Produção short/age. © Todos os direitos reservados.
15:25. O terrorista. Olha.
um argumento de
José Pereira
trilha sonora de
Leonardo Outeiro
ilustrado por
L Filipe dos Santos
Um homem imerso nos seus pensamentos, olha e pensa o mundo que o rodeia. Ver é um exercício de escuta para ele.
Escutar com headphones
1. EXT. RUA NA CIDADE DE VISEU – MEIO DA TARDE
Tudo acontece em PLANO DE SEQUÊNCIA. A câmara é o olhar do HOMEM, sendo sempre ponto de vista do espetador.
Está um dia de sol, o céu está limpo e um calor desconfortável faz-se sentir por todo o lado, os termómetros marcam 42ºC.
Numa artéria central da cidade bastante movimentada circulam carros e autocarros cujo som se mistura com o burburinho de pessoas a falar, soam buzinas e alguns insultos de quem está no trânsito.
É uma rua ocupada por lojas dos dois lados: calçado, ourivesarias, pastelarias e cafés. Nesta rua não há livrarias.
O HOMEM atravessa a rua com um livro na mão, caminha em direção à pastelaria, veste-se de uma forma discreta, as roupas são simples e não possuem referências a marcas.
Pára breves segundos em frente à montra. É um vidro que ocupa toda a fachada da pastelaria. No reflexo vê-se, com pouca nitidez, o HOMEM e os transeuntes do lado de fora, com mais clareza surgem através do vidro as pessoas dentro da pastelaria.
2. INT. PASTELARIA – MEIO DA TARDE
O HOMEM ao entrar na pastelaria faz uma pausa de breves segundos e fixa um dos cartazes afixados na parede onde encontra o seguinte texto escrito:
“Todos os relatos presentes neste filme são reais, foram recolhidos e gravados sem o consentimento dos intervenientes.
Os nomes de todos os envolvidos foram alterados.”
SOM SUSPENDE
Senta-se numa das mesas. Olha o relógio, vê que são 15h10. Em silêncio, escreve no caderno:
“15h10. É preciso cada
vez sermos mais pequenos.”
SOM RETOMA
A televisão está ligada, sem som. Ouve-se o rádio e as vozes de quem está na pastelaria, mas tudo não passa de ruído.
TERESA vai levantar o pedido do HOMEM.
HOMEM olha sempre TERESA enquanto falam.
HOMEM (V.O.)
Trabalha nesta pastelaria…
(pausa, ri) provavelmente toda a
vida aqui trabalhou. Explicava a
sua animosidade. (pequeno sorriso)
Mesmo ao fim de todos estes anos
raramente me permite um vislumbre
da sua simpatia. (riso)
(pausa)
Cabelo castanho, composto por um
descortinar de brancos, óculos de
massa maiores que o rosto, a pele
é igual à de um carvalho antes do
descortiçamento, com o seu corpo
meio escanzelado, tem pouca carne.
(pausa)
Em 363 pedidos nunca me desviei
de gostos – sim, só me é vedado
este local dois dias por ano, no
Natal e no Ano Novo – e mesmo assim
pergunta-me o que vou querer.
Não vá hoje mudar de ideias….
Estamos sempre a tempo de mudar.
TERESA
“… até fico ansiosa ao ler aquilo.
Ele é maluco de todo, mas o que eu
me farto de rir …”
HOMEM (V.O.)
Como é que começámos a
falar do livro? (riso)
Mais de metade dos portugueses
não lê um livro por ano, mas ela diz
que com este está entusiasmada,
(riso) leu metade. Não sei se há
estatísticas para quem lê
meios livros.
SOM SUSPENDE
HOMEM olha relógio e são neste momento 15h12, volta a olhar TERESA, ela percebe que se alongou na conversa e vai preparar o pedido, HOMEM segue-a com o olhar atentamente enquanto prepara o pedido, do início ao fim.
SOM RETOMA
HOMEM (V.O.)
“Era uma vez um Homem”.
Lembro-me perfeitamente da
primeira vez que o li.
A sensação de adrenalina
corria-me pelas veias, não
conseguia parar. Fazia-me cavalgar
cada página, mais e mais
E MAIS E MAIS!
(pausa)
Mostrou-me que a desumanização
é real, é o nosso homem
contemporâneo, o efeito onde
todos os traços humanos foram
apagados do ser, da própria
sensibilidade inerente ao humano.
Lemos e vemos uma pessoa
desocupada, um sinal do mundo
que a rodeia. É um futuro
imaginado, onde imaginamos outros
futuros. O futuro onde vivemos,
o imaginado, nunca coincide com
o futuro que imaginámos. Talvez
porque, o imprevisto age como
sujeito inconsciente da história
dando forma ao mundo e ao humano,
tornando-se no principal
instrumento que desenha o futuro.
Todas as dúvidas e incertezas,
contra o mundo, contra eles, contra
nós, contra ti, e contra mim.
Um homem que espera pelo seu mundo.
Um mundo que espera pelo seu homem.
SOM SUSPENDE
TERESA traz o pedido, um folhado misto, café e um copo de água. HOMEM olha relógio e são neste momento 15h14.
SOM RETOMA
HOMEM, enquanto come, olha atentamente para quatro pessoas sentadas na mesa da frente. Três homens e uma mulher, todos aparentemente reformados.
O primeiro homem tem o cabelo e o bigode preto, guia a conversa de forma histriónica, sabe tudo e não deixa que o interrompam.
O segundo homem é um tipo careca, barba desfeita, lê o jornal e durante toda a conversa são poucas as palavras que saem da sua boca, levanta os olhos, apenas e só, quando algum tema o inquieta.
O terceiro homem ostenta de forma orgulhosa “amor de mãe” tatuado no braço, ouve afincadamente a conversa e vai retorquindo com comentários, breves e soltos, não intervindo nem contribuindo à conversa, como que a rezingar.
A única mulher na mesa está concentrada no telemóvel, mas percebe-se que ouve a conversa. Ri de tudo, um riso sarcástico da aparente desgraça. Tem por hábito terminar as frases de quem está a guiar a conversa, acena constantemente com a cabeça como que em concordância, tenta intervir, mas nunca a deixam falar.
HOMEM olha PERSONAGEM 1.
HOMEM (V.O.)
Como pode alguém guardar
tamanha aversão a um desconhecido?
PERSONAGEM 1
… anda metade a viver à conta
dos que trabalham, só querem é
viver à custa do RSI. Ciganos,
pretos, romenos, é tudo uma pouca
vergonha. E os empresários não
onseguem ter pessoas para trabalhar.
Depois ainda lhes dão casas, para muitos
que nunca fizeram nada. Para terem
lá o Mercedes à porta. As ciganas então
é de mais, têm para aí uns três filhos por ano,
as pretas a mesma coisa, vêm para
cá todos viver do subsídio.
(voz diferente) Ganham muito mais
do que eu. (voz diferente) Só não trabalham
porque não querem. (voz diferente)
É muito fácil viver-se à custa do Estado.
Pausa, HOMEM respira.
HOMEM (V.O.)
Propaganda baseada na repetição
de slogans, na qual acabam por
acreditar como verdades.
Grande parte dos beneficiários
do RSI são crianças, cuidadoras
informais e mães de famílias
monoparentais. Não é necessário
fazer muitas contas para perceber
que, nem em Viseu nem em
qualquer parte do país, metade
da população anda a viver à
custa da outra metade. Cada família
recebe, em média, uns 200,
300 euros, enquanto por pessoa
o valor médio ronda uns 100 euros.
Sem dúvida, uma fortuna.
Em perspetiva o RSI dos ciganos
tem um custo de 10, 15 milhões
de euros, enquanto que o calote
do Luís Filipe Vieira no Novo Banco
foi de 225 milhões de euros.
O calote dava para pagar TODO o RSI,
sendo que apenas 3 ou 4% são
dos ciganos. Afinal quem anda a
viver às custas de quem?
HOMEM olha PERSONAGEM 2.
HOMEM (V.O.)
A face escurecida dos séculos
não lhe esconde a revolta.
Arrasta consigo um peso
imenso de cansaço, de desilusão.
PERSONAGEM 2
… Portugal está farto de
corrupção, está na hora de mudar
o sistema. A culpa é desses que
só querem ir para o poleiro
para pôr lá a família toda.
Uns corruptos e ninguém faz nada.
Tudo farinha do mesmo saco.
Salgado, Sócrates. Só pais e filhos,
é uma vergonha. Só querem é tachos.
Nós a trabalhar para eles
ainda gozam com a nossa cara.
Chupistas, só querem é mamar.
Digo-vos, isto agora é muito
pior que no tempo do Salazar,
agora a merda deste país só
aguenta com as esmolas da Europa.
Esse político é que lhes diz
as verdades todas!
Pausa, HOMEM respira.
HOMEM (V.O.)
O mesmo líder que diz todas
as verdades faltou à votação na
Assembleia da República do pacote
de medidas anti-corrupção e
criminalização da riqueza
injustificada nos cargos políticos,
preferindo prolongar o seu convívio
com neofascistas europeus.
O mesmo que defendia o regime
de exclusividade dos deputados
acumulou três ordenados; e na senda
de acabar com o nepotismo,
contratou família dos próprios
deputados para assessores do
partido. Desta forma, percebemos
que quando a verdade absoluta está
guardada num bolso, a ignorância
costuma estar guardada no outro.
HOMEM olha PERSONAGEM 3.
HOMEM (V.O.)
“Amor de mãe”, escapa-me à
compreensão o que levou tantos
militares a fazer esta tatuagem.
Talvez porque quando estavam
aflitos, era pela mãe que chamavam.
PERSONAGEM 3
…somos governados por um indiano.
Aquela deputada preta devia era
ser devolvida ao seu país. É por
isso que sempre lutámos. Pelo nosso
país, pelos nossos trabalhos.
Pausa, HOMEM respira.
HOMEM (V.O.)
A intolerância vive alimentada
pelas nossas próprias motivações,
cega-nos. A realidade, como a
conhecemos é uma realidade feita
de preconceitos, é um pesadelo
inventado pelo homem. Não raras
vezes nos passa despercebido o
racismo talhado em nós, em
expressões e piadas como:
“Estás na minha lista negra”;
“És uma ovelha negra”;
“Compraste isso no mercado negro?”;
“E eu sou preto?”. Estes hábitos
espessos não podem ser tratados
com normalidade ou banalidade.
O racismo está longe de acabar.
Vivemos numa sociedade racista
que o tenta disfarçar através de
um rigor metodológico, dando-lhe
uma roupa nova. Pensa. Quando
nascemos o nosso coração não tem
ódio, nem amor, apenas tem a
inocência da vida. Não sabemos
odiar o outro, seja qual for a cor
de pele dele, a sua origem ou
religião. Contudo… É mais fácil
odiar, que aprender a amar.
HOMEM olha PERSONAGEM 4.
HOMEM (V.O.)
Cada olho parece um pedaço de
vidro, uma massa, cinza, refletem
a imagem, mas não sabem mais o
que veem. Estão vazios.
PERSONAGEM 4
…estes imigrantes vivem à custa
dos nossos impostos, depois chegam
com iphones, tablet’s é uma pouca
vergonha, e desperdiçamos o
dinheiro de Portugal em tudo
o que não importa, como acolher
refugiados, dar-lhes casas.
Estes imigrantes são é uns
chupistas do Estado.
Pausa, HOMEM respira.
HOMEM (V.O.)
Imigrantes. Imigrantes que são
vidas, vidas que entram num jogo
sem volta atrás. As cartas estão
marcadas, é uma partida perdida
de antemão. São sobreviventes
do azar, com a esperança de um
dia poderem voltar a casa.
Não há medida, valor ou verdade
que possam ser impostos.
Estamos cheios de nós, tornámo-nos
menos sensíveis. O ser recusa
confrontar-se com o esforço
intelectual, recusa reconhecer
a natureza trágica da sua própria
existência. Não está nos seus
hábitos escutar, analisar as suas
opiniões ou ter em conta as
outras pessoas. “Quem são eles?
De onde vêm? E se fosse eu?”
Sim, tu. Tu que me ouves. Pára.
Pára mesmo. (pausa) Olha à tua
volta. Leva a mão ao bolso e
vê o que tens nos bolsos.
(pausa longa) Lembra-te, essas
são as únicas coisas que vais
levar contigo. (pausa) Agora
fecha os olhos. Fecha-os mesmo.
Imagina à tua frente a tua casa,
os teus pertences, os teus amigos
e as pessoas que amas.
(pausa longa)
Neste preciso momento, a
distância aumenta, vão ficando
cada vez mais longe. Até que os
deixas de ver. (pausa)
Como é que te sentes?
SOM SUSPENDE
HOMEM olha relógio e são neste momento 15h20. Escreve no caderno:
“Este mundo em que nascemos, com a
cabeça ainda aos berros, torna-nos
cada vez mais incapazes de amar
o indivíduo.”
HOMEM observa atentamente as pessoas na pastelaria.
Deixa de prestar atenção à conversa, olha a pastelaria, fica com o olhar preso na televisão, onde passa uma notícia que informa que em Julho deste ano o planeta já gastou todos os seus recursos naturais estando até ao próximo ano a viver em dívida.
HOMEM (V.O.)
Sinto-me cansado, gasto.
HOMEM olha relógio e são neste momento 15h21. Escreve no caderno:
“Os objetos são o recetáculo
da miséria inanimada, essa que
fatalmente engendra a melancolia.”
SOM RETOMA
HOMEM olha televisão, passam apenas notícias de tragédias e catástrofes.
HOMEM (V.O.)
No princípio era um jardim.
Um paraíso que foi consumido,
deformado e queimado. Esta é a
era da sobrepopulação.
Inevitavelmente conduzidos à
insegurança económica, à agitação
social, que por sua vez leva a
um maior controlo por partes dos
governos e a um aumento do seu poder.
No próximo meio século, todos os
países de primeiro mundo estarão
sujeitos a um domínio totalitário,
provavelmente, de extrema-direita.
Se não aprendermos com a história
estamos condenados a vê-la
repetir-se. A população mundial,
aproxima-se dos 8 bilhões. Entre
o nascimento de Cristo e a morte
da Rainha Isabel I. Foram
necessários 1600 anos para que
a população duplicasse. Ao ritmo
atual só precisaremos de 25 anos
e com sorte a Rainha Isabel II
quase que ainda assistia.
(pequeno riso) O crescimento
contínuo de seres humanos tornou-se
uma desvantagem. É insustentável
continuar a produzir a este ritmo.
Superar os objetivos, ano após ano.
(rápido) Mais eletrodomésticos,
mais carros, mais telemóveis,
mais roupa, mais casas. Esta
necessidade constante de impulso
material está a ser conscientemente
acelerado por organizações comerciais
e políticas, é o mundo desordenado
do neoliberalismo e do capitalismo.
O problema do aumento rápido da
população em relação aos recursos
naturais, à estabilidade social e
ao bem-estar dos indivíduos, é a
não-resolução desse problema que
deixará sem solução todos os outros.
A solução? (riso)
Deixarmos de existir.
Mas se deixarmos de existir…
Não. A única sustenbilidade que
nos interessa é sobreviver.
Será o crescimento da população
compatível com a preservação da
biosfera e da própria existência humana?
Talvez sim, talvez não.
HOMEM faz movimento pendular com a cabeça.
HOMEM (V.O.)
Um movimento.
Pausa. HOMEM pára cabeça.
HOMEM (V.O.)
Um movimento de extinção humana
voluntária. O futuro do planeta
e da humanidade nada tem de
auspicioso caso se continue a
encorajar a procriação.
A ideia da nossa espécie deixar
de existir no futuro é simplesmente
impensável, mas estaremos dispostos
a aceitar a extinção de dezenas de
milhares de outras espécies?
Estaremos em negação sobre o que
significa hoje ter um filho, porque
nos ensinaram que criar outros
seres humanos é sempre digno de
celebração? O nosso condicionamento
cultural impede-nos de reconhecer
a necessidade. (pausa) Tu que por
acaso me ouves, diz-me, são-te
familiares momentos como estes?
Tenho pena de ti se assim for.
Acreditas que irás morrer?
Sim, novamente uma pergunta para ti.
(pausa) Somos mortais. Coloca a mão
em frente à tua cara.
Sim, fá-lo, sem medo.
(pausa longa)
A mão tem o calor de sangue, sentes?
Acreditas com o corpo que tem um
sabor morno à humidade, onde o
cansaço, a angústia, a plenitude
subterrânea, anunciam o esquecimento
absoluto que os dedos que estão
à tua frente um dia vão ficar
amarelos, gelados. (pausa, riso)
Evidentemente que não. É por essa
razão que ainda não saltaste do
topo de um prédio. É por isso que
continuas a comer, a viver, a
cortar o cabelo, a sorrir, a amar,
(pausa) a sofrer.
PAQUISTANÊS, entra na pastelaria, barba grande, moreno, usa turbante, cirwal e mochila. O ambiente fica tenso, nota-se um desconforto dos presentes.
PAQUISTANÊS passa pelo HOMEM e senta-se na mesa ao lado das PERSONAGENS.
SOM SUSPENDE
HOMEM olha relógio e são neste momento 15h23. Escreve no caderno: Os pensamentos são as sombras dos nossos sentimentos.
SOM RETOMA
Música toca na rádio, “It’s the end of the world – R.E.M”
PAQUISTANÊS tenta realizar pedido. Ninguém o atende.
A mesa dos aparentes reformados sussurra discurso xenófobo e racista. Fazem questão que o PAQUISTANÊS ouça.
HOMEM (V.O.)
Agrada-me a visão do desastre,
pela simplicidade primitiva
da situação.
PAQUISTANÊS apercebe-se que a mesa ao lado fala dele através de um discurso de ódio.
PERSONAGEM 1
…devia ser proibido entrarem
aqui pessoas destas…
PASQUISTANÊS
Desculpe, está a falar
para mim? Algum problema?
PERSONAGEM 3
Vá a outro lado!
Começam a discutir. Tom de voz amplifica-se entre as mesas.
A situação escala, o PAQUISTANÊS levanta-se e fala entre árabe e português, o que gera nervosismo. Os homens agarram nele para o expulsar da pastelaria. Há agressividade nos movimentos.
PAQUISTANÊS
PÁREM, PÁREM!
رک جاؤ.
HOMEM (V.O.)
Uma certeza moral contra o destino.
Ele nada fez, apenas existe.
PERSONAGEM 4
Vai para a tua terra!
HOMEM (V.O.)
Belíssimo gancho naquele bigode.
PAQUISTANÊS
Esta é a minha terra!
Começam a lutar. Copos, chávenas e cadeiras caem ao chão.
PAQUISTANÊS tenta pegar no telemóvel, isso gera medo nas pessoas.
Pessoas afastam-se. Algumas entram, algumas saem.
PERSONAGEM 3
É terrorista, é um terrorista!
Surgem mais gritos, algumas pessoas saem a correr da pastelaria.
Está o caos está instalado. Pessoas na rua tentam perceber o que está a acontecer.
Uma mulher e uma criança entram na pastelaria, não conseguimos perceber se vão ao encontro de alguém, ficam surpresas com a situação, criança chora.
Páram perto do HOMEM.
Mochila cai no chão, ele continua aos berros e tenta marcar um número no telemóvel. As pessoas começam a gritar e a correr.
Pessoas não têm tempo de sair da pastelaria, apenas vemos o início da ação antes do tempo suspender e ficar a imagem em câmara lenta.
PERSONAGEM 2
É uma bomba, é uma bomba!
Silêncio. O tempo suspende. Início de câmara lenta.
HOMEM (V.O.)
São quinze e vinte cinco. (pausa)
Há no homem o dom perverso da
banalização, por isso estamos
condenados. Do sangue nascem os
deuses que as mesmas religiões
assassinam. Ao sangue os deuses
regressam e só aí são eternos.
Por enquanto sinto a evidência
de que sou eu que me hábito,
de que vivo, de que sou uma
entidade, uma necessidade material
do que existe. Pesa-me a realidade
da humanidade que somos. Estou aqui
a existir, estou a ser. EU, esta
obscura e incandescente, fascinante
e terrível presença que está atrás
de tudo o que digo, faço e vejo.
Ora este eu tem de morrer.
Reunir a vida num ato único.
Que fazemos nós à vida?
Olhem param mim.
Só os doidos falam sozinhos.
Talvez porque não têm medo.
O mundo para eles não existe,
só existe a sua loucura.
A presença de nós a nós próprios,
a interrogação, o mundo submerso
da nossa intimidade. Os deuses
tinham habitado tudo isso.
Mas os deuses estão mortos.
Então porquê recusar a evidência
deste mundo? Há uma tarefa,
reabsorver a humanidade.
Na verdadeira era do mito,
os deuses não tinham ainda nascido.
Não há deuses para criarem.
O homem é deus.
É deus porque pode matar.
(riso) Como o tempo voa.
Deve ser agora. Ainda não.
Sim, é agora.
Câmara lenta termina. Vemos dois segundos da cena.
HOMEM
(grita)
Ahhhhgrr!
Um barulho ensurdecedor entra a queimar pelos ouvidos de todos, o chão treme.
CORTA PARA NEGRO
Tudo fica em silêncio.
HOMEM tira as mãos da cara lentamente.
Olha para a rua e percebe que um autocarro bateu no carro da frente, retoma o olhar para o interior da pastelaria. As pessoas estão paradas, perplexas, dividindo a atenção entre o autocarro e o HOMEM.
Lentamente todos acabam a olhar para o HOMEM.
Tudo parou.
HOMEM olha a criança assustada que tem a cara cheia de lágrimas.
HOMEM (V.O.)
Está a olhar para mim.
Está a olhar para dentro de mim.
HOMEM durante o decorrer da fala olha fixamente a criança, aproxima-se dela, termina a fala com ela ao colo.
HOMEM
(dirigindo-se às pessoas)
Kipling dizia: “Se fores capaz de não
perder a cabeça quando todos à
tua volta perdem a deles e te
culpam por isso; se fores capaz de
confiar em ti mesmo quando os
outros duvidam, mas aceitando
perguntar a ti mesmo se não terão
um bocadinho de razão; se fores
capaz de esperar sem deixar
que a espera te canse, ou, sendo
alvo de calúnia, te recusares a
caluniar, ou, sendo odiado, não te
deixares levar pelo ódio sem te
tornar sobranceiro nem te perderes
em palavras ocas; se fores capaz
de sonhar sem deixar que os sonhos
te escravizem; se fores capaz de
pensar, mas não cruzares os braços;
se fores capaz de viver o triunfo
e a desgraça tratando-os, a ambos,
como importantes que são; se
fores capaz de suportar ver a
verdade das tuas palavras
deturpadas por velhacos para a
transformarem em armadilha para
os tolos; ou, vendo as coisas a
que dedicaste a vida feitas em
pedaços, te vergares para as
reconstruir com ferramentas
já gastas; se fores capaz de
juntar, numa mão cheia, todos
os teus ganhos, arriscá-los
numa cara ou coroa, perdê-los
e começar do zero sem nunca
soltar um lamento; se fores capaz
de obrigar o teu coração, o teu
espírito e o teu corpo a servirem
à tua vontade mesmo depois de
exaustos e, assim, te mantiveres
de pé quando já nada restar dentro
de ti, exceto a força que te diz:
“Aguenta”; se fores capaz de falar
às multidões sem perder a virtude,
caminhar com reis sem deixar de
ser simples; se nem os teus inimigos
nem os teus amigos mais queridos
te conseguirem magoar; se todos os
homens contarem contigo, mas
nenhum dispuser de ti; se fores
capaz de preencher o fugaz minuto
com sessenta segundos vividos
plenamente, tua será a Terra e
tudo o que nela existe, e — o que
mais importa — serás um Homem,
meu filho!”
Ouve-se um barulho ensurdecedor.
CORTA PARA NEGRO
Som dura mais 10 segundos.
CRÉDITOS FINAIS