espécie de filho.
Enfim… É o filho possível.
FÁTIMA
É adorável, vão ver! E adora pessoas.
Coitadinho, sempre connosco, já está farto.
O mesmo casal de velhos todos os dias…
FERNANDO
Ele deve estar na cozinha, querida.
A última vez que o vi foi lá.
FÁTIMA
Volto já já.
Ai que o menino adora pessoas!
Fátima levanta-se e sai da sala. Amélia levanta-se para ajeitar a almofada.
FERNANDO
É muito querido, vão ver.
Uma pequena jóia.
A nossa vida mudou quando o
adoptamos. Mudou muito. O Fofi,
a bem dizer, trouxe cor à casa.
Uma casa deste tamanho pode ser muito
solitária, especialmente na nossa idade.
FÁTIMA (O.S.)
Não o encontro!
FERNANDO
(elevando a voz)
Procura bem!
(para Rogério)
Ele é muito pequenino.
Quando se quer esconder
não há quem dê por ele. Já vão ver.
AMÉLIA
É um daqueles muito pequenos,
que estão sempre a tremer?
FERNANDO
É. É um Chihuahua.
Mas não está sempre a tremer,
coitadinho, só quando tem frio.
Ou quando está nervoso.
AMÉLIA
Pois. Os que conheci estavam
sempre a tremer.
ROGÉRIO
(rindo nervosamente)
Ah ah ah. Se calhar estavam
com frio, Amélia. Ah ah ah.
AMÉLIA
Pois.
Eu não sou especialista em cães.
FERNANDO
Dá-me a sensação que não gosta
muito deles também… Estou errado?
AMÉLIA
Sou mais de gatos.
O meu pai adorava cães.
FERNANDO
Pois, gatos não é comigo.
São traiçoeiros.
AMÉLIA
Têm personalidade.
FERNANDO
Eu chamar-lhe-ia outra coisa.
AMÉLIA
E chamar-lhe-ia o quê?
ROGÉRIO
Bem, não sei se é dos dois dias sem comer,
mas isto está verdadeiramente fantástico.
(para Fernando)
Será que a Fátima precisa de ajuda?
Fernando não responde a Rogério. Continua a olhar para Amélia.
FERNANDO
Os gatos são… como dizer…
São ciganos.
AMÉLIA
Como assim?
FERNANDO
Uma pessoa adopta um gato,
estão a ver, e pensa «ah e tal, coitado
do bichinho» e pensa que o gato sente
a mesma coisa, isto é, humaniza-o.
Projecta-lhe uma capacidade de amar
que o gato nunca terá. Ilude-se com a
ideia que o gato a vê do mesmo modo, que a
reconhece como a pessoa que o salvou da rua.
Que a ama porque coabitam na mesma casa.
Porque a pessoa lhe abriu a porta.
Mas os gatos não são assim.
AMÉLIA
Então são como?
FERNANDO
Você sabe. Você que gosta
tanto de gatos, sabe.
AMÉLIA
Não, não sei.
FERNANDO
Claro que sabe.
Rogério incomodado. Fernando dá uma garfada.
FERNANDO (CONT’D)
Os gatos não conhecem dono.
Entram em casa como se a ocupassem.
Não são acolhidos, conquistam.
Não são adoptados. Não, os gatos
nunca são adoptados… Insinuam-se.
Manipulam. Entram em casa e passado
pouco tempo já são donos daquilo.
Ocupam os sofás, as cadeiras, a cama.
Uma pessoa só os consegue tirar
de lá ao pontapé, porque eles
até aos donos se viram.
(pausa)
Vocês sabiam que os gatos no estado
de natureza não ronronam? Os gatos só
ronronam ao pé dos humanos.
Até isso desenvolveram para
nos manipular melhor. O gato é cigano.
É um bicho que não conhece dono.
A gente abre-lhe a porta por caridade ou
simpatia e quando dá por isso torna-se
convidado na própria casa. Não, eu bicho
que não conhece dono para mim não dá.
ROGÉRIO
Ah ah. Estamos sempre a aprender.
Não sabia essa do ronronar.
Sabias, amor?
AMÉLIA
(para Fernando)
Não dá para fazer deles o que
queremos não é? Têm personalidade.
Não os podemos tratar como
queremos. Não são submissos
como os cães. Não são tontinhos naquela
devoção infinita e enjoativa que os
cães mostram. Têm dentes e garras e
por muito contacto que tenham connosco,
não se esqueceram – e a meu ver, bem –
que não somos de fiar. Já os cães…
esses até de ser cães se esqueceram.
O ambiente fica encrespado. Fernando e Amélia tem dificuldade em disfarçar a tensão entre eles. Comem mais depressa, são mais brutos com os talheres, bebem mais sofregamente. Rogério observa boquiaberto, tentando disfarçar a surpresa e o incómodo.
FERNANDO
A lealdade dificilmente pode ser
considerada um defeito, não acha?
Os cães…
AMÉLIA
(interrompendo)
E a mafia?
FERNANDO
(surpreso)
Como?
AMÉLIA
A mafia. O pacto de silêncio entre criminosos.
A omertà. Ainda há dias começou a segunda
temporada de uma série de que eu e o Rogério
gostamos muito, sobre a máfia napolitana.
Uma coisa incrível, realista, bem feita
– o tipo que escreveu a série, o… o…
(para Rogério)
…como é que se chama?
ROGÉRIO
O guionista?…
AMÉLIA
Não! O nome dele!
ROGÉRIO
Não me recordo…
AMÉLIA
Seja, não importa.
O que importa é que o
guionista está sob protecção
policial desde que a série estreou
porque esta veio pôr a nu uma
série de práticas da mafia que contrariam
a imagem desta de «amigos dos pobres»
que a mafia gosta de cultivar,
sobretudo no sul de Itália…
FÁTIMA
(a gritar da cozinha)
Ele não está aqui, Nandinho!
Nem no cestinho dele
nem atrás do frigorífico!
FERNANDO
(a gritar para a cozinha)
Vê lá se não o fechaste num
dos armários de cozinha
quando estiveste a preparar o jantar!
Não é a primeira vez que acontece.
AMÉLIA
E tenho a certeza de que se lhe
chegarem a fazer mal, será em nome
da lealdade e da «famiglia» que o farão.
Será essa a justificação deles para…
FERNANDO
Desculpe lá, mas está a comparar
um cão, ou os cães enquanto espécie,
à máfia calabresa?
ROGÉRIO
Napolitana.
(embaraçado com o olhar de ambos)
Desculpe…
AMÉLIA
Estava apenas a vincar que a lealdade
não pode ser elevada a valor absoluto.
Por vezes não chega a ser um valor
sequer. Depende do contexto.
Veja-se o caso dos alemães
que colaboraram com o sistema nazi
na segunda grande guerra…
FERNANDO
Ele é mafia, ele é Alemanha nazi…
Você tem noção dos disparates que está a dizer?
(para Rogério)
Ela tem noção?
Rogério sorri, envergonhado, e mastiga.
FERNANDO (CONT’D)
Se você não sabe, a maior parte das
vezes em que o dono do cão morre antes
do animal, o cão fica deprimidíssimo.
Deixa de comer. Às vezes até
morrem de inanição. Perde a vontade
de viver. Sabe o que acontece
(e aponta com o garfo para Amélia,
já sem os modos distintos de
quando estes chegaram)
quando o dono de um gato morre
em casa sozinho e leva algum tempo a
ser descoberto? Os gatos comem-no.
Ao que parece, começam sempre pelos
dedinhos e têm preferência pelo torso.
Sem qualquer problema de consciência!
Os gatos só não vos matam para comer
porque vocês continuam a levar-lhes,
como bons escravos que são, comidinha
de toda a espécie. No dia em que isso
faltasse, iam ver quanto tempo demorava
até que vos enfiasse uma garra na jugular!
AMÉLIA
Sobrevivência.
É uma questão de sobrevivência.
ROGÉRIO
(a medo, para Fernando)
Mas isso, isso está provado cientificamente?…
FERNANDO
Ainda há uma semana foi uma senhora
em Espanha! Tinha quatro gatos, morreu
sozinha em casa, Deus a tenha, quando abriram
a porta, três dias depois, já não tinham
muita coisa para levar para a morgue.
E começam sempre pelos dedinhos.
Sabe como é que sabemos que começam
sempre pelos dedinhos? Medicina forense.
Datação. Chega de ciência para si?
FÁTIMA
(da cozinha)
Nandinho, não está em lado nenhum!
Vem cá ajudar-me!
Estou a ficar preocupada!
FERNANDO
Vê na casa de banho!
Ele às vezes fica fechado atrás
da porta do duche!
FÁTIMA
Anda cá ajudar-me!
FERNANDO
Ele deve estar praí! Procura bem!
(para Amélia, mais calmo)
Eu até consigo perceber que uma pessoa
da sua idade ache piada a um bicho como
um gato. Consigo perceber e até a desculpo.
Você ainda não viu a morte de perto.
(aponta para o peito)
Ainda está convencida de que enquanto
anda aqui é imortal e que a morte é uma coisa
que acontece aos outros; aos velhos,
aos doentes, aos azarados. Por isso
é que o desapego a seduz. Nova. Sem filhos.
A vida toda pela sua frente.
A última coisa que quer é âncoras, sejam
de que tipo forem, a desacelerar-lhe a
marcha; coisas que lhe façam sentir o
quão misteriosa e profunda e
curta a vida é. Coisas com uma aura que…
AMÉLIA
(interrompendo)
Um cão?
FERNANDO
Sim, um cão.
Uma criatura capaz de um
amor infinito que nunca…
AMÉLIA
(interrompendo)
E os cães que atacam pessoas?
FERNANDO
Os cães só atacam quando provocados!
Ou quando mal educados pelos donos!
AMÉLIA
E o caso daquele miúdo, no norte,
já não me recordo em que aldeia foi,
que ficou cego porque um cão o
atacou estava o miúdo na sua vidinha,
tranquilo, a andar de bicicleta na rua?
Saiu no jornal há uns dias.
Se calhar até no mesmo que vinha com
«a história do gato comilão» que
afinal só comeu porque tinha fome e há
dias que não comia. Até as pessoas
fazem isso! Lembro-me de ver um filme,
há uns anos, sobre um grupo de turistas que
se despenhava de avião numa montanha e
passado um tempo começaram a comer aqueles
que tinham morrido na queda, e logo
aqueles que iam morrendo de frio e de
fome e quando já não havia mortos para
comer olhavam uns para os outros
como quem olha um rosbife mal passado!
FERNANDO
Um cão, Amélia, um
cão nunca comeria um dono.
AMÉLIA
E um dono? Comeria um cão?
FERNANDO
Não estou a perceber.
ROGÉRIO
Vocês querem mesmo falar
disto ao jantar? É que é pecado estragar
uma comidinha assim tão
deliciosa com conversas que…
AMÉLIA
Um dono era capaz de comer
um cão? De fazer mal a um cão,
em termos mais gerais? O Fernando
era capaz de fazer mal ao seu cão?
FERNANDO
Nunca! Mas o que tem isso
a ver com o assunto?
AMÉLIA
Se os cães são assim tão bons,
tão magníficos, tão melhores
do que qualquer outro bicho, não
percebo como há quem lhes faça mal,
quem os maltrate, quem os mate,
quem lhes faça ainda coisas piores!
FERNANDO
Há gente para tudo, Amélia!
Que culpa têm os bichos de haver
tanto maluco e descompensado neste
mundo, tantas pessoas sem qualquer
compasso moral!
AMÉLIA
Oh se há! Nisso estamos de acordo!
É o que não falta por aí…
FERNANDO
É um mundo muito vasto e complexo,
Amélia. Muito mais complexo do que
aparenta à primeira vista.
FÁTIMA
(entrando na sala)
Não o encontro, Nandinho.
Não está em nenhum lado.
Será que saiu quando abrimos
a porta há bocado?
FERNANDO
Deve estar por aqui.
Não te preocupes que deve estar por aqui.
Não é a primeira vez que se esconde.
Os animais – os cães pelo menos – tem um
sentido muito apurado para quem gosta deles.
E para quem não gosta deles.
ROGÉRIO
O mínimo que podemos fazer
é tentar ajudar!
Rogério e Fernando levantam-se. Amélia fica sentada na cadeira.
AMÉLIA
Só íamos atrapalhar.
O Fernando e a Fátima é que
conhecem os cantos à casa.
(dá uma garfada)
O jantar estava óptimo.
Vamos se calhar andando.
Assim não perdem tempo connosco
e podem-se concentrar em
encontrar o animal.
FÁTIMA
Isto é muito inoportuno!
Que infelicidade!
Ficamos a dever-vos um
jantar como deve ser!
ROGÉRIO
Ora essa, ora essa!
Foram muito amáveis
e a comida estava óptima!
Tudo fantástico.
E que bela casa têm!
FERNANDO
Obrigado. Imprevistos acontecem.
Às vezes há males que vêm para bem.
6. EXT. RUA – NOITE
Já na rua (Rua Formosa) Amélia e Rogério caminham em silêncio em direcção ao carro.
ROGÉRIO
Bom, acho que vais ser mais uma
excepção a confirmar a regra.
Esta promoção já foi.
AMÉLIA
Se fosse só a promoção…
(Amélia acende um cigarro)
Deixa-os só encontrar o que
estava debaixo da almofada da
minha cadeira.
FADE OUT
FIM